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Sergipe: O embate entre negros e índios

Festa do Lambe Sujo x Caboclinho ocorre anualmente, no segundo domingo de outubro, no município de Laranjeiras, interior do Estado, e tem cerca de dois séculos de história

TEXTO ANA LIRA
FOTOS ALEJANDRO ZAMBRANA

01 de Dezembro de 2010

Imagem sintetiza o sentido da festa, que encena conflitos entre povos sujeitados

Imagem sintetiza o sentido da festa, que encena conflitos entre povos sujeitados

Foto Alejandro Zambrana

Um cheiro de melado vai chegando de mansinho à feira-livre, quando a manhã ilumina a cidade de Laranjeiras, em Sergipe. Pelo aroma, os vendedores sabem que é hora do Esmolado e preparam as suas doações. Um negro alto, com a pele brilhosa, vem amarrado pela cintura e estende uma cesta de compras aos comerciantes. Atrás dele, um índio de pele vermelha sustenta a corda durante o trajeto, que consiste em percorrer todas as bancas até que frutas, verduras, pedaços de carne, arroz, feijão e mesmo dinheiro sejam arrecadados pela dupla.

O Esmolado é o ritual que sinaliza o embate entre negros e índios, na encenação da Festa do Lambe Sujo x Caboclinho, que ocorre a cada segundo domingo do mês de outubro, no interior de Sergipe. A festa dramatiza a guerra entre os índios que, sob a proteção dos jesuítas, rejeitaram o trabalho nas lavouras dos engenhos da região e os negros que, para fugir dos maus-tratos da escravidão e se vingar dos senhores de engenho, construíam quilombos em terras indígenas.

Prometendo liberar as terras dos negros, os senhores trocavam favores com as tribos e agregavam guerreiros aos grupos, liderados por capitães-do-mato, até destruírem todos os quilombos localizados na região e enfraquecerem as tribos. Essa foi uma das táticas utilizadas para manter vivo o sistema escravocrata que, nas terras férteis de massapê e com acesso portuário privilegiado, garantiram durante quase três séculos o crescimento do comércio, a exploração da cultura da cana-de-açúcar, do coco e do gado nos engenhos.


Os lambe-sujos usam uma mistura de ingredientes que dão a coloração escura à pele e remontam à origem nagô



A cidade que hoje recebe o nome de Laranjeiras foi fundada em 1605, na região do Vale do Cotinguiba, distante cerca de 23 km de Aracaju. É a segunda cidade mais antiga de Sergipe e guarda um dos principais acervos da arquitetura colonial do estado. Este legado é da época em que ela foi um dos mais ricos distritos sergipanos, atraindo a elite política, econômica, científica e artística da região. Assim perdurou até o final do século 19, quando uma manobra política deu o título de capital a Aracaju e transferiu as benesses para o novo centro político.

PATRIMÔNIO IMATERIAL
À cidade, além do patrimônio barroco a da experiência de grande centro comercial, foi deixada a herança cultural e religiosa dos negros que permaneceram na cidade. Laranjeiras é considerada um dos berços da cultura negra sergipana e seus traços aparecem desde a representação étnica até os diversos festejos e rituais que ocorrem no calendário local. Entre os elementos que mais se destacam, estão traços oriundos da tradição nagô, que influenciam manifestações populares como o cortejo das Taieiras, realizado em janeiro, e a tradição do Lambe-Sujo x Caboclinho.

As origens da encenação podem ter até dois séculos de história. O que se vê, a cada segundo semestre em Laranjeiras, é uma intensa movimentação para a festa. Os mestres Zé Rolinha e Nininho, que coordenam os grupos dos lambe-sujos e dos caboclinhos, respectivamente, vão convocando os integrantes para organizar vestimentas, instrumentos e preparativos para os cortejos e os embates que ocorrerão na festa.

Os lambe-sujos apresentam-se como um grupo cultural de origem nagô. O nome foi dado porque eles utilizam um pó preto misturado com sabão em pó e água para fazer a base negra sobre a pele e depois aplicam mel de cabaú para dar o brilho forte que é característico do grupo. Quando a cidade possuía um alambique, os participantes pilavam carvão e peneiravam para fazer a tinta. Depois, o carvão foi substituído por xadrez – um material utilizado pelos pedreiros para colorir piso – que é adquirido na cor preta.


O último confronto entre os dois grupos culmina com a prisão dos negros

A pele negra ganha grande destaque na rua porque os lambe-sujos trajam um bermudão e uma gurita vermelhos e têm como instrumento de luta uma foice feita de madeira pintada de preto. As roupas são confeccionadas em flanela, mas houve épocas da história da festa em que, na falta de dinheiro para adquirir esse tecido, panamá ou qualquer outro, os brincantes utilizavam sacos de açúcar para fazer as vestimentas. O tom vermelho era obtido tingindo o tecido com mangue (tinta) de sapateiro.

Durante o cortejo, os lambe-sujos tocam instrumentos de percussão como atabaque, pandeiro, cuíca, ganzá, caceteira. Há algumas décadas, eles ainda eram feitos artesanalmente, com couro de boi ou de onça. Porém, nos últimos 50 anos, os participantes começaram a utilizar instrumentos de fabricação industrial. Os cantos são de domínio público e as melodias são ritmadas em maxixe e maracatu – que nada têm a ver com o baques executados em Pernambuco ou com outras variações de toques que são encontradas pelo Brasil.

A única semelhança entre os lambe-sujos e os caboclinhos é o uso do mel de cabaú para dar brilho à pele, uma vez que a base da cor do xadrez utilizada pelos índios é vermelha. A simplicidade das roupas dos lambe-sujos contrasta com a roupa elaborada dos caboclinhos, que trazem referências à história da colonização do Brasil. Os cinturões, braceletes e cocares são adornados com penas de pavão ou de peru, miçangas, pedras, cordões dourados, moedas, entre outros. Uma união que, segundo o mestre Nininho, é uma forma criativa de lidar com o imaginário deixado pela ocupação do Brasil e os conflitos entre negros e índios nas terras sergipanas.

Os arcos e flechas utilizados pelos caboclos são feitos com bambu, taquara ou cipó de goiabeira. Os instrumentos seguem o mesmo padrão de fabricação do grupo negro, mas como os caboclinhos participam da festa tocando apenas marchas de guerra, elesutilizam tambor e caixa como elementos percussivos. O desfile dos indígenas émais comedido, com os participantes andando em fila e entoando cantos de batalha. Não tem a sensualidade do maxixe e nem as brincadeiras que permeiam o cortejo dos negros.


No desfile, os caboclos usam elementos de percussão e entoam marchas de guerra

Assim, os caboclos agregam um número grande de crianças e pré-adolescentes no grupo. E esta é quase uma regra na tradição do festejo: os mais novos começam nos caboclinhos e, quando estão perto da maioridade, migram para os lambe-sujos. Poucos são os que iniciam entre os negros desde cedo. Há relatos de participantes que fugiam da casa dos pais, fazendo a famosa “cama de travesseiros”, para apreciar a festa. A força dos lambe-sujos é tão expressiva que, dias antes do encontro, as pessoas circulam com guritas vermelhas pelas ruas de Laranjeiras.

DIAS DE FESTA
Para acompanhar toda a encenação é preciso chegar ao município dois dias antes. O Esmolado sai às ruas na véspera do cortejo principal, às 5h da manhã. Os alimentos arrecadados são entregues na casa do rei dos lambe-sujos para o preparo da tradicional feijoada, que é servida no dia da festa. A quantia em dinheiro recebida pelos dois integrantes do Esmolado é dividida entre eles, o que faz com que o posto seja almejado por vários participantes dos grupos.

Após o Esmolado, os lambe-sujos se preparam para ir à mata colher taquara e folhas de pindoba para  construir a cabana que abrigará a batalha final. Logo após o almoço, eles seguem em direção à saída da cidade e atravessam o riacho Tramandaí em busca do material. A taquara é uma espécie similar ao bambu, mais grossa, que não armazena água. Para as folhas não murcharem antes do final do embate, ela é sempre cortada na véspera do cortejo.

A tarde do sábado, em geral, é dedicada à montagem da cabana, que hoje é construída no Largo do Quaresma, às margens do rio Cotinguiba. O processo de reurbanização da cidade forçou a festa a se adequar às exigências do município e, alguns dos locais onde os ritos e embates foram realizados no passado, hoje não são mais usados. Toda a festa, em si, vem passando por diversas mudanças. A população costumava deixar comida nas sacadas das casas para que os negros “roubassem” no alvorecer e depois procurassem os donos para negociar a devolução dos pertences. Hoje, isso não acontece mais e muitos participantes sentem saudades dessa etapa da encenação.


A tradicional feijoada é servida para negros e caboclos

LAPADA DE TAQUEIRO
O que existe de mais forte atualmente no festejo é a celebração na rua, que vira a noite do sábado para o domingo, aguardando o início do cortejo com a Alvorada. Pela simbologia da festa, a Alvorada é a tomada das terras de Laranjeiras pelos negros. Por volta das 3h da manhã, os lambe-sujos se concentram na frente da casa do mestre Zé Rolinha. Organizados em fila, eles esperam a ordem do rei para invadir a cidade. Ninguém se habilita a sair do lugar para evitar uma lapada dos taqueiros.

Na festa, o taqueiro tem papel semelhante ao do feitor ou do capitão-do-mato, que, armado de chicote de couro cru e ponteira, garante que nenhum lambe-sujo saia do território estabelecido e nem que o povo invada a área do cortejo dos negros. A atuação dos taqueiros causa perplexidade a quem a vê pela primeira vez, porque as chicotadas são verdadeiras. Eles batem no chão e no ar para abrir caminho para o grupo e quem estiver na frente pode sair com o corpo marcado.

Quando o desfile da Alvorada começa, às 4h da manhã, e os lambe-sujos invadem a cidade, a relação com os taqueiros vira uma das atrações principais. A população corre, grita e instiga a atuação dos quatro feitores, que distribuem chicotadas entre sorrisos, olhares fortes e boas doses de ironia e sensualidade. A atuação deles, contudo, não pode ser vista apenas pela perspectiva da crueldade dos capitãesdo- mato, como ocorria pela tradição, porque a própria performance da festa agrega um tom de resistência e de fetiche às lapadas que cortam o ar. Não é raro ouvir jovens provocando os taqueiros. “Quero ver, bate!” é uma das frases mais ouvidas durante o caminho.

O cortejo percorre parte do centro urbano de Laranjeiras. A população acompanha ou observa da sacada das casas. Cantos como “Samba nêgo/ branco não vem cá/ se vier/ pau há de levar” são entoados durante o percurso, que chega a ter 1h30 de duração. Os lambe-sujos, então, se recolhem para preparar o segundo desfile, que ocorre no meio da manhã. Na Alvorada, eles ainda não estão pintados para o combate, então, o cheiro do mel de cabaú invadindo as ruas e pessoas correndo para evitar o melado são os primeiros sinais de que a mistura começou a ser usada.

As estreitas ruas da cidade são tomadas pelo cortejo dos lambe-sujos

IMPACTO SENSORIAL
A essa altura, outros visitantes começam a chegar à cidade. É possível notar quem já tem mais experiência com o festejo, porque esses sabem que não vão escapar do melado e usam suas peças de roupa velhas. Na concentração dos lambe-sujos, os corpos vão ficando cada vez mais brilhosos e adereços como chupetas de cores fortes, cachimbos, colares grossos de prata e óculos escuros completam a vestimenta.

Quando o segundo cortejo começa, é impossível não se sentir inebriado pelo espetáculo visual e sensorial da festa. O cheiro, os toques da percussão, o colorido das casas, as roupas vermelhas, os adereços e o sol reluzindo nos corpos dos lambe-sujos causam um impacto forte. A hipnose, no entanto, não pode durar muito tempo, porque logo que o grupo se movimenta, os taqueiros lançam seus chicotes para abrir caminho.

É nessa etapa que os negros imprimem marcas de suas mãos nos muros das casas, carros e roupas, conferindo à invasão um caráter de legitimidade. O segundo cortejo é liderado pelo príncipe dos lambe-sujos, que decide o rumo pela cidade. É ele quem acompanha o grupo para receber as bênçãos da mãe-de-santo no Terreiro de Santa Bárbara Virgem e do pároco na igreja da praça central. As orações são momentos importantes do festejo.

Do outro lado da cidade, parte dos indígenas também se prepara para seu primeiro desfile. É a hora em que eles “tomam conhecimento” da invasão dos negros. Os dois grupos, com seus toques e cantos, seguem pela cidade. Os caboclinhos entoam “Preto correu,/ caboclo pegou” como marcha de guerra até chegarem ao local onde é servida a tradicional feijoada que sela, fora da história oficial, a união entre caboclos e negros em uma pausa para o almoço.


O brincante informa os companheiros sobre a chegada dos indígenas para os combates finais

À tarde, eles retomam a terceira e última parte do cortejo, que se estenderá até o anoitecer. Novos personagens aparecem para o público. O rei finalmente se revela em trajes de combate e lidera o grupo em busca de seus protetores: a Mãe Susana, que tem um papel semelhante ao de Nanã na cultura negra, e o Pai Joá, que é um curandeiro com porte similar ao do Preto Velho. Cada um deles é recepcionado na frente de suas respectivas residências, ampliando o caminho percorrido. Os caboclos, por sua vez, saem pelas ruas em busca do príncipe, da rainha e do cacique.

Os dois grupos seguem provocando um ao outro, aumentando a tensão para o embate final. Nessa etapa da festa, a quantidade de visitantes praticamente dobra e os focos paralelos tocando os cantos locais e outros nem tanto também aparecem com mais ênfase. Em meio à folia, os dois grupos alcançam as margens do rio Cotinguiba e a rainha dos indígenas é roubada e encarcerada na cabana.

Um negro sobe na torre de madeira para informar quando as embaixadas indígenas chegam para os conflitos, que culminarão com a prisão dos negros, que saem amarrados pelos caboclos pedindo dinheiro à população para comprar sua alforria. A beleza do embate final e a queima da cabana dos lambe-sujos fecham o ciclo de um festejo que tem como marca forte a participação popular.

É perceptível que ele guarda a força da interação com os episódios ocorridos na região, mesmo que vários ritos importantes não existam mais e o povo não encene as etapas como antes. O que ocorre em Laranjeiras com o Lambe Sujo x Caboclinho é observado em outras cidades conhecidas como polos de tradições culturais que estão se urbanizando e ampliando suas trocas de influências. Apesar de vários participantes temerem que o festejo perca a reflexão sobre o período escravocrata e vire uma folia popular que carregue o mesmo nome, o significado do embate em Laranjeiras ainda é expressivo. A lapada verdadeira de um taqueiro nunca deixará esquecer. 

ANA LIRA, jornalista e fotógrafa.
ALEJANDRO ZAMBRANA, Fotógrafo profi ssional , trabalha na Prefeitura Municipal de Aracaju e no Governo do Estado de Sergipe. 

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