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América Latina: 'Operação massacre', um clássico tardio

O livro de Rodolfo Walsh é uma aula do mais alto rigor jornalístico, aliado a uma narrativa extremamente competente

TEXTO Samarone Lima

01 de Fevereiro de 2011

Rodolfo Walsh

Rodolfo Walsh

Foto Divulgação

Estamos em 18 de dezembro de 1956. Rodolfo Walsh tem 29 anos, não sabe ainda que será um mito da literatura latino-americana. Por enquanto, é capaz de passar muitas horas jogando xadrez, debruçado em seus livros de literatura fantástica, ou escrevendo contos policiais. A exemplo de grande parte de jornalistas de qualquer época ou geografia, rumina um “romance sério”. Pensa nas “outras coisas” que faz para ganhar a vida. Coisas que ele chama de jornalismo, “embora não sejam jornalismo”.

Walsh não sabe, ainda, que, entre os dias 9 e 10 de junho daquele mesmo ano, após um motim peronista, um grupo de civis, confundidos com militantes do peronismo, foi pego pela polícia, levado para um lixão e fuzilado. Era o governo do general Pedro Eugenio Aramburu, que derrubara Juan Domingos Peron, através de um golpe, no ano anterior.

Ele está num café, numa “sufocante noite de verão”, meditando sobre a vida, diante de um copo de cerveja, quando o acaso toca de leve seus ombros para mudar sua vida. “Um fuzilado está vivo”, diz um homem, secamente. A voz que sopra a frase em voz baixa chama-se Carlos Livraga. Tem um buraco na bochecha, outro maior na garganta, “a boca estraçalhada e os olhos opacos, em que ficou pairando uma sombra de morte”.

Livraga também não sabe, ainda, que será descrito no capítulo 11 do livro Operação massacre, publicado no ano seguinte, graças à sua frase, como um sujeito magro, de estatura mediana, traços regulares, olhos pardo-esverdeados, cabelos castanhos, bigode, quando faltavam poucos dias para completar 24 anos.


Imagem: Reprodução

O encontro desses homens, diante de um copo de cerveja, resulta numa história que ninguém sabe, e que só Walsh, nesse momento, poderá agarrar. Livraga é um dos sobreviventes do fuzilamento. “A história me pareceu cinematográfica demais, apta a todos os exercícios da incredulidade”, escreveu o jornalista na introdução da primeira edição. “Essa impressão, no entanto, pode ser apenas a máscara da sabedoria. O incrédulo rematado costuma ser tão ingênuo quanto aquele que em tudo crê; pertencem, no fundo, a uma mesma categoria psicológica.”

Walsh sai da conversa e a vida já não é a mesma. Toma uma série de decisões que o levariam ao extremo. É estranho dizer, mas aqui também começa sua morte, levada a cabo em 1977, pelos militares comandados por Jorge Rafael Videla, que tomariam o poder em 1976.

Durante quase um ano, ele deixa sua casa, o trabalho, muda o nome para Francisco Freyre, usa identidade falsa, consegue com um amigo uma casa no Bairro de Tigre, em Buenos Aires.

Viveria dois meses “numa cabana gelada em Merlo”, e levaria consigo um revólver, possivelmente o mesmo que tinha, quando foi abatido.


Imagem: Reprodução

Durante os meses em que mergulhou na história, Walsh encontrou pessoas que deveriam ter morrido, mas que conseguiram milagrosamente escapar, numa noite de fuzilaria, correndo no descampado ou fingindo-se de mortas, tal como Livraga. Ao todo, sete homens estavam vivos.

“Falei com familiares das vítimas, tive contato direto ou indireto com os conspiradores, asilados e foragidos, delatores presumidos e heróis anônimos”, diz Walsh, num livro que se torna uma aula do mais alto rigor jornalístico, aliado a uma narrativa que é um esplendor literário.

PUBLICAÇÃO
A história foi publicada num jornalzinho de sindicato, em meia dúzia de artigos, entre janeiro e março de 1957. Poderia ter morrido ali mesmo. Saiu sem assinatura, maldiagramada, com os títulos trocados. Coisas do jornalismo. Depois, foi ampliada para a revista Mayoria, entre maio e julho. Por fim, se transformou em livro.

“Enquanto isso, a grande divindade dos choques elétricos e das metralhadoras começava a trovejar a partir de La Plata”, diz o escritor, numa premonição do terror total que a sociedade argentina passaria a viver, com o golpe militar de 1976, que deixou cerca de 30 mil desaparecidos.


Imagem: Reprodução

No dia em que os militares comemoraram um mês de ditadura, Walsh faria o percurso inverso da frase de Livraga. Escreveu uma Carta aberta de um escritor à junta militar, entregue a jornalistas de vários países, fazendo um balanço da “divindade dos choques elétricos e metralhadoras”. Até aquele momento, 15 mil desaparecidos, 10 mil presos, 4 mil mortos. Ele era já um vivo que seria fuzilado. No dia seguinte, 25 de março de 1977, Walsh foi cercado no centro de Buenos Aires, resistiu com a arma que adquiriu possivelmente naquele distante ano de 1956, foi gravemente ferido e assassinado. Seu corpo nunca foi encontrado.

Alçado à condição de mito, Rodolfo Walsh hoje é nome de rua, praça, biblioteca, é reverenciado em estudos e homenagens na Argentina e reconhecido como o precursor (ou “inventor”) da não ficção, que ainda não tinha sido “batizada” por Truman Capote, 10 anos depois, em seu renomado A sangue frio.

Dividido em três partes, o livro começa com “as pessoas”, desdobra-se nos “fatos” e termina com “as provas”. “Nicolás Carranza não era um homem feliz nessa noite de 9 de junho de 1956. Protegido pelas sombras, acabava de entrar em casa e talvez viesse remoendo algo por dentro. Nunca saberemos ao certo. Os homens levam para o túmulo muitos pensamentos amargos, e no túmulo de Nicolás Carranza a terra já está ressecada.” É apenas o primeiro parágrafo de Operação massacre, um clássico da literatura de língua espanhola que chegou ao Brasil no final do ano passado, com cinco décadas de atraso. Um atraso não ocasional e cheio de revelações. 

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