Cobertura

Resistência como persistência

Diferente de filmes exibidos no Janela que reforçam a ideia de resistência como ação e oposição, ‘Los silencios’ traz imaginário sul-americano para falar sobre o que permanece além-vida

TEXTO Alan Campos

12 de Novembro de 2018

'Los silencios' foca em uma mãe e dois filhos que fogem dos conflitos armados da Colômbia

'Los silencios' foca em uma mãe e dois filhos que fogem dos conflitos armados da Colômbia

Foto Juliana Vasconcelos/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online | nov 2018]

Em 2018, o Janela Internacional
de Cinema do Recife foi permeado por filmes que abraçam a ideia de resistência como ação; como condição em uma sociedade que oprime de diversas maneiras, operando com o sentido de “opor-se”. Resistir como sinônimo de uma energia que reconfigura os corpos para uma nova realidade, endurecendo-os para o confronto.

Os dois títulos que nomearam os programas de curtas nacionais em competição – Depois da Derrota e Proteja seus Amigos – abarcam fortemente a noção de uma reorganização como resistência contra forças reacionárias. Já no longa Inferninho (dir. Guto Parente, Pedro Diogenes, 2018), seus diretores localizam, em um bar de estrada, os afetos que articulam o amor e a vontade de não perecer como catalisador para Deusimar (Yuri Yamamoto) seguir em frente, para além da amargura da vida.

Resistir não é uma fagulha destinada a ser apagada por ventos tempestuosos, tampouco uma chama que, ao ser acesa, destina-se a sumir. Resistir é uma potência que mobiliza os corpos, que os prepara para o que está por vir – seus efeitos não cessam, mas se atualizam constantemente. Uma configuração que nasce de emoções muito fortes, do calor intenso, que existe para deixar suas marcas no tempo. Não se resiste por breves momentos, mas por longos tempos, pois uma vez alterados, os corpos não retornam a uma configuração pré-existente, mas se tornam abarcados pela memória, pela intensidade que os marcou.


Cena de Inferninho. Foto: Still do filme/Divulgação

Em sua curadoria, o Janela entendeu a necessidade de se carregar de filmes que marcam o momento de virada, filmes focados no instante do resistir, porém Los silencios (dir. Beatriz Seigner, 2018) reverte o significado da resistência em “opor-se” para o de “persistir” ou “durar”; sendo um filme devidamente encaixado em um tempo mais amplo, no momento em que os efeitos de uma resistência são sentidos enquanto uma persistência.

O filme de Beatriz Seigner foca em uma mãe e dois filhos que fogem dos conflitos armados da Colômbia e chegam à “Ilha da Fantasia”, região fronteiriça entre Brasil, Colômbia e Peru. O pai e a filha foram mortos no confronto armado, e a família vê na ilha uma possibilidade de recomeço. Entretanto, Los silencios não vê o recomeço como um ponto zerado para algo novo – ele enxerga passado e presente como indissociáveis, com este último estando carregado por forças e memórias jamais superadas. Portanto, o pai (Enrique Diaz) que vaga pela nova casa e conversa com sua esposa não é uma presença vista com estranhamento. Os mortos não são mudos, eles são apresentados e, por consequência, enquadrados em espaço igual ao dos vivos, uma vez que o plano ontológico do filme não os distingue em sua relação a um tempo presente permeado por fantasmas, memórias e narrativas.

Em vez de desenvolver uma relação calcada no estudo de personagem, Los silencios enxerga Amparo (Marleyda Soto) como uma figura igual a muitas outras – mães em fuga da violência. Narrativas da América do Sul. Há uma recusa em abordar uma cronologia específica dos personagens, em favor de inseri-los em um drama muito maior, encenado no ritual da última cena. Persistir em comunhão, abraçando os personagens da ilha (interpretados pelos moradores reais dela) como pedras brutas que, em suas existências, nos levam a acreditar que sempre estarão ali, ou melhor, que sempre estiveram lá, persistindo no rio, subsistindo da terra e da água. O grande mérito de Beatriz Seigner é suscitar a presença dessa terra e desse rio como enraizados para além do espaço geográfico delimitado.

Há uma sensação de anacronismo em Los silencios, não somente por sua narrativa de vivos e mortos (e vice-versa), mas ainda pelo espaço geográfico estar tão deslocado de uma história canônica, que ele mais parece um palco onde se opera uma narrativa que sentimos já ter sido vista em outros lugares. A diretora soube captar tão bem os afetos de uma comunidade isolada, para a partir deles fazer surgir uma rede de historicidade relativa ao nosso continente. Justamente em uma ilha no meio de três países, fez-se surgir as injustiças sociais e o genocídio que se abate nas minorias étnicas. O filme não se reporta a estes de maneira discursiva, mas enquanto uma arcabouço afetivo que acessa um imaginário latino-americano.


Em Los silencios, vivos e mortos convivem em um mesmo plano.
Foto: Divulgação


Ao concentrar sua narrativa em uma família povoada por fantasmas, Beatriz Seigner descobriu uma América Latina plural, temerosa pela violência e em busca de sossego com seus mortos mais vivos do que nós mesmos. Enquanto documento histórico, este é um filme que nos faz ouvir e sentir aqueles que foram erradicados pela brutalidade, reconhecendo-os enquanto merecedores de um mesmo espaço que nós. Mas como um documento histórico anacrônico, o filme nos mobiliza a um deslocamento pelos diferentes tempos de uma América do Sul – uma povoada por desejos de recomeços, partilhas afetuosas entre sujeitos que parecem persistir por séculos, angústias incessantes e o medo do que está por vir.

ALAN CAMPOS é formado em Cinema pela UFPE e atualmente está concluindo seu mestrado em Comunicação pela mesma universidade. Já atuou como crítico em alguns sites e blogs e participou de algumas produções audiovisuais locais.

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