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Contracultura: Oposição aos excessos do racionalismo

Desencadeado nos Estados Unidos nos anos 1960, como reação à Guerra Fria, movimento questionou o sistema num clima de liberdade hedonista, tendo como bandeira o repúdio à violência

TEXTO Danielle Romani

01 de Abril de 2011

Em meados dos 1960, jovens de roupas extravagantes e comportamento libertário ganharam amplo espaço na mídia

Em meados dos 1960, jovens de roupas extravagantes e comportamento libertário ganharam amplo espaço na mídia

Foto Reprodução

O “breve” século 20 foi um dos períodos mais férteis e velozes da humanidade. Compreendido historicamente entre o ano de 1914 e o de 1991, teve como marcos dois episódios emblemáticos: iniciou-se tardiamente, com a deflagração da Primeira Guerra Mundial e terminou precocemente, há 20 anos, em dezembro de 1991, com o desmonte da União Soviética, encerrando a bipolaridade entre o comunismo e o capitalismo.

Marcado por duas grandes e demolidoras guerras, por revoluções tecnológicas, por mudanças no pensamento, nos costumes e por novas fronteiras geográficas e políticas, foi um período, contraditoriamente, repleto de catástrofes coletivas e ganhos sociais. Entre os episódios determinantes, está a deflagração da Guerra Fria, em 1948, pelos Estados Unidos, motivada pela criação da bomba atômica soviética.

Descrita pelo historiador Eric Hobsbawn como o equivalente “a uma terceira guerra mundial” – gerações inteiras se criaram acreditando que uma hecatombe nuclear poderia ser deflagrada a qualquer momento –, a Guerra Fria não chegou a ser um episódio “real”, pois, com exceção das duas bombas atômicas lançadas contra Hiroshima e Nagasaki em 1945, pelos EUA, a ameaça nuclear nunca foi concretizada. Ela consistiu, portanto, em “uma forma de ver as coisas, uma guerra de nervos velada, cercada por um imaginário que mobilizou e ‘imobilizou’ o mundo e deflagrou centenas de episódios correlatos”, explica Tiago de Melo Gomes, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Rural de Pernambuco.


Filme Juventude transviada, de 1955, com James Dean e Natalie Wood, tornou-se ícone da rebeldia teen. Foto: Reprodução

Orivaldo Leme Biagi, doutor em História e autor de O imaginário da Guerra Fria, pondera que houve, sim, uma guerra entre as duas superpotências, mas que ela não aconteceu militarmente, de forma direta, entre os países, o que justificou a utilização da expressão complementar “fria”. “Houve também a criação de um novo referencial para as sociedades dessa segunda metade do século, de uma nova condição que justificaria muitas políticas e níveis de atuação dos dois lados”, observa.

A corrida atômica, a conquista espacial, as interferências políticas nos países do Leste Europeu, pela URSS, e nos da América Latina, pelos EUA, os conflitos geopolíticos no Sudeste Asiático, a Revolução Cubana, são alguns dos episódios que marcaram o período. Mas se houve violência e o uso de armas, houve também tentativas de mudar o mundo a partir de novos paradigmas, de conceitos e manifestações que questionavam a guerra, a violência, a opressão; que discutiam os valores da cultura ocidental, especialmente os relacionados à racionalidade e privilegiada por essa mesma cultura. Foi no começo dos anos 1950, em território americano, que o movimento que viria a ser batizado pela grande imprensa como contracultura começou a se firmar.


Produção, de 1953, com Marlon Brando, O selvagem inaugurou no cinema a atitude e o visual rocker. Foto: Reprodução

FILHOS DO BABY BOOM
Falar de contracultura é, num certo sentido, falar dos Estados Unidos, segundo afirma o sociólogo Carlos Alberto M. Pereira. Foi lá, pelo menos num momento inicial, onde se manifestou de modo marcante o novo espírito de contestação que os movimentos dos anos 1960 viriam a colocar na ordem do dia. Uma rebelião que se opunha à sociedade tecnocrata e massiva norte-americana, mas também ao comunismo soviético, principalmente após às denúncias feitas em 1955 por Nikita Kruchev sobre os crimes cometidos por Joseph Stalin.

Protagonizada por jovens americanos, brancos, de classe média, filhos do baby boom (expressão que define os aproximadamente 86 milhões de nascimentos entre 1946 e 1964, apenas nos Estados Unidos), ela teve como um dos principais motivos o mal-estar provocado pelo uso da bomba atômica em território japonês. “As gerações que cresceram após o lançamento da bomba atômica sobre Nagasaki e Hiroshima, em 1945, perceberam que a ciência e o racionalismo tinham sido colocados à disposição da guerra e do genocídio”, observa Antônio Paulo Rezende, doutor em História e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Esse cientificismo, em nome da dominação e da opressão, da morte, não servia mais aos jovens nascidos logo após duas guerras mundiais.

Ideais como os da Escola de Frankfurt começaram a se sobrepor aos mandamentos leninistas e à tecnocracia e massificação capitalista. “O universo ampliado de exploração é uma totalidade de máquinas: humanas, econômicas, políticas, militares, educacionais. É controlada por uma hierarquia cada vez mais especializada de gerentes, generais e políticos profissionais, dedicados à manutenção e ampliação de seus respectivos domínios ainda competindo numa escala global, mas todos eles operando no interesse dominante do capital da nação como um todo”, denunciou Herbert Marcuse, um dos filósofos emblemáticos do período, no livro Contra-revolução e revolta.


Bill Halley e Elvis Presley ajudaram na aceitação do rock'n'roll, vinculado aos negros.
Foto: Reprodução

Sigmund Freud e Karl Marx também eram pensadores incontornáveis do período, mas com releituras e reinterpretações. “A rebelião estudantil toma a forma de uma renovação cultural e se inspira em pensadores antiautoritários como Marcuse; faz renascer o desejo da revolução sexual com a retomada das obras de Wilhelm Reich; o marxismo ortodoxo é posto em questão em nome do freudomarxismo e do pensamento libertário”, afirma Olgária Matos, em Paris 1968, as barricadas do desejo.

INDÚSTRIA CULTURAL
Antes que os jovens americanos e europeus começassem a incomodar o sistema, foi este que lhes deu munição para sair às ruas e se fazer ouvir. Um dos motivos que levaram a juventude americana a se destacar tão intensamente no pós-guerra, época em que os Estados Unidos tornaram-se a superpotência do mundo ocidental, deveu-se a uma estratégia de publicidade, mas principalmente política, lançada no próprio território americano, que valorizava o teenage (jovem) como imagem da modernidade, uma modernidade especificamente americana, a princípio, e, depois, mundial.


Hal Chase, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs criaram o movimento beat, ponto de partida da contracultura. Foto: Reprodução

“Calcada em pesquisas, era a combinação psíquica perfeita para a época: vivendo no agora, buscando prazer, faminto por produtos, personificador da nova sociedade global onde a inclusão social seria concedida pelo poder de compra. O futuro seria teenage”, explica Orivaldo Biagi.

O mercado se prontificou em atender e a criar essa demanda juvenil, com filmes, discos e estereótipos que estariam associados à rebeldia adolescente. Ao mesmo tempo, era patente a tensão entre o universo jovem e o adulto, e o choque fica evidente quando se observa a formação de uma espécie de “cultura de delinquência” que surgiu na década de 1950, relacionando o aumento vertiginoso da criminalidade dos jovens. Relatórios das autoridades da época (influenciadas pelo macarthismo) diziam que um entre cada quatro jovens de 17 anos era um deliquente juvenil.

“Os filmes produzidos na época, e que procuram retratar tal realidade, eram conservadores: O selvagem (com Marlon Brando, de 1953) era uma denúncia a um fato realmente ocorrido no final da década de 1940, quando uma gangue de motoqueiros invadiu uma cidade pequena. Semente da violência (1955) denunciava explicitamente a delinquência juvenil. Mas o mais eloquente dos filmes sobre o tema é Juventude transviada (com James Dean, 1955). Embora isolasse o mundo jovem do mundo adulto, acabou, no final, conciliando as duas esferas”, explica Biagi.


As apresentações de Joan Baez e Bob Dylan trouxeram a poética contestatória para a juventude. Foto: Reprodução

Os três filmes tornaram-se fontes visuais e sonoras dos novos tempos da iniciante cultura teen. Os corpos, atos e roupas de Marlon Brando e James Dean, além da música Rock around the clock, interpretada por Bill Halley and His Comets, em Semente da violência (o primeiro rock’n’roll executado num filme), seriam referências para toda uma geração. A propagação dos modismos lançados pela indústria cultural contou com aliados determinantes: os meios eletrônicos, em especial a televisão, que tiveram grande expansão na década de 1950.

BEATNIKS
No livro A cultura da contracultura, Alan Watts aponta que o movimento se originou de jovens burgueses, vítimas de um trauma recente, beneficiados por um momento de economia estável, mas que mesmo assim alastrou fogo na mentalidade dos jovens em todo o mundo, alterou comportamentos, quebrou tabus, e mudou principalmente a sociedade americana. E a gênese do processo, afirma, foi o movimento beatnik.


Timothy Leary, professor de psicologia de Harvard, tornou-se o guru do LSD.
Foto: Reprodução

Os beats ou beatniks – expressão que pode significar oprimido, rebaixado, espezinhado – são considerados o autêntico e inicial ponto de partida da revolução que pregava mais imaginação, mais liberdade e o fim das amarras à sociedade de mercado e ao comunismo burocrático. A importância desse movimento, e em especial dos seus três líderes, os escritores Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs, é descrita pelos autores Ken Goffman e Dan Joy, no livro Contracultura através dos tempos.

“Embora a explosão que anunciou um novo quadro mundial tenha sido atômica, um som muito mais baixo explodiu a aparente coesão cultural/psicológica/política da cultura branca conformista dos Estados Unidos dos anos 1950 “, enfatizam os autores, referindo-se à leitura pública do poema Uivo, de Ginsberg, em 1955.

Os beatniks, também chamados de hipsters, eram inter-raciais, boêmios, viviam nos limites da economia, protagonizavam farras homéricas e coletivas, com drogas e sexo, tendo como pano de fundo os clubes de jazz. “O hipster floresceu na própria ansiedade nuclear... A possibilidade de um apocalipse instantâneo, desencadeado pela Guerra Fria, criava uma desculpa perfeita para fugir das responsabilidades... Para que construir uma carreira, uma família, uma reputação, quando não havia mais futuro?”, explicam os escritores.


Em paralelo à música, os Beatles difundiram em larga escala a psicodelia, a cultura oriental e ideais pacifistas. Foto: Reprodução

Apesar do potencial revolucionário dos beats, Hollywood se utilizou do visual deles, romantizando-os e transformando-os em personagens caricatos. Seus maneirismos foram incorporados aos estilos de atuação de Marlon Brando, Paul Newman, Montgomery Clift e James Dean. A cultura hipster foi tema, inclusive, de filmes populares como O homem do braço de ouro (1956), com Frank Sinatra. Nos anos 1950, o poema Uivo, de Ginsberg, e o revolucionário livro On the road, de Kerouac, foram publicados e distribuídos por todo os Estados Unidos, transformando-os numa obsessão em massa. “Por mais que fosse insultosa, a redução da rebelião boêmia hipster a um estereótipo engraçadinho pode ter subvertido os Estados Unidos convencionais”, afirmam os autores de Contracultura através dos tempos.

NOVA ESQUERDA E HIPPIES
“Nos anos 1960 todos os nossos tropos culturais ocuparam as ruas em alto e bom som ao mesmo tempo. Parecia que alguma espécie de prisão psíquica tinha sido aberta e todos os jovens estavam tentando escapar de lá. Maior liberdade para os indivíduos em pensamento, expressão e comportamento entraram em atrito – e tentaram se fundir – com uma crescente sensação de responsabilidade coletiva pelo fim da guerra, pobreza, e da justiça. Os ideais libertários do Iluminismo colidiam com a busca poética dos românticos, dos contatos humanos mais profundos, da libertação da alma, dando luz a movimentos culturais e políticos baseados no desejo de criar uma sociedade que fosse ao mesmo tempo humana e arrebatadora. Agora!”, descreveram Goffman e Joy.

O primeiro grande impacto do movimento foi a defesa das drogas, feita por Timothy Leary, professor de Psicologia da Universidade de Harvard – seria demitido em 1962 por pressão da CIA –, que atuou como uma espécie de guru da expansão do LSD, defendendo experiências com o ácido lisérgico e induzindo milhares de pessoas a realizarem viagens que levariam a outras percepções e visões.


Morte de um dos quatro estudantes da universidade de Kent, em protesto contra a Guerra do Vietnã. Foto: Reprodução

Outro evento importante foi o surgimento da Nova Esquerda, ou Students for a Democratic Society (SDS), em 1962, grupo forjado a partir das revelações sobre as atrocidades de Joseph Stalin, e que não nutria culpa pelos crimes do ex-ditador soviético. Aquela era a história dos pais deles.

“A esquerda jovem, libertina e defensora das liberdades civis ganhou fôlego e sua liderança de um movimento de protesto pelo desarmamento nuclear se ligou a uma crescente noção de conflito de gerações. Muitos estudantes universitários culpavam a geração de seus pais por legar a eles um planeta em situação aparentemente terminal”, explicam Goffman e Joy. E a morte de Kennedy, em 1963, transmitida em cadeia televisiva, só fez com que as ideias desses novos esquerdistas se tornassem ainda mais atraentes para os jovens.

Em abril de 1965, a SDS desempenhava um papel político importante na mídia por ter promovido em Washington a primeira grande demonstração contra a Guerra do Vietnã. A Nova Esquerda era capaz de organizar protestos e seminários em dezenas de cidades. Aliados aos esquerdistas estavam os jovens reunidos no movimento Panteras Negras, formado para patrulhar e defender negros da própria polícia americana.


Mortes de Jimi Hendrix, Janis Joplin (foto) e Jim Morrison coincidem
com final da contracultura. Foto: Reprodução

Nesse contexto, um novo componente também começava a armar-se para a explosão da “bomba” cultural. Em 1963, Bob Dylan e Joan Baez, tornam-se fenômenos instantâneos, com músicas-hino da contracultura e dos movimentos sociais. Depois, em 1964, começa a “invasão britânica”, com a chegada dos Beatles aos EUA, sendo seguidos pelos Rolling Stones e outras bandas.

Mas, a partir da segunda metade dos anos 1960, quem começou a ganhar grande espaço na mídia foi um grupo de jovens coloridos – que se destacava pela atitude hedonista, pelas roupas extravagantes e pelo discurso anticonvencional. Eles se tornariam um fenômeno mundial. Os hippies viam na aliança entre arte, comportamento e contestação uma nova possibilidade de expressão e sustentação de suas identidades. O encontro que reuniu milhares de jovens em Haight-Asbury tinha tudo isso. Realizado em São Francisco, em 1967, foi um dos ápices da contracultura norte-americana, e ficou conhecido como o Verão do Amor.

Ainda que de forma pacífica, os jovens começavam a intensificar os protestos contra a Guerra do Vietnã e contra o alistamento militar. E a protagonizar episódios que deixavam o establishment paralisado: primeiro, espalharam dinheiro na Bolsa de Valores. Depois, “exorcizaram” o Pentágono, e afirmaram que o prédio se ergueria no ar apenas com a força do pensamento da multidão. Daniel Fosse escreveu que “na política hippie o objetivo não era colocar o indivíduo acima da máquina, mas enlouquecer a máquina para incitar o inimigo a se ferir por intermédio da destruição cultural e da confusão de significados”. Apesar de não empunharem armas, e de pregarem a paz e o amor, eles entraram em confronto com a sociedade conservadora dos EUA.


Em 1959, Nikita Khrushchev vai aos EUA para debate televisivo com o vice-presidente Richard Nixon. Foto: Reprodução

A ira do establishment não demorou a se manifestar. A partir de 1968, com os assassinatos de Robert Kennedy, irmão de John, e de Martin Luther King, o recado estava dado: os tempos haviam mudado. Com o advento da Era Richard Nixon, aproximadamente 250 mil novos-esquerdistas, hippies e até mesmo democratas liberais, além de astros de rock e outras personalidades, foram submetidos a um programa de estrita vigilância do FBI. O novo presidente também anunciou guerra às drogas, com uma lei que as tornava ilegais, e que levou Timothy Leary à prisão. E lideranças da nova esquerda (Os Sete de Chicago) foram levadas à cadeia, a partir de processos nem sempre legais.

Woodstock, realizado em agosto de 1969, foi denominado pela revista Time como “um dos mais significativos acontecimentos políticos e sociológicos da época. Mas era o último suspiro de uma era. No dia 30 de abril de 1970, Nixon ampliou a guerra enviando 20 mil combatentes americanos para o Camboja. No dia 4 de maio do mesmo ano, estudantes e soldados se colocaram em posição de combate na Universidade de Kent, em Ohio. Dessa vez, os guardas atiraram para valer, e quatro jovens foram mortos. A revolta foi enorme e houve protestos e manifestações por todo o país. Mas, então, começaram as férias de verão. E os protestos estancaram. Repentinamente, à medida que 1970 se transformava em 1971, os estudantes pararam de participar das manifestações em massa. A separação dos Beatles, em maio de 1970, e as mortes de Janis Joplin e Jimi Hendrix, no segundo semestre do mesmo ano, pareciam anunciar o fim de tudo. De que o sonho havia acabado, como cantaria, também em 1970, John Lennon.

No tocante ao que se propunha – mudar totalmente o mundo – o movimento fracassou. “O tal ‘sistema’era mais forte e complexo do que eles acreditavam. Mas, em alguns aspectos, a luta foi ganha, e a sociedade estabelecida acabou por aceitar muitas das contestações feitas. Problemas que antes não eram discutidos, como o feminismo, os hippies, o homosexualismo, os movimentos negros, passaram à pauta. O terceiro setor, com suas causas e formas de atuação criativas, devem muito à contracultura. As inúmeras formações de jovens e ações pela internet, como o Fórum Mundial, por exemplo, mostram que a contracultura não morreu realmente”, aponta Biagi. 

DANIELL ROMANI, repórter especial da revista Continente.

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