Cobertura

Quando uma mulher negra se mexe

Ocupando um lugar que lhes é de direito, autoras negras deram o recado na Festa Literária de Paraty, com debates e o lançamento de um catálogo emblemático para o feminismo negro, para o país

TEXTO Mariana Filgueiras

04 de Agosto de 2017

A escritora Ana Maria Gonçalves dividiu mesa na Flip com Conceição Evaristo, prestando um tributo a outras vozes de mulheres negras

A escritora Ana Maria Gonçalves dividiu mesa na Flip com Conceição Evaristo, prestando um tributo a outras vozes de mulheres negras

Foto Walter Craveiro/Divulgação

“Uma sobe e puxa a outra.” A frase, recorrente em manifestos e bandeiras dos movimentos feministas negros, virou uma espécie de slogan informal da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), dos principais eventos culturais do país, que aconteceu na última semana. Assim como outra que foi citada pela escritora Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor (Record), de Angela Davis: “Quando uma mulher negra se mexe, toda a sociedade mexe junto”.

Foi exatamente o que aconteceu em Paraty. Depois de fazerem muito barulho na edição anterior – enviando cartas, fazendo manifestos e estimulando um debate público –, quando notaram que o evento não tinha convidado nenhum autor ou autora negra para as mesas principais de debates, as integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) estavam em peso desta vez. Mas não por concessão, como salientou a escritora e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Conceição Evaristo.

“Esse lugar é nosso por direito”, cravou ela ao microfone, durante sua apresentação. “Só estamos aqui por causa de um trabalho coletivo. Eu não cheguei aqui sozinha, mas por força de um grupo de mulheres negras. Quero deixar bem claro que não foi uma concessão”.

“A INVISIBILIDADE É A MORTE EM VIDA”
O trabalho do grupo foi marcante no evento não só pela presença das autoras negras, como também pelo lançamento de um catálogo com referências de 181 intelectuais negras brasileiras em todas as áreas de atuação: da Física à Música, da Sociologia à Medicina, da Literatura ao Direito.

“Esse catálogo tem o objetivo de servir como um guia de referência para a contratação de profissionais negras, que ainda têm dificuldade de imersão no mercado de trabalho”, comentou a professora de Educação da UFRJ Giovana Xavier, idealizadora do projeto, que já está disponível em PDF. “Não é uma resposta à polêmica do ano passado. É uma política de construção de direitos para mulheres e tem um sentido político afirmar isso numa festa literária”, completou.

“A invisibilidade é a morte em vida, sigamos visíveis”, bradou também Conceição Evaristo, com mais uma frase memorável para o rol da festa literária. “Com a colonização, a gente sabe o quanto a nossa cultura foi negada, e trazer um catálogo desses é apresentar nossa produção de pensamento. Não estamos deslegitimando nada, a gente quer reconfigurar o mundo e isso passa pelas nossas vozes”, defendeu a pesquisadora Djamila Ribeiro, também presente ao lançamento, que reuniu mais de 300 pessoas na Casa Amado Saramago.

Durante a Flip, em diferentes mesas de debates, foram lembrados ainda outros projetos correlatos. O professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Edimilson Pereira citou o projeto Literafro, um portal que aglutina todo tipo de informação sobre a literatura produzida por autores negros no Brasil, criado e coordenado pelo professor Eduardo de Assis Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A própria Conceição Evaristo lembrou-se do projeto Cartas Negras, criado por ela e pelas escritoras Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães e Miriam Alves, no início dos anos 1990, em que as quatro trocavam cartas entre si falando sobre machismo, racismo e solidão. O projeto foi retomado este ano pelo Itaú Cultural, em São Paulo, com novas convidadas, autoras como Lívia Natália ou Ana Maria Gonçalves. Uma sobe e puxa a outra.

Leia na íntegra a carta de Ana Maria Gonçalves a Conceição Evaristo:

CONCEIÇÃO,

Obrigada pelo convite para me juntar a você, Miriam, Esmeralda, Sônia e Geni. E Ana e Cristiane e Elizandra e Jennyffer e Lívia e Mel e Raquel e Débora.

E tantos outros nomes que me vêm à cabeça, girando nesta ciranda de letras que você nos propõe, até a zonzura. Um amigo me ensinou que qualquer outro nome para esta falta de chão, esta falta de rumo que a gente atinge quando roda-roda-roda-roda-roda-roda-roda-oda-oda-oda-oda-da-da-da-a-aaaaaaa é branco demais. Que seja, então: zonzura. Talvez o silêncio, talvez a distância, talvez o tempo faça a gente girar em sentido contrário, fora do eixo, do prumo, do sentido apontado por estes passos que seguimos. Ajustemos os corpos, pois!

Sentemos em roda. Seja falando todo mundo junto, neste arrebatamento feroz de vida e de ação que nos consome, seja parando para a escuta que é mais que colo, seja no silêncio que nos faz ler olhos em vez de bocas; sentemos em roda. Para que nos olhemos mais. Para que fechemos os olhos e deixemos o corpo pender para um lado e para o outro, sabendo que terá apoio.

Para que sintamos necessidade de rir, e chorar, e cantar, e dançar, e brindar, e comer e ser quem somos sendo também a outra. Nesta capacidade incrível de transmutação que os corpos negros, quando juntos, parecem resgatar de uma tradição que atravessa o tempo, que atravessou outros corpos, que nos atravessa, que nos remete para o futuro. E que mais ninguém sabe fazer igual, porque é também jogo, mandinga, malícia. É o que você fala da capoeira.

Escrevo hoje, então, me dizendo presente. O que posso levar?

Tenho aqui agora, ao alcance das mãos, um xale que foi da minha avó, um vidrinho contendo água do mar que banhou por um instante uma praia no Senegal, trazido por uma amiga que levo em memória para a roda, dois batons vermelhos, uma folha de árvore que eu trouxe da rua sem querer, emaranhada nos cabelos, uma figa, uma caixa de fósforos que serve também para batucar, uma vontade imensa de saber sempre e mais de vocês.

Axé, irmã. Até muito, muito, muito breve.

Um chêro, 

Ana


MARIANA FILGUEIRAS, jornalista do Rio de Janeiro, mestranda em Literatura na Universidade Federal Fluminense.

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