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Robert Doisneau: Um dos gênios do humanismo

Acervo de 500 imagens selecionadas no vasto acervo do fotógrafo francês denota seu afeto pela gente simples

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Abril de 2011

Na foto de 1953, as expressões revelam como cada uma das meninas reagiu ao trem fantasma

Na foto de 1953, as expressões revelam como cada uma das meninas reagiu ao trem fantasma

Foto Reprodução/ Robert Doisneau

Se tivéssemos de nos restringir a uma palavra para definir a atividade de Robert Doisneau (1912-1994), seria cronista. Não, não, o leitor objetaria, ele era fotógrafo. Bem-lembrado. Sendo que a fotografia, no caso dele, é apenas o meio de expressão. O que ele disse ao mundo está perfeitamente relacionado à crônica, esse gênero informal, lúdico, afetivo, gracioso e despretensioso por excelência. Os adjetivos não se encerrariam por aqui, mas não vamos cansar o passante, afinal, temos todo um caminho pela frente.

O cronista é aquele indivíduo que faz do seu assunto – geralmente uma minúcia, um pedacinho de nada – algo tão leve, que parece que ele não teve trabalho, e até se divertiu um bocado com a tarefa. É assim que nos sentimos olhando as fotos de Doisneau, que teve nas ruas parisienses e nos seus personagens comuns o seu grande tema. Aliás, os depoimentos dele sobre o próprio trabalho e as espirituosas legendas que escreveu para suas fotos atestam um espírito zombeteiro e despojado. Comentando a instalação de estátuas de Maillol nos jardins do Louvre, em 1964, ele escreve:

“Naquela manhã eu tinha um encontro com um areópago de publicitários que preparavam uma campanha para o lançamento de vasilhas de poliestireno ou talvez de poliéster.

Como de costume, eu estava atrasado – o caminhão da empresa Gougeon ‘transporte de obras de arte’ retardou minha travessia das Tuileries. A aparição das estátuas de Maillol me fez esquecer completamente das vasilhas.

Foi mais ou menos a partir daquele instante que perdi o contato com a agência de publicidade”.

Uma das fotos que resultou desse encontro fortuito, intitulada Vênus pega à força, integra um divertido recorte do livro Paris Doisneau (Cosac Naify), em que estão reunidas imagens libertinas de esculturas públicas. O cronista chega mesmo a criar, com reproduções de monumentos urbanos, a fotonovela A simples história de um garoto de Paris, bom menino e bom soldado, diante da qual ninguém duvida da potência imaginativa do autor, isso, por conta do conteúdo das legendas.

Todas as 500 imagens selecionadas para Paris Doisneau são um testemunho de identificação do autor com a cidade em que vive, embora esta não seja desbragada, porque concentrada na gente simples e nos seus ambientes de frequentação. Diante do conjunto, o leitor se dá conta do tempo enorme que Robert Doisneau dedicou ao registro do movimento das ruas e a importância que atribuía aos acasos. Mais uma vez é a própria voz do cronista que declara sua relaxada metodologia, quando ele afirma que sua gigantesca documentação não sofria qualquer premeditação. “Caminhei tanto sobre os paralelepípedos e depois sobre o asfalto de Paris, sulcando a cidade em todos os sentidos durante meio século”, escreve. “Ao longo dos anos, essas imagens que hoje flutuam e vêm se agrupar como rolhas de cortiça na correnteza do rio foram feitas durante horas roubadas a meus diferentes tipos de empregadores.”

Doisneau declara-se um desobediente (“Desobedecer parece-me uma função vital”), e essa é mais uma qualidade que nos leva ao seu caráter deambulador e resistente. Ainda que vários momentos de sua obra declarem isso, é no conjunto de fotografias sobre o mercado público de Les Halles que visualizamos essa sua “desobediência”, expressa na insurgência contra uma sociedade que se transforma, a despeito da vontade do cronista, que observa seus cenários adorados desaparecerem rapidamente. E aqui verificamos também a importância da conservação de acervos, porque são eles que nos possibilitam a compreensão histórica. Doisneau vinha fotografando Les Halles e seu entorno (o frenético 1º arrondissement parisiense, que a gente poderia traduzir livremente como o “centrão” da cidade) desde os anos 1940. Nas 32 imagens aqui publicadas, somos induzidos pelo olhar do fotógrafo (e também pela ótima edição) a uma resposta reativa à derrubada do antigo mercado, ocorrida em 1971. O depoimento textual reforça seu desgosto:

“Técnicos debruçaram-se sobre o problema dos Halles de Paris. Homens astutos, urbanistas, políticos, financistas.

Debruçaram-se, isto é, olharam lá do altos as pessoas comuns se agitando.

Eu tinha muitos amigos ali, naquele tipo de aldeia eu era um fotógrafo inofensivo, considerado um maníaco dócil, de modo que não posso compreender nada das concepções dos tecnocratas embebidos em geometria. As metas rumo às quais eles tendem chamam-se rentabilidade, especialização, divisão de trabalho, eficiência. (…) Paris perde seu ventre e um pouco do seu espírito”.


A partir do final dos anos 1970, o olhar do fotógrafo sobre a cidade converte-se em crítica. Foto: Reprodução/Robert Doisneau

Imagine então esse homem, de afetividade declaradamente popular, integrando a equipe de fotógrafos da sofisticada Vogue e seu enfoque haute culture. Por três anos, através da Agência Rapho, Doisneau fotografou para a revista a gente fina de Paris, suas festas, seus casamentos e também editoriais de moda. Ele atribuiu o convite para integrar o elenco da revista a uma demanda por frescor: “Eu era o filho do jardineiro convidado para vir com as crianças do castelo sob a condição de trazer junto um olhar novo”, define ele.

Fantástica síntese sobre esse mundo Vogue, de glamour, distanciamento e afetação, é uma imagem de 1947, Uma mulher passa, em que uma endinheirada vestida com um casaco chiquérrimo, bordado em brilhos de penas de pavão, provoca um olhar de esguelha e assombro num homem que a vê caminhar. “O homem das chaves de ouro, até ele”, comenta o fotógrafo, “que trazia normalmente sobre sua cara hirsuta todo o desdém do mundo, não tirava os olhos dela”.

Podemos dizer então que, com este volumoso título de 400 páginas e 500 imagens, nos aproximamos da alma libertária e simples de Robert Doisneau. Como muitas de suas fotos, embora maravilhosas, têm sido excessivamente veiculadas (caso das séries sobre crianças e da controversa O beijo do Hôtel de Ville, de 1950), a opção por evitar suas imagens mais conhecidas é um trunfo desta edição. Claro que há aqui algumas recorrentes, mas o melhor é o encontro com aquelas menos midiatizadas. Outro mérito de Paris Doisneau é o excesso controlado. Ou seja, vemos muitas fotografias, sem que isso signifique diluição, mas acuidade.

Exemplo bom desse exagero é apreciarmos as sequências realizadas pelo fotógrafo. Entre elas, A vitrine de Romi (em que ele se delicia em registrar as variadas expressões dos transeuntes diante de uma pintura de nu exposta), Place da la Concorde e Os pés passantes (ambas captando o ritmo frenético do trânsito), e O pintor do instituto (que daria um excelente stop motion).

Toda a vibração positiva que percorre quatro quintos de Paris Doisneau torna-se melancólica nas últimas páginas. Isso porque a cidade ali retratada mostra-se estranha ao fotógrafo. Ele escreve: “Todas essas agências bancárias, todos esses edifícios de vidro, todas essas fachadas de espelho são a marca de uma arquitetura de reflexo. Não se vê mais o que se passa na casa dos outros e tem-se medo da sombra. A cidade torna-se abstrata. Ela não reflete mais senão a si mesma”. Acabava o namoro entre Paris e um de seus mais gentis cronistas. 

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