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Um clássico de mestiçagem

Luis Ruben Gonzalez utiliza o método cubano, configurado por técnicas de vários países, na busca pela quebra de estereótipos

TEXTO CHRISTIANNE GALDINO
FOTOS FLORA PIMENTEL

01 de Abril de 2011

As aulas de clássico são compostas de preparação física, estudo de técnicas de dança e conhecimentos teóricos

As aulas de clássico são compostas de preparação física, estudo de técnicas de dança e conhecimentos teóricos

Foto Flora Pimentel

Um país cuja história começa a se construir a partir do encontro de raças e etnias diferentes; que têm a mestiçagem como identidade cultural, como marca. Essas características parecem perfeitas para descrever o Brasil, mas também servem com precisão para contar sobre Cuba. Olhos menos habituados podem achar que essas são as únicas interseções entre cubanos e brasileiros, porém, o bailarino Luis Ruben Gonzalez enxergou além e encontrou outras tantas semelhanças, seja no biótipo, ou na forma de se movimentar. Essa percepção fez surgir em Ruben o sonho de aproximar os dois países, sabendo que ambos tinham muito a aprender e ensinar um ao outro.

O balé clássico tornou-se popular no Brasil, na segunda década do século 20, a partir da criação da Escola de Dança Maria Olenewa, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Porém, o alto custo da formação, a técnica importada da Europa (e a maioria dos professores também), e/ou o universo fictício das produções acabaram por dar ao clássico um caráter excessivamente sofisticado, um selo de expressão artística de elite. Em terras brasileiras, a prática do balé era um luxo para poucos, e nem todo corpo servia à rigidez exigida pelo estilo, moldado a partir dos biótipos dos povos da Europa. Assistir a um espetáculo de balé clássico também não era um hábito comum, nem acessível à maioria da população brasileira. O quadro se agravava ainda mais nos locais de forte herança cultural africana e indígena, caso da maioria dos estados nordestinos, em que os tipos físicos mais frequentes não chegam nem perto do ideal de corpo exigido para um bailarino.

É possível que esse histórico tenha feito com que o clássico fosse encarado como um “passado ultrapassado”, algo sem valor na sociedade contemporânea. Foi esse cenário pouco atrativo que o bailarino Luis Ruben Gonzalez – formado na Escuela Nacional de Ballet de Havana – encontrou, quando, em 2003, decidiu morar no Brasil e transferir para o litoral nordestino seus sonhos mais audaciosos. Fixado no Recife, Ruben logo observou que sua missão não ia ser fácil, tal a dimensão do preconceito e o estereótipo negativo do bailarino clássico por essas bandas. “Mas vi que as características físicas dos nordestinos eram muito parecidas com as dos cubanos. Por isso achei que o método de formação em balé clássico de Cuba teria bons resultados aqui, seria mais que apropriado ao corpo dos nordestinos.”

Desde então, Ruben começou a buscar maneiras de abrir, por meio da dança, uma via de mão dupla entre Cuba e o Nordeste do Brasil. O primeiro passo foi divulgar a metodologia que praticava, através de aulas, criação de coreografias e montagem de espetáculos. Não demorou muito até conquistar o público. Havia algo de forte e até acrobático, mas também doce e sensual, quebrando a rigidez das formas perfeitas características dos movimentos do estilo.

UM MIX DE ESCOLAS
Uma técnica mestiça para um povo mestiço. Foi essa a receita utilizada pelo criador do método cubano, o coreógrafo e professor Fernando Alonso, no final dos anos 1950. “O balé clássico cubano surgiu de um estudo aprofundado nas quatro principais escolas de formação da época, e da combinação de elementos de todas elas, levando em consideração o biótipo dos cubanos. Então, da escola francesa, herdamos a limpeza dos pés, a leveza e a delicadeza; dos russos, os grandes saltos e giros, além do viés mais circense, acrobático. A velocidade e as séries de saltitos são influência dinamarquesa. E a dramaticidade, a força da interpretação são contribuição da metodologia italiana”, descreve o professor. Essa conjunção de elementos, fragmentos de culturas diversas, só podia encontrar ressonância na conformação étnica brasileira, mas entrou em choque com o ensino da dança clássica no Brasil, que não era compatível com a formação proposta pelo método cubano.

Implantar uma nova estrutura, livrando-se de formatos já consolidados, é, no mínimo, uma tarefa desafiadora. Ruben Gonzalez lembra que, em Cuba, existe um sistema público de formação em arte muito bem-estruturado: “Cada um dos 14 estados cubanos possui uma escola provincial de artes, que funciona em regime de semi-internato, e oferece uma sólida formação gratuita a crianças e adolescentes com aptidão para música ou dança. Tínhamos aulas práticas pela manhã e, à tarde, as disciplinas regulares. Ao final de cinco anos, os melhores alunos em cada linguagem de cada escola fazem um teste de passagem de nível na escola nacional de artes, em Havana”.

Mas, para oferecer esse tipo de formação na realidade do Nordeste brasileiro, o bailarino tinha um longo caminho pela frente, principalmente porque na maioria das instituições locais de ensino da dança, como ele observou, “ainda prevalece a relação comercial, são poucos os que realmente colocam as questões pedagógicas e artísticas em primeiro plano”. Decidido a mudar essa realidade, iniciou, em 2008, o projeto de implantação de uma escola de formação em balé clássico, no Recife; e organizou, na Escola Adagio, de São Luís do Maranhão, um curso regular com o mesmo intuito. “Para nivelar as turmas, tive que começar do zero, concentrar esforços na parte de preparação física, sempre seguindo os parâmetros da metodologia cubana, que é baseada em um trabalho de consciência corporal. Os bailarinos não executam os movimentos por imitação, e, sim, por compreenderem qual o grupo muscular e as articulações que estão sendo utilizadas e com que finalidade”, explica.

BALLET GONZALEZ
Enquanto se prepara para inaugurar a sede própria de sua companhia, Ballet Gonzalez, Ruben mantém turmas regulares na Escola de Artes Zenilde Maria, em Boa Viagem; e faz a coordenação pedagógica da citada escola maranhense Adagio, que trabalha exclusivamente com a metodologia cubana. Entre as disciplinas da grade curricular do curso, que tem duração total de oito anos, com carga horária diária de três horas (segunda a sexta-feira), estão aulas de preparação física, história da dança, maquiagem e figurino, técnica moderna, danças folclóricas/populares, música e idioma. Tudo isso com a adaptação de técnicas clássicas aos elementos da cultura nordestina, visando o melhor desempenho técnico e estético dos bailarinos.

Gonzalez e seus parceiros estão elaborando projeto para que esse curso também seja oferecido gratuitamente, o que garantiria a continuidade da formação de bailarinos. Sua proposta é promover a merecida valorização aos bailarinos clássicos do Nordeste. “Quero colocá-los em patamar de igualdade aos demais profissionais do país, para que sejam capazes de dançar em qualquer parte do mundo. Quero tornar o Recife uma referência em dança clássica, um polo de produção e difusão dessa linguagem. Esse é o desafio que me estimula a continuar trabalhando aqui. Esse é o meu sonho. A meu ver, a arte precisa ser entendida e valorizada como profissão para o Brasil poder avançar.”

Nesse caminho, um tecido afetivo tem servido de ponte entre Cuba e Pernambuco. Ruben Gonzalez firmou um intercâmbio com o Ballet de Camagüey, companhia estatal cubana em que ele iniciou sua carreira de bailarino profissional. O primeiro grupo de bailarinos do grupo local esteve em Cuba, no início deste ano, participando de um curso intensivo de 15 dias com os mais renomados mestres da companhia cubana. Ruben diz que “a ideia é manter essa atividade e também proporcionar a vinda de profissionais de Cuba para oferecer cursos, participar de residências criativas e da montagem de espetáculos do repertório cubano e internacional nos palcos pernambucanos”. A tenacidade do bailarino em defender sua metodologia sugere que o balé clássico pode surpreender, reinventar-se – e ainda guarda lições a ensinar. 

CHRISTIANNE GALDINO, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural.
FLORA PIMENTEL, fotógrafa.

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