Cobertura

Imagens à mostra

No universo das 198 produções em exibição na plataforma virtual da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, indicamos 20 filmes que exploram questões pandêmicas, afetivas e políticas

TEXTO Luciana Veras

27 de Outubro de 2020

Mosaico sobre fotos de divulgação

Mosaico sobre fotos de divulgação

Arte Hugo Campos

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Estamos em 27 de outubro e faz cinco dias que o tempo cronológico das pessoas que estão acompanhando a 44a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo se mede não pela passagem habitual das horas, e sim por quantos filmes é possível encaixar em um único dia. OK, agora não estamos a esbarrar nas amizades, nos jornalistas, nas críticas ou nos cinéfilos que chegam até 1h30 antes da sessão para guardar seu lugar na fila (sim, isso acontece na Mostra), nem a marcar entrevistas no café no intervalo das sessões, mas seguimos na experiência de cobrir remotamente esse que é um dos maiores festivais cinematográficos do continente.

Separamos vinte filmes do conjunto de 198 obras disponíveis para fruição na Mostra Play. Pensemos nesse agrupamento como setas que atravessaram nosso caminho ou como apenas algumas possibilidades no caldeirão mágico que é uma robusta programação com filmes de 71 países. “Milhões de feitiços, não isentos de medo, esperam sempre por nós. Que bom que é poder deixá-los à cabeceira, enrolados no cabo ou na flecha, e apontar os sonhos ao dia seguinte”, escreve a poeta portuguesa Matilde Campilho em Flecha.

Cinema, sonho, feitiço: combinação precisa e ainda mais necessária. Boas sessões!



VIDA SOB A PANDEMIA

Coronation
(2020), de Ai Weiwei

O cineasta chinês filma Wuhan, epicentro do surto do novo coronavírus, nos meses em que a pandemia já havia se alastrado. Assim, seu novo documentário, cujas imagens foram captadas por moradores da cidade chinesa, nos dá acesso ao hospital levantado do zero em poucos dias (ao médico que vem nele trabalhar e ao operário que, no término da construção, não pode voltar para casa), aos enfermeiros que vêm de outras localidades para ajudar, aos filhos que não puderam enterrar seus pais e a nuances da sociedade chinesa, como a obediência ao Partido Comunista e a organização extrema.

Weiwei, que em 2017 veio a São Paulo para apresentar The human flow, seu registro para a crise migratória, obtém sequências impressionantes, mas não se apega apenas ao espetáculo que é filmar uma estrada vazia em uma cidade contaminada: Coronation tece críticas ao modo como a China lidou – e ainda lida - com a situação. E muito embora a eficiência chinesa chegue a ser atroz quando cotejada ao que vivenciamos no Brasil, a burocracia como entrave é um dos aspectos explorados aqui.

Sibéria Sportin’ life (2020), de Abel Ferrara
Não, Sibéria não foi rodado durante a pandemia, mas, ao ser exibido em fevereiro, na competição da Berlinale, virou combustível para Sportin’ life, documentário que o realizador norte-americano Abel Ferrara já vinha rodando em suas andanças, como em Cannes em 2019, quando exibiu Tommaso e tocou guitarra. Em comum, ambos os filmes trazem Willem Dafoe, uma espécie de ator-talismã do cineasta. Em Sibéria, Dafoe é Clint, um homem isolado na gélida imensidão desse território russo, acompanhado dos seus cães e poucas e eventuais companhias.


Cena de Sibéria. Foto: Vivo Film/Divulgação

Nesse confinamento, surge uma necessidade de acerto de contas com ele mesmo (um zeitgeist bem pandêmico). E aí Clint faz uma travessia que o leva a reencontrar o pai morto (também Dafoe), a ex-mulher, berberes num oásis no meio do deserto... A descida vertiginosa rumo a si, como um ouroboro, aquela cobra que morde o próprio rabo, é filmada com apuro por Ferrara, em estonteantes sequências, algumas de tirar o fôlego, mas a sensação que dá é que há mais energia vital em Sportin’ life, inclusive na sua sacada metalinguística de ser “um documentário sobre o ato de fazer um documentário”, nas palavras do diretor.

A sobreposição entre o isolamento autoimposto de Sibéria e a convivência animada de Sportin’ life é testemunho da versatilidade de Ferrara, capaz de manejar a linguagem em conformidade com seus desejos, seja escancarar a loucura que é lançar um filme no meio da pandemia (o documentário foi exibido em setembro, em Veneza), seja escancarar a loucura que é tentar escapar de si, indo aos confins do mundo, e ainda assim falhar. Talvez uma sessão dupla seja a janela ideal.

Masters in shorts (2020), de Jia Zhangke, Jafar Panahi, Sergei Loznitsa, Guy Maddin, Evan Johnson e Galen Johnson
O Festival de Thessaloniki comissionou sete filmes inspirados no livro Species of spaces, de Georges Perec, e nos dias de quarentena. O resultado é estranho, mas vale pelo mero deleite de ver esse time se exercitando em narrativas curtas. Tem a sobriedade em preto & branco de A visita, do chinês Jia Zhangke, no qual álcool gel, máscaras e distanciamento, marcas desses tempos, aparecem quando ele mesmo recebe um amigo em casa. Tem um devaneio onírico em que Isabella Rossellini interpreta um marido que quer viajar a tempo de se reencontrar com a esposa (curta dos canadenses Guy Maddin, Evan e Galen Johnson). Tem a opulência de Uma noite na ópera, do russo Sergei Loznitsa, um ritual tão anacrônico quanto impensável na vida sob a pandemia. E tem Escondida, em que o iraniano Jafar Pahani e a filha Solmaz vão com uma outra amiga, Leyla, à procura de uma mulher que possui uma belíssima voz, mas que não pode se mostrar. Desigual, mas interessante.

CINEMA TEM NOME DE MULHER



Shirley
(2020), de Josephine Decker

Shirley Jackson já era uma sumidade literária quando ela e o marido Stanley Hyman acolhem um jovem casal em Vermont. OK, o que vemos na tela é, sim, uma ficção, roteirizada por Sarah Gubbins tendo o livro de Susan Scarf Merrell como matriz, mas o filme de Josephine Decker parte de pontos notórios da vida da escritora de contos e livros de terror como The haunting of Hill House – argúcia, inteligência e também chatice, com muita solidão no processo criativo – para nos conduzir por um tour de force de Elisabeth Moss.

Sim, é ela, a inesquecível Peggy Olson de Mad men e a combativa June de The handmaid’s tale, agora vertida em uma mulher mais velha que mantém uma relação de dependência com o marido (Michael Stuhlbarg) e vê acender uma nova faísca dentro de si com a chegada de Rose (Odessa Young) e Fred (Logan Lerman). Se Shirley fosse só a interpretação de Moss (pule alto nas apostas para as indicações ao Oscar 2021), já valia a pena, e muito, porém há mais na elegância estética de Decker, no jogo psicológico que ela engendra para ligar as duas mulheres e, principalmente, no foco sobre o que era ser mulher em um ambiente machista.

Importante: só entra na plataforma Mostra Play a partir de quinta, 29.

Miss Marx (2020), de Susanna Nicchiarelli

I'm enough
You want more
I'm enough
I want more

Talvez a sequência mais icônica desta livre e arrojada cinebiografia que a italiana Susanna Nicchiarelli faz de Eleanor “Tussy”, a caçula das três filhas de Karl Marx, seja justamente essa em que os versos de I’m enough, uma canção da banda americana Downtown Boys, nos fazem querer dançar junto à protagonista. Eleanor (uma interpretação magistral de Romola Garai) canta, arqueia o torso, enfim, se mexe como se estivesse na plateia de um show nos anos 2020, e não na sala da sua casa em Londres, no século XIX, onde viveu entre 1855 e 1898.


Romola Garai como Eleanor Marx. Foto: Divulgação

Eleanor era suficiente e bastante: defendia os ideais feministas de direitos iguais entre homens e mulheres, percorria o mundo para fiscalizar as condições trabalhistas, unia-se ao homem que amava, Edward Aveling (Patrick Kennedy), sem os grilhões do casamento. Uma mente generosa e fértil, a manter o legado do pai (Philip Gröning) e do seu parceiro teórico Friedrich Engels (John Gordon Sinclair), no entanto um solo tão poroso que assim se torna aberto demais para venenos abundantes na natureza.

Em Maria Antonieta (2006), Sofia Coppola usou música da contemporaneidade (New Order, Strokes) para dar conta do vazio existencial da jovem rainha da França. Se o recurso adotado por Susanna não é exatamente novidade, é uma das propulsões que sustentam a narrativa, atentando para o quão atual permanece a luta de Eleanor e para como é pequeno reduzir sua brilhante trajetória ao trágico fim.

Ana. Sem título (2020), de Lucia Murat
A realizadora carioca confunde os limites entre os gêneros propositalmente e nos entrega algo que poderia ser definido como um “falso documentário de busca”, mas que funciona melhor justamente por evitar os rótulos. Ana. Sem título acompanha a jornada de Stela (Stella Rabelo), uma atriz que, ao deparar com um acervo de cartas trocadas entre artistas plásticas latino-americanas, descobre a existência da personagem-título, uma jovem artista negra brasileira que circulou por vários países da América Latina durante nos anos 1960 e 1970, quando praticamente todas as democracias do continente estavam ameaçadas por golpes e, depois, subjugadas por ditaduras militares.


Ana. Sem Título, um filme de Lucia Murat. Foto: Taiga Filmes/Divulgação

De Ana pouco se sabe, nem o sobrenome, aliás; porém, a cada país visitado, Stela, a própria Lucia Murat e a equipe vão conhecendo mais da vida dela, transgressora nas artes e nos costumes. Se na ficção de Ana. Sem título, Cidade do México, Havana, Santiago, Buenos Aires, nossas cidades hermanas, teriam sido palco de acontecimentos na vida dela, nas veias abertas da América Latina essas metrópoles sediaram violentos confrontos com estudantes, chacinaram opositores dos regimes militares e perseguiram toda e qualquer dissidência. Ao deixar a própria engrenagem à mostra, e sustentar o dispositivo de mesclar investigação documental ao aparato ficcional, a diretora, ela mesma uma sobrevivente da ditadura brasileira, e seu filme nos levam a Ana e a todas as outras artistas e mulheres presas, torturadas, assassinadas.

Minha irmã (2020), de Stéphanie Chuat e Véronique Reymond
A primeira razão para ver esta obra que concorreu ao Urso de Ouro na última Berlinale tem nome e sobrenome: Nina Hoss. Essa intérprete germânica é o alicerce dramático da trama urdida pelas duas diretoras. Como Lisa, irmã gêmea de Sven (Lars Eidinger), ela nos convence daquele vínculo etéreo entre os seres gestados simultaneamente no mesmo útero. Quando Sven adoece, ela, que abandonou uma carreira como autora teatral para acompanhar o marido na Suíça, retorna a Berlim para cuidar de quem lhe oferece antítese e sinonímia.


Nina Hoss e Lars Eidinger em Minha irmã. Foto: Divulgação

São bem desenhados os personagens que gravitam ao redor dos gêmeos– a mãe (Marthe Keller), o marido de Lisa (Jens Albinus), o dramaturgo que dirigiu o furor talentoso de Sven e foi casado com Lisa (Thomas Ostermeier) – e é bem arquitetada a escalada de emoções com que Stéphanie Chuat e Véronique Reymond constroem sua narrativa, sem descambar para a pieguice, e sim enfatizando “a doença como metáfora”, como Susan Sontag escreveu. Mas tudo isso, muito embora já enfeixado com verdade e sentimento, não se compara à monumentalidade da performance de Nina Hoss. Se em Phoenix (2014), de Christian Petzold, ela se desdobra num duplo de si mesma, e deixa transparecer a verdade ao final, cantando Speak low, aqui, como Lisa, ela segura o jorro de emoções, interpretando o papel da esposa, filha e mãe ao máximo, até entrar em erupção e virar apenas a schwesterlein, a irmãzinha do título original.

MOSTRA BRASIL



Casa de antiguidades
(2020), de João Paulo Miranda Maria
O Festival de Cannes não aconteceu, nem presencial nem virtualmente, mas em junho foram anunciados os filmes que teriam integrado a seleção oficial deste ano e lá estava o primeiro longa-metragem do realizador João Paulo Miranda Maria. Casa de antiguidades convoca a olhar para a ambiguidade a residir no seu título –  O que seria essa casa? Uma residência, uma cidade ou nosso corpo, já que tudo pode carregar marcas antigas das quais nem sempre conseguimos nos livrar? – e a um mergulho em um Brasil ficcional porém eivado de sintomas brutalmente reais.

Numa pequena cidade do Sul, uma ex-colônia austríaca onde as pessoas falam alemão e sonham com o separatismo, Christovam (Antonio Pitanga, excelente) é um operário de uma fábrica de laticínios que enfrenta o racismo diário e estrutural. Se ele silencia diante do patrão, seu corpo, no entanto, age, tal como se tomado pelo espírito do boi cuja máscara ele usa, e Christovam é capaz de atos violentos, tanto como consequência das brutalidades às quais sempre foi sujeito como por via de sobrevivência.

Destaque para a imponente presença cênica de Ana Flavia Cavalcanti, que interpreta uma mulher que cruza o caminho de Cristovam, e para a ambiência com ecos dos anos 1970 na cenografia e direção de arte, mas com o discurso como um petardo para o que vemos e vivemos hoje.

As órbitas da água (2019), de Frederico Machado
“O filme é a terceira parte da Trilogia Dantesca, que consiste em obras cujo norte são os versos do poeta Nauro Machado. Assim, privilegiam a poesia, numa tentativa de serem obras abertas, com busca por novas possibilidades subjetivas na narrativa e outras formas de olhar”, diz o realizador maranhense Frederico Machado a respeito desta coda para a sinfonia que é a Trilogia Dantesca –  O exercício do caos (2013) e O signo das tetas (2015). Para além da veia poética, burilada a partir da obra de Nauro, pai do cineasta, As órbitas da água traz outras marcas do cinema que Frederico abraça: a sensorialidade, o potente uso da trilha sonora como importante camada de sentidos, e não mero adorno, e o embate entre mente e corpo.

Still de As órbitas de água. Foto: Lume Filmes/Divulgação

Quando a câmera enquadra um casal (Antonio Saboia, de Bacurau, e Rejane Arruda, de O veneno da madrugada) sentado em um barco que desliza até chegar a uma diminuta vila de pescadores, somos apresentados à possibilidade do encontro entre os que vêm de fora e aqueles estagnados no tempo, como água de mar aprisionada em arrecifes. Quais os motivos para aquela visita? E o que dela resultará? Um desengate, uma ruptura, morte ou ressurreição? No poema Ano Novo, que funciona como uma cartela, reside uma das chaves possíveis para sorver, e nunca querer explicar, o universo criado pelo diretor: Estamos cheios de vida plena, a recolher a imensidão de um mar vazio/A vida sonha conosco só e mais ninguém/E como esplêndidos fogos de artifício, nos apagamos tão de repente.

LATINIDADES E COLONIALIDADES

Aranha (2019), de Andrés Wood
Em Machuca (2004), a ditadura chilena era percebida por duas crianças de classes sociais distintas que se aproximavam pouco antes do golpe que tiraria Salvador Allende da presidência e o mataria. O diretor Andrés Wood volta ao tema, dessa vez sob o prisma do grupo Pátria e Liberdade, uma organização de extrema-direita que foi instrumental para instaurar o clima de agitação e violência que derrubaria o governo socialista. Mas não é apenas uma mirada para trás partindo dos flashbacks que nos levam ao passado de Inés (Mercedes Morán, estupenda) e Gerardo (Marcelo Alonso); Aranha – cujo título deriva do símbolo da horda fascista – se desenrola, aliás, no presente, em que figuras que defendiam o aniquilamento de comunistas hoje mora em mansões e ocupam altos cargos em instituições públicas e o “fazer justiça com as próprias mãos” é saudado com aplausos.

Cena de Aranha. Foto: Divulgação

“Até quando vamos permitir que a esquerda escreva a História do país?”, esbraveja Inés em dado momento. O Pátria e Liberdade existiu de verdade. E esse filme, que remete a Nova ordem, de Michel Franco, que abriu a 44a Mostra, serve para nos lembrar como e por que o mesmo Chile que elegeu Allende em 1973 e Michelle Bachelet nos anos 2010 hoje é governado, pela segunda vez, pelo ultraliberal Sebastián Piñera - e como o Brasil, que é coprodutor de Aranha por meio da Pandora Filmes (Caio Blat, inclusive, está no elenco), hoje tem o atual presidente. Mas há resistência e o plebiscito que aprovou a mudança da Constituição elaborada pelo general Pinochet é prova disso. Como diria um grande líder da América do Sul, a luta continua. 

Panquiaco (2020), de Ana Elena Tejera
Cebaldo nasceu no Panamá, mas trabalha em uma cidade costeira, no norte de Portugal. Entre as memórias que carrega do seu país – ele é indígena dule, uma das etnias que constitui a identidade originária do povo panamenho – e o lugar onde mora, existe o mar. A imensidão simbólica da água não aparece apenas como um elemento estético neste que é o primeiro longa-metragem de Ana Elena Tejera, que estreou na Bright Future, uma das mostras do Festival de Rotterdam, e sim com pilar de condução narrativa.



Enquanto Cebaldo se permite levar pelas memórias, e assim viaja simbolicamente até sua terra natal, a diretora nos conta o mito de Panquiaco, que na cosmogonia dule é o indígena responsável por guiar o explorador espanhol Vasco Balboa pelas terras do Panamá até a descoberta do oceano Pacífico. Depois, Panquiaco teria desaparecido nas águas do mar. Quando seu protagonista efetivamente retorna ao solo onde nasceu, esvaem-se também as linhas entre o documentário clássico e a ficção. Mas, como bem diria Eduardo Coutinho, não estamos todos, sempre, nos reinventando e representando a si mesmos quando alguém nos aponta uma câmera?

                                                 ***

LUCIANA VERAS é repórter especial e crítica de cinema da Continente.

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