Cobertura

O céu de Berlim & os anjos a persistir

Sessão histórica no Berlinale Classic marca a estreia da cópia restaurada de 'Asas do desejo' (1987) e reafirma a experiência fílmica arrebatadora proporcionada pelo longa de Wim Wenders

TEXTO LUCIANA VERAS, DE BERLIM*

17 de Fevereiro de 2018

Imagem do clássico 'Asas do desejo' na projeção do Berlinale Classic, em 2018

Imagem do clássico 'Asas do desejo' na projeção do Berlinale Classic, em 2018

Foto Luciana Veras

Era uma noite de poucas estrelas no céu de Berlim, com a temperatura oscilando entre os já costumeiros 2 graus e um único grau para apertar os sobretudos e casacos, e na saída do metrô na estação Alexanderplatz algumas pessoas, como eu, perguntavam qual o caminho até o International. Dez minutos de caminhada pela Karl-Marx-Allée até chegar ao número 33 e lá estava o Kino International, uma das relíquias que pertenciam ao lado oriental da Berlim dividida pelo muro. Relógio marcava quase 21h da sexta, 16, e a sessão especialíssima estava agendada para 21h30. Mas havia um tapete vermelho, fotógrafos na porta e muita gente em busca de bilhetes para acompanhar uma das mais esperadas projeções do programa Berlinale Classic: a inauguração da cópia restaurada de Asas do desejo (1987), de Wim Wenders.

Quando todos se acomodaram nas poltronas azuis, encarando uma tela coberta com uma cortina prateada como os sonhos dos anjos do filme que deu a Wenders o prêmio de melhor direção em Cannes trinta anos atrás, o próprio diretor entrou acompanhado de uma inacreditável entourage - à frente, Bruno Ganz, que interpretava o anjo Damiel, e o compositor Nick Cave. Presenciar Wenders, Ganz e Cave juntos no mesmo palco, sendo saudados com carinho e efusividade por uma plateia que distorcia qualquer noção de sisudez germânica, já valia a Berlinale inteira. O que se viu depois, no entanto, ultrapassou a capacidade das palavras ou mesmo da produção de imagens. 

Asas do desejo (O título original, Der himmel über Berlin, significa “O céu sobre Berlim”) foi exibido “da maneira como era para ter sido mostrado em 1987”, explicou Wenders. “No filme, os anjos veem o mundo em preto e branco e os mortais, em cores. Nós rodamos o filme com dois negativos, porém, para chegar ao resultado final, precisamos combinar os dois negativos. De modo que a cópia que foi exibida em Cannes era a sexta geração a partir do negativo original, o que acarretava perda de nitidez, de contraste, de qualidade... O preto e branco nunca foi mostrado como deveria, para desespero de Henri Alekan, a quem tirei da aposentadoria para ser meu diretor de fotografia”, acrescentou o diretor.

Ao longo de um ano de trabalho, com recursos obtidos e gerenciados pela Wim Wenders Foundation, Asas do desejo foi sendo recuperado com “muito mais amor do que antes”, nas palavras do cineasta. Cada negativo original foi escaneado, cada efeito ótico foi refeito e, assim, uma nova matriz, na resolução 4K, foi gerada, com impressionante qualidade. E o parto se deu, justamente, na sessão do Kino International, com Bruno Ganz de lágrimas nos olhos e muitas pessoas da plateia felizes por ver, pela primeira vez, aquele icônico filme sobre e para Berlim no cinema.

Aliás, numa Berlinale que se concentra nos complexos cinematográficos e prédios arrojados da Potsdamer Platz, exibir Asas do desejo é provocar uma reflexão sobre a memória. No enredo, os anjos Damiel e Cassiel (Otto Sanders, já falecido, representado pela mulher e filhas na noite de sexta) vagueiam por Berlim, sendo percebidos apenas pelas crianças ou sentidos pelos que se encontram no desespero que precede a morte ou na agonia de uma extrema solidão. Quando Damiel se apaixona por uma trapezista de circo (Solveig Dommartin, musa e companheira do diretor, falecida em 2007), passa a nutrir a ideia de se tornar mortal. A necessidade de sentir algo vai além da lógica cartesiana do “penso, logo existo”. Os anjos de Wenders pensam demais, até, porém querem ter a experiência de vida, da epiderme, do contato, das sensações.... Afinal, do que lembraremos na hora de partir? Do que se sentiu.

Isso se aplica, também, à própria lembrança de Berlim evocada pelo filme. Há uma sequência em que Damiel acompanha um velho desmemoriado que busca por Potsdamer Platz. O velho não reconhece mais nada, lamenta que não consiga encontrar e se reencontrar naquela parte da cidade. No filme, um descampado, sem prédios, marca da arquitetura da destruição que cindiu Berlim na Guerra Fria. Hoje, um epicentro de serviços, transporte, comércio, vida. Como o motorista de táxi que me levou até lá me disse, “tudo que você precisar encontrar em Berlim, vai achar na Potsdamer Platz”.

A Berlim de 2018 é bastante distinta daquela filmada pelo alto por Wim Wenders. Os anjos, porém, seguem por aí e Asas do desejo, trinta anos depois, permanece uma experiência fílmica arrebatadora. Em tempos efêmeros, ou mesmo se pensarmos no Brasil com sua compulsão para a destruição da memória, o ressurgimento deste filme é um alento. Um conforto contra os golpes diários, uma ternura para quem vê no cinema uma via para questionar a vida. “Os filmes precisam ser donos de si mesmo, eles não pertencem a ninguém. Ninguém é dono, vocês são... E os anjos, claro”, bem disse Wenders numa mágica noite em que decerto criaturas aladas estavam a percorrer o céu sobre Berlim.

*A repórter especial viajou para cobrir o festival através de uma parceira entre a revista Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA).

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