Cobertura

O cinema e a representação da violência

'Tentei', Melhor Curta pelo Júri Oficial, e o longa 'O nó do diabo' despertam discussão no Festival de Brasília sobre a tradução imagética da crueldade

TEXTO Carol Almeida

25 de Setembro de 2017

'Tentei', dirigido por Laís Melo, aborda a violência doméstica

'Tentei', dirigido por Laís Melo, aborda a violência doméstica

FOTO Jandir Santin

O texto que se segue não existiria sem o tempo de escuta e reflexão – tudo ainda muito incipiente, vale ressaltar –, de conversas que circularam durante a edição a 50ª edição do Festival de Brasília. Não apenas aquelas registradas em espaços institucionais, ou seja, nos debates promovidos pela própria organização do evento, mas também pelas trocas que acontecem às margens desses espaços, em rodas de conversas, durante o café, almoço e a cerveja do fim de noite. Escrever isso parece desnecessário, redundante e, em certa medida, um prólogo que enfraquece o status de autoralidade das ideias, ao mesmo tempo que pode ser lido como uma tentativa de se eximir da responsabilidade de lançar essas ideias com uma assinatura própria.

A resposta a tudo isso é mais simples: não, as reflexões sobre a sessão que será discutida neste texto não ganhariam corpo sem que esse outro corpo coletivo de ideias e sensações não estivesse sendo posto sobre a mesa. E pela forma intensa como isso aconteceu, é possível afirmar que não foram poucas as pessoas que experimentaram grandes deslocamentos durante a semana do evento. Porque se os filmes devem existir neles próprios, o pensamento crítico sobre eles só consegue nascer quando entende que o cinema não é um objeto despregado da vida aqui e agora, e que ele acontece quando existe contato direto com as experiências diversas do sensível. Lamento a delonga, mas nesses tempos de voluntária dormência na confortável antessala da ignorância, explicar o óbvio parece cada vez mais necessário.

Tendo isso posto, a experiência de assistir ao curta e ao longa-metragem da quinta noite da Mostra Competitiva do festival, Tentei e O nó do diabo, respectivamente, foi bastante reveladora sobre algumas históricas permissões de representação da dor. Para usar do título do longa em questão, esse me parece ser um nó central nas conversas sobre uma certa repetição de imagens, instauradas pelo próprio cinema, que tentam representar a violência.

O curta paranaense Tentei, dirigido, roteirizado e montado por Laís Melo, que trabalha ao lado de uma diretora de fotografia (Renata Corrêa), de uma operadora de som direto (Débora Opolski) e de uma diretora de arte (Bea Gerolim), traz para o primeiro plano uma situação de violência doméstica familiar, direta ou indiretamente, a 10 entre cada 10 mulheres brasileiras. O plano que se abre mostra, com uma luz propositalmente fraca, um casal deitado na cama. Não conseguimos enxergar muito bem seus corpos, mas a posição estática deles já é por si só reveladora: ele dorme com a barriga virada pra cima, pernas e braços relaxados, pau descoberto pelo lençol. Ela, que não dorme, se encontra de lado, em posição fetal, vestida apenas com uma camisa. Já há ali o anúncio, para quem se dispor a escutar, que o corpo dessa mulher grita, silenciosamente, por socorro.

Nada dessa violência é dita ou mostrada, tudo é sugerido. Em como ela se levanta da cama, em como toma o café, em como veste a roupa. Todos os movimentos apontam para um corpo contido, bloqueado. A sequência-chave do filme, quando essa mesma personagem se dirige a uma delegacia de mulheres para fazer a denúncia de abusos e estupros que sofre do marido, vai gradativamente jogando um peso, que não consegue ser medido, sobre quem assiste ao filme.

O tensionamento do plano e contraplano entre ela e o funcionário da delegacia que fará o registro formal da denúncia é de deixar qualquer mulher fisicamente esgotada, tudo dói na cadeira do cinema. E isso acontece porque há um cuidado muito grande do filme em nos dizer tudo quando coloca em cena uma mulher que não consegue, ela mesma, dizer nada em voz alta. O incrível trabalho de tomar esse corpo embargado da mulher que é violentada dentro de casa e que, no protocolo burocrático da instituição patriarcal da Justiça precisa demonstrar provas de que sofre o que diz sofrer, fica com a atriz Patricia Savary. E é ela quem assume o controle do argumento da história no plano final do curta, filmado novamente dentro do espaço doméstico da dor não-dita.

Vemos aos poucos a mulher perder o controle desse corpo que não aguenta mais, que não pode mais, que cospe a dor pra fora em uma raiva contra si mesma, contra o mundo e, finalmente, contra a própria câmera de cinema, coberta pelo pedaço de pano que ela joga sobre nós. Entra a tela escura e, finalmente, vemos o título do filme: Tentei. No único desfecho possível do curta, a diretora assume o gesto político e cinematográfico de afirmar que aquela dor não pode ser filmada, não pode ser vista por nós. Ela não pode ser representada. E, no entanto, há ali um filme poderoso sobre essa impossibilidade.

'O nó do diabo', horror revisita os fantasmas da escravidão no Brasil. Foto: Vermelho Profundo

Chega-se então ao longa da noite: O nó do diabo. Pensado originalmente como uma série de TV e, portanto, filmado separadamente em cinco episódios, o longa se monta como um horror dedicado a atravessar o tempo visitando os fantasmas da escravidão no Brasil. Pela própria demanda do gênero fílmico em que se insere, esse trabalho inevitavelmente apresenta situações, enquadramentos, luzes e estereótipos de personagens que estão ali para demarcar o território da linguagem do horror. Responsáveis pela direção desses episódios (e por boa parte do roteiro), quatro homens: Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé, Gabriel Martins, sendo este último o único homem negro e também o único realizador de fora da produtora paraibana Vermelho profundo, especializada em fazer filmes de gênero.

Num movimento reverso do tempo, que vai do contemporâneo em direção ao passado – os episódios, localizados em espaços temporais distintos, começam em 2018 e caminham rumo a 1818, O nó do diabo tem somente dois personagens que costuram a trama como parte de um mesmo conjunto: um senhor de engenho, aqui chamado de Vieira (vivido pelo ator Fernando Teixeira), e a Casa Grande desse mesmo senhor, ela mesma uma força imperiosa que age diretamente sobre as pessoas que passarão por seus recintos. A premissa que move a narrativa é uma só: fazer um filme/série de horror sobre o horror que foi a escravidão no país e o horror que continua sendo as manifestações de sua herança. Usar as ferramentas que a própria linguagem exerce para lidar com os demônios e fantasmas que atravessam nosso inconsciente coletivo.

A questão então se põe central: é possível dar a ver o horror se usando de estratégias do horror enquanto gênero? Corra!, de Jordan Peele, responderia que sim. Mas Corra!, ao contrário de O nó do diabo, é um filme que usa algumas dessas ferramentas de linguagem a serviço de um personagem que é meticulosamente desenvolvido ao longo de toda a história. O que acontece com a produção paraibana é um processo inverso: os personagens estão a serviço da linguagem a ponto de, em vários momentos, estabelecer problemáticas associações racistas em nome dessa linguagem.

O problema começa pela própria estrutura episódica do filme, que impede que qualquer personagem negro seja, de fato, uma construção para além de uma alegoria pontual. Nos episódios dois, três e cinco há um protagonismo feminino potente, mas que é logo cooptado por aquilo que, nesse tipo de cinema, parece ser uma inevitável sina: todas elas são espécies de bruxas ou fios condutores de forças mágicas e sobrenaturais que, num filme de terror, nunca são exatamente positivas – e aqui é preciso registrar que O nó do diabo abre várias fendas para que o público leigo faça conexões fáceis e rápidas entre as religiões de matriz africana com um ritualístico de “magia negra”.

É preciso salientar que há também aqui um trabalho de atuação que, certamente, não exigiu pouco dessas mulheres e homens que se colocaram à disposição para reencenar imagens absolutamente violentas contra seus próprios corpos – ver um ator negro (Alexandre Sena) colocando no rosto uma Máscara de Flandres ou uma atriz negra (Miuly Felipe Da Silva) levando chicotadas nas costas são imagens que precisam ser muito discutidas para saber até que ponto suas representações trabalham na chave da denúncia ou estão ali apenas para reiterar um certo gozo sádico e branco sobre aquelas imagens. E que assim como é inegavelmente importante que uma atriz como Zezé Motta consiga reescrever ela mesma a Dandara de Palmares de Quilombo, de Cacá Diegues, é essencial que duas jovens atrizes negras como Cíntia Lima e Isabél Zuaa rearticulem suas próprias histórias a partir dessa encenação ao lado de Zezé Motta.

De maneira geral, o terror psicológico que consome o corpo dos personagens, as alucinações circulares que aprisionam todos no mesmo pesadelo, as referências a clássicos do gênero (Carrie, a estranha e praticamente toda a filmografia de George A. Romero), as sombras e o medo do que está do outro lado da parede são elementos da linguagem muito bem filmados por todos os diretores envolvidos, mas esse bem filmar serve a que? Ou a quem? Porque há outro problema grave que surge da estrutura fragmentada do filme. Ela impossibilita o momento catártico que tanto se espera – tal como ele acontece em Corra!, para citar a referência mais próxima. Mesmo quando, no episódio três, visualizamos as lentas mortes de dois senhores de engenho (mas somos privados da imagem, essa sim libertadora, de uma mulher negra cortando o pescoço do homem branco) ou quando, no episódio quatro, em um momento de delírio um dos homens escravizados é filmado frontalmente matando com uma pedra esse mesmo homem branco que se repete em nossa História, o ápice dramático é rapidamente dissolvido com a introdução de um novo arco.

No último episódio do filme, que se passa em 1818, há um esboço mais forte dessa catarse. Mas se finalmente há a chance desse passado vingar o que ainda se vive no presente, isso se perde completamente a partir do momento em que o filme faz um perigosíssimo gesto ao invocar um exército de zumbis, sendo estes ex-escravos mortos pelos homens brancos, para um enfrentamento final. Como a História nos conta de todo um discurso “racionalista” dos colonizadores em afirmar que os corpos negros deveriam ser escravizados porque eram corpos sem alma e, portanto, corpos-zumbis, há aí uma decisão bem arriscada, para não dizer problemática, nessa sequência. Na instiga de usar premissas clássicas do gênero horror para dar conta de dores e violências reais extremas, O nó do diabo reforça várias vezes a presença desse nó histórico na própria estrutura colonizada de representação.

É curioso como existe, na academia, um amplo debate, sobre uma possível irrepresentabilidade da Shoah, leia-se, do Holocausto. A literatura, as artes plásticas e, muito particularmente, o cinema volta e meia disparam o gatilho para que a discussão seja retomada e que a famosa frase de Adorno – a “impossibilidade de escrever poesia após Auschwitz” – entre na roda a ponto de se entender hoje a própria existência concreta do Holocausto a partir dessa conversa sobre a estetização e banalização de uma memória violenta. Aponto o fato como “curioso” porque esse é um debate que ainda parece não ter se estendido ao “outro” genocídio da civilização ocidental.

É perfeitamente compreensível que, na ânsia de reivindicar um novo imaginário sobre esses eventos que costumavam até então serem ditos pelos opressores – “as definições pertencem aos definidores, não aos definidos”, escreveria Toni Morrison –, o cinema nacional feito pelas margens também incorra na possibilidade do erro (que ainda assim agora é uma possibilidade, e não apenas uma negação) quando pisa nessa areia movediça que é a representação de uma dor que é, em vários níveis, irrepresentável.

Que não se confunda esse debate, como tem acontecido, com uma censura ou a confortável criação de um cinturão de obras “certas” e “erradas”, que a disputa de narrativa não apenas existe, como é vital existir e que a discussão sobre as formas de representação precisa acontecer como uma força que vem de dentro da criação, uma capaz de mover a arte – tal como há muito tempo acontece com obras que fazem referência ao Holocausto –, e não como um bloqueio do exercício da ficção. E finalmente que, às vezes, a impossibilidade de algumas representações, como bem ensina o curta Tentei, é capaz de criar ela mesma alguns armagedons.

 

Lista completa dos vencedores do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro:

Prêmios oficiais

Troféu Candango - Longa-metragem

Melhor filme: Arábia, dirigido por Affonso Uchoa e João Dumans
Melhor direção: Adirley Queirós por Era uma vez Brasília
Melhor ator: Aristides de Sousa por Arábia
Melhor atriz: Valdinéia Soriano por Café com canela
Melhor ator coadjuvante: Alexandre Sena por Nó do diabo
Melhor atriz coadjuvante: Jai Baptista por Vazante
Melhor roteiro: Ary Rosa por Café com canela
Melhor fotografia: Joana Pimenta por Era uma vez Brasília
Melhor direção de arte: Valdy Lopes JN por Vazante
Melhor trilha sonora: Francisco Cesar e Cristopher Mack por Arábia
Melhor som: Guile Martins, Daniel Turini e Fernando Henna por Era uma vez Brasília
Melhor montagem: Luiz Pretti e Rodrigo Lima por Arábia
Prêmio especial do Júri: Melhor ator social para Emelyn Fischer, por Música para quando as luzes se apagam
Júri Popular – longa-metragem: Café com canela, dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio
Prêmio Petrobras de Cinema para o melhor longa-metragem pelo Júri Popular: Café com canela, dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio

Troféu Candango - Curta-metragem

Melhor filme: Tentei, dirigido por Laís Melo
Melhor direção: Irmãos Carvalho por Chico
Melhor ator: Marcus Curvelo por Mamata
Melhor atriz: Patricia Saravy por Tentei
Melhor roteiro: Ananda Radhika por Peripatético
Melhor fotografia: Renata Corrêa por Tentei
Melhor direção de arte: Pedro Franz e Rafael Coutinho por Torre
Melhor trilha sonora: Marlon Trindade por Nada
Melhor som: Gustavo Andrade por Chico
Melhor montagem: Amanda Devulsky e Marcus Curvelo por Mamata
Prêmio%u200B %u200Bespecial: Peripatético, dirigido por Jéssica Queiroz
Júri Popular – Curta-metragem: Carneiro de ouro, dirigido por Dácia Ibiapina

Outros prêmios

Prêmio Canal Brasil: Chico, dirigido por Irmãos Carvalho
Prêmio Abraccine de melhor filme de longa-metragem: Arábia, dirigido por Affonso Uchoa e João Dumans
Prêmio Abraccine de melhor filme de curta-metragem: Mamata, dirigido por Marcus Curvelo
Prêmio Saruê: Afronte, direção de Marcus Azevedo e Bruno Victor
Prêmio Marco Antônio Guimarães: Construindo pontes, dirigido por Heloísa Passos
Prêmio ABCV – Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo: Marco Curi, Manfredo Caldas e Gerlado Moraes
Prêmio CiaRio/Naymar Para o melhor curta pelo Júri Popular: Carneiro de ouro, dirigido por Dácia Ibiapina

Mostra Brasília - 22º Troféu Câmara Legislativa do Distrito Federal

Prêmios do Júri Oficial

Melhor longa-metragem (R$ 100 mil): O fantástico Patinho Feio, dirigido por Denilson Félix
Melhor curta-metragem (R$ 30 mil): UrSortudo, dirigido por Januário Jr. e Tekoha – Som da Terra, dirigido por Rodrigo Arajeju e Valdelice Veron
Melhor direção (R$ 12 mil): Dácia Ibiapina, por Carneiro de ouro
Melhor ator (R$ 6 mil): Elder de Paula, por UrSortudo
Melhor atriz (R$ 6 mil): Rafaela Machado, por Menina de barro
Melhor roteiro (R$ 6 mil): Januário Jr., por UrSortudo
Melhor fotografia (R$ 6 mil): Gustavo Serrate, por A margem do universo
Melhor montagem (R$ 6 mil): Lucas Araque, por Afronte
Melhor direção de arte (R$ 6 mil): Bianca Novais, Flora Egécia e Pato Sardá, por O Menino Leão e a Menina Coruja
Melhor edição de som (R$ 6 mil): Maurício Fonteles, por Tekoha – Som da Terra
Melhor trilha sonora (R$ 6 mil): Ramiro Galas, por O vídeo de 6 faces

Prêmios do Júri Popular

Melhor longa-metragem (R$ 40 mil): Menina de barro, dirigido por Vinícius Machado
Melhor curta-metragem (R$ 10 mil): O Menino Leão e a Menina Coruja, dirigido por Renan Montenegro
Prêmio Petrobras de Cinema - Para o melhor longa-metragem pelo Júri Popular da Mostra Brasília: Menina de barro, dirigido por Vinícius Machado
Prêmio Plug.in Para o melhor longa-metragem escolhido pelo Júri Popular da Mostra Brasília: Menina de barro, dirigido por Vinícius Machado
Prêmio CiaRIO de melhor longa-metragem escolhido pelo Júri Popular da Mostra Brasília: Menina de barro, dirigido por Vinícius Machado
Prêmio CiaRIO de melhor curta-metragem escolhido pelo Júri Popular da Mostra Brasília: O Menino Leão e a Menina Coruja, dirigido por Renan Montenegro

FestUniBrasíla - 1º Festival Universitário de Cinema de Brasília

Melhor filme: O arco do medo, dirigido por Juan Rodrigues (Universidade Federal do Recôncavo Baiano)
Melhor direção: Fervendo, dirigido por Camila Gregório (Universidade Federal do Recôncavo Baiano)
Júri Popular: O homem que não cabia em Brasília, dirigido por Gustavo Menezes (UnB)
Menção Honrosa – Método de construção criativa: Afronte, dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo (UnB)
Menção honrosa – Fotografia: Gabriela Akashi, por Serenata (USP)
Menção Honrosa – Filme de animação: Mira, dirigido por Janaína da Veiga (Unespar)

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