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Sujeitos: Tão sós, mas sempre acompanhados

TEXTO MARIA CONSUÊLO PASSOS
ILUSTRAÇÕES HALLINA BELTRÃO, KARINA FREITAS E MARIANA CHIAPPETTA

01 de Janeiro de 2011

Um grupo de porcos-espinhos ia perambulando num dia frio de inverno. Para não congelar chegavam mais perto uns dos outros. Mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar com seus espinhos. Para fazer cessar a dor, dispersavam-se, perdiam o benefício do convívio próximo e recomeçavam a tremer. Isso os levava a buscar novamente a companhia uns dos outros, e o ciclo se repetia, em sua luta para encontrar uma distância confortável entre o emaranhado e o enregelamento.
Schopenhauer

A afirmação do título desta matéria, contida no silêncio dos adoecimentos da alma, nos gritos daqueles que denunciam a banalização do humano ou mesmo nos sussurros dos que procuram reinventar seus relacionamentos, traz sempre o mesmo princípio: vivemos cada vez mais sozinhos. Tal constatação encerra, no entanto, alguns paradoxos: vemos surgir cada vez mais espaços públicos, como associações, centros de convivência, clubes desportivos; a criação de grandes corporações ao redor do mundo, a proliferação de coletivos que lutam pelos mais diversos interesses da cidadania, as redes sociais tornam-se cada vez mais um imperativo do “bem viver” etc. Não obstante tantas iniciativas, continuamos insatisfeitos, carentes, a solicitar a presença de um outro “inexistente” nos dias atuais.

Talvez seja o caso de buscarmos uma razão para esse vazio em nós mesmos, é o que nos ensina a Psicanálise. Mas ela própria nos diz que sem o outro não é possível existir sujeito, que nossa existência retira seus sentidos da presença de um outro, sem o qual não nos humanizamos. A saída, então, parece ser enfrentarmos o paradoxo implícito à toda relação humana, assumirmos os impasses que se revelam no intermédio entre dois sujeitos, concebendo a dependência entre eles e, ao mesmo tempo, a autonomia que deve ser buscada, permanentemente.

É possível que encontremos aí as razões para as expressões relacionais contemporâneas, e também para as recriações que têm sido feitas a partir delas. Evidentemente, essas expressões trazem consigo as imposições das contingências sociais, marcadas por relações efêmeras e virtuais, pela velocidade e fragmentação das experiências, pelo prazer instantâneo e consumo desmedido, tanto de bens materiais quanto de aditivos que aceleram o gozo, reduzem o desejo e mergulham o sujeito no vazio de si mesmo.

As diferentes formas de relacionamento hoje são marcadas pelas mudanças que ocorrem no Ocidente, nas últimas décadas, sobretudo no que se refere à democratização de algumas sociedades que favoreceram a emergência de um cotidiano mais libertário.

Entre as mudanças mais importantes é possível assinalar a expansão do universo feminino, que levou a mulher a se inserir cada vez mais na vida pública e a obter uma autonomia profissional e econômica nunca vista. Isso teve grandes repercussões no campo dos afetos e principalmente nos deslocamentos ocorridos no interior da família. Nesse contexto, a educação e os cuidados com os filhos deixam de ser atribuições exclusivas da mulher e passam a ser compartilhados com o pai e outros cuidadores. Além disso, a posição da mulher em relação ao casamento e à procriação muda significativamente, em direção a uma maior autonomia. Tudo isso é reforçado pelo surgimento das técnicas de controle da natalidade e dos recursos – cada vez mais sofisticados – das tecnologias médicas que possibilitam diferentes formas de reprodução.

No esteio dessas mudanças, é possível assinalar também o declínio das grandes referências institucionais, como a Igreja, que durante muito tempo legitimou o poder supremo do pai e sustentou a hegemonia do sistema patriarcal. Tal enfraquecimento contribuiu para que o homem perdesse seu lugar de mantenedor e autoridade máxima da casa e do grupo familiar. Esses e outros aspectos geraram uma verdadeira inflexão nos valores e padrões de funcionamento da família, levando-a a se diversificar. Esse grupo passa então a operar uma verdadeira metamorfose nas suas relações internas, nos lugares que cada membro ocupa diante do outro, e, sobretudo, na criação de um estatuto, com o qual irá assumir um lugar na rede social mais ampla.

A FALTA DO OUTRO
Essas mudanças apresentam diferentes facetas. Em uma delas, prevalece a presença fria do outro, de face opaca e virtual, com quem mantemos uma relação instrumental e precária. Tal relação se caracteriza pela fragilidade do “encontro” e pela inexistência das tensões próprias a um laço de afeto. Nela, podemos travestir o outro, e, como num passe de mágica, deletá-lo.

Mas podemos falar também da ausência do outro, daquele cuja presença firme e integral nos humaniza, delimita nossos espaços e aponta para as fronteiras de cada um. Esse outro, com quem aprendemos a ser diferentes, que nos contém e nos apresenta a lei, é aquele que nos introduz no mundo dos símbolos, na cultura, nas trocas de afeto. Ele desapareceu, deixando-nos órfãos de referências.

Para Dufour (A arte de reduzir as cabeças), a ausência desse outro e a falência das trocas simbólicas deram lugar às trocas de mercadoria, o que levou à preponderância do pragmático, do concreto, do imediatismo, enfim, a uma busca incessante pelo gozo fácil e efêmero. Nessa trilha, apegamo-nos ao que é possível, como uma espécie de compensação para tão dolorosa ausência: os consumos que vão dos shopping centers, aos diferentes tipos de “encontros” virtuais, passando das devoções mais desmedidas às academias de ginástica ou mesmo aos templos religiosos e políticos. Enfim, quanta droga temos fabricado em nome desse vazio do outro!

Esse mesmo autor nos mostra, ainda, alguns esforços empreendidos hoje como forma de remediar essa solidão. Para ele, os bandos e sua versão mais negativa, as gangues, funcionam como espaço ilusório no qual não há encontro, mas apenas aglomerado de pessoas. As seitas seriam outra forma de manter a ilusão de um ser superior que nos protege e nos referencia. A adicção às drogas químicas, por sua vez, teria também um papel fundamental nessa busca por um outro, por um continente. Nesse caso, ela representaria a procura de uma satisfação imediata capaz de eliminar a falta irremediável e, portanto, impossível de ser estancada por qualquer tipo de efeito químico.

Por fim, é possível apontar a tentativa que faz o sujeito ocupar o lugar do outro como mais uma forma de remediar sua falta. Isso significa que, tomando para si essa supermissão, o sujeito nega a falta, procurando criar uma espécie de sobreposição de lugares, tentando ele próprio ocupar o espaço deixado pelo outro. Evidentemente, trata-se de uma solução destinada ao fracasso, posto que fundada numa onipotência sem limites. Segundo o mesmo autor, isso se revela quando “assumimos o direito de vida e de morte sobre nossos semelhantes, dotando-nos de poderes supostamente mágicos”. Seria essa uma maneira de sublinhar o narcisismo nos dias atuais? Parece que sim, já que revela uma tentativa de superdimensionar o eu. Não esqueçamos, entretanto, que quanto mais o eu é “insuflado”, mais chance ele tem de implodir.

Vê-se, portanto, que a falta do outro se inscreve num registro diferente, no qual o vazio de sua ausência precisa ser tolerado, sustentado subjetivamente, e não escamoteado. Afinal, teremos sempre que conviver com ele, pois o que nos move é essa busca incessante por uma completude, por uma presença que nunca será integral. É essa busca que nos torna autônomos, já que podemos viver sozinhos – ao mesmo tempo em que nos faz dependentes, porque sem o outro não existimos psiquicamente. Eis o paradoxo que funda nossa existência!

FILHOS E LEI
Todas as saídas apontadas indicam a vulnerabilidade que caracteriza as relações de afeto hoje. Seus efeitos são múltiplos e se tornam visíveis, quando observamos a desafetação com a qual as crianças são recebidas e cuidadas na família. Refiro-me aqui, mais especificamente, ao empobrecimento nos investimentos de afeto nas relações familiares. Alguém poderia contestar tal afirmação, indicando que a criança nunca foi tão bem-provida pela atenção dos pais como hoje. Que jamais foi tão requisitada, haja vista os contingentes de pessoas que querem ter filhos a todo custo. Tudo isso é verdade, mas será que ela está de fato recebendo aquilo de que precisa para amadurecer e ser capaz de “criar” sua vida com autonomia?

É aí, nesse ponto sensível, que encontramos as principais dificuldades. A desafetação, que tem tornado frágeis e efêmeras as relações humanas, começa em casa, como diria Donald Winnicott. Ou seja, as condições fundamentais para a saúde psíquica e emocional se originam nos primórdios da nossa existência e dependem da qualidade de investimentos afetivos feitos pelas figuras parentais nesse início. Ora, se a família reflete as condições ambientais nas quais ela se produz, como podemos pensar as repercussões, no seu interior, da velocidade, descontinuidade e fragmentação que impregnam as relações vividas pelos pais nas diferentes esferas de suas vidas sociais?

A transposição das condições sociais para o contexto da família não é nada simples e deve ser feita criteriosamente. Mas é impossível não constatar as transformações que vêm se dando nas suas funções. Entre elas, a que mais preocupa os estudiosos é o enfraquecimento da autoridade parental, dada sua importância na introdução da lei e dos limites que devem regular os lugares de cada membro da família. Essa função tem repercussões fundamentais no processo de amadurecimento da criança, pois é a partir de regras que ela é introduzida na cultura, concebendo seu lugar nela e respeitando o do outro. É a partir desse lugar que o sujeito poderá transitar no mundo, observando os limites que ele impõe a cada momento.

Pois bem, a introdução da lei e da autoridade depende da qualidade dos investimentos afetivos que organizam a relação com os filhos. Quanto mais frágeis os afetos, maior será a dificuldade para que sejam construídas as referências das quais a criança precisa para encontrar seu lugar no mundo e poder constituir-se como uma referência no futuro. Dito de outro modo, para se impor aos filhos, os pais precisam captar suas demandas e oferecer aquilo que é necessário para que eles amadureçam: afeto, sustentação para suas frustrações e angústias, um nome próprio, contorno e limites para seus excessos. Também é preciso apresentar-lhes o mundo com todos os seus interditos, oferecendo-se como suporte nas eventuais encruzilhadas, construindo com eles uma história na qual cada um possa encontrar suas singularidades.

Atualmente, tem sido lugar comum acusar a família pela falta de legitimidade dos pais, uma vez que os princípios de concepção e manutenção da lei se tornaram obsoletos com o declínio do patriarcado. Pergunto: será que esses princípios não podem ser recriados, tendo em vista o surgimento de outros contextos relacionais que parecem exigir uma ética diferente para as distintas formas de exercício da parentalidade?

DESERTO RELACIONAL
Nem tudo no mundo se transformou de modo a acompanhar as exigências da vida relacional, com suas demandas surpreendentes. Segundo Dufour: “Ainda restam vastas zonas modernas e até zonas pré-modernas. Por outro lado, ali mesmo onde a ofensiva pós-moderna é predominante, há resistência, ao menos pelo momento: o pensamento crítico e a neurose têm ainda belos restos e belos dias diante de si”.

É verdade. Diante do deserto relacional que vivemos, têm surgido várias experiências de resistência. O Movimento Devagar, por exemplo, é um apelo bastante sedutor que vem, ao redor do mundo, conquistando adeptos que se esforçam para resistir aos imperativos da velocidade e do egocentrismo que reinam no mundo contemporâneo. Em suas proposições, ele sugere uma atenção mais voltada para nossas demandas interiores, nas quais o contato com o outro é fonte primordial de humanização.

Além disso, o surgimento de novas formas de família pode ser entendido também como uma forma de não submissão aos ditames vigentes. Embora o declínio do patriarcado nas sociedades ocidentais seja um fato consumado, ele não se dá linearmente, alguns padrões hierárquicos ainda sobrevivem, mas o poder não é mais suficiente para sustentar suas leis. Assim, vemos surgir novas formas relacionais que revelam, por um lado, certa resistência à tão propalada crise familiar e, por outro, uma maneira de reinventar as relações de afeto. As famílias monoparentais e homoparentais são exemplos disso, na medida em que suas composições independem das leis parentais e reprodutivas que dominavam o patriarcado.

Essas modalidades de família revelam novas formas de conjugalidade, procriação e parentalidade. Isso significa que, cada vez mais, mulheres e homens desejam cuidar dos seus filhos sozinhos; casais não querem compartilhar o cotidiano da vida conjugal; homossexuais desejam ter filhos com seus companheiros ou suas companheiras e escolhem uma maneira, entre as várias existentes, para procriar. Enfim, parece que quanto menos o grupo familiar é regulado pelo patriarcado, mais ele torna-se flexível e mutável. Condição que permite a reinvenção dos relacionamentos familiares, exigindo, para isso, a manutenção dos parâmetros necessários ao amadurecimento e à saúde psíquica dos seus membros.

Assim, se por um lado, as mudanças processadas na família respondem às imposições de uma sociedade cada vez mais enfraquecida do ponto de vista de suas sociabilidades coletivas, por outro, as subjetividades individualizadas aí produzidas se ressentem desse isolamento e tentam se reinventar, criando modelos relacionais diferentes daqueles já saturados, mantidos por um controle social excessivo. É nesse panorama que surge um campo propício para a criação de novas modalidades de família, as quais, em muitos aspectos, se aproximam das relações de amizade.

Essas relações podem ser vistas hoje como uma alternativa às imposições sociais que colocam o cidadão cada vez mais aprisionado a si mesmo. A amizade foi um tema muito caro a Foucault, que a via como possibilidade que temos de transpor as normas institucionais que controlam as relações, dando lugar à criação de novas formas de estar com o outro. Assim, a amizade seria um modo privilegiado de encontro, uma forma de convivialidade na qual deveriam estar ausentes as amarras dos padrões sociais pré-estabelecidos. Por isso mesmo, ela potencializa maior espontaneidade e mais possibilidades de reinvenção da vida. Nesse sentido, o filósofo francês considerava necessário incentivar as transgressões que expressam resistências a tudo aquilo que negligencia o potencial humano para estar criativamente com o outro.

As novas famílias e a amizade denunciam, assim, a necessidade que temos de renovar as antigas fórmulas da vida afetiva, possibilitando mais flexibilização e criatividade entre os indivíduos. Essa flexibilização, entretanto, cobrará um alto preço, caso não esteja voltada para os sentidos do convívio e da coletividade. Afinal, o sujeito contemporâneo, quanto mais busca se libertar do outro, mais se aprisiona nas armadilhas do próprio eu. 

MARIA CONSUÊLO PASSOS, doutora e mestre em Psicanálise, professora da Unicap e pesquisadora de família.

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