Arquivo

“Não sinto falta de ir ao cinema”

Aos 80 anos, o jornalista, crítico e cineasta pernambucano Celso Marconi, que continua a acompanhar a produção no setor, prepara lançamentos que apresentam sua obra às novas gerações

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Maio de 2011

Foto Ricardo Moura

Pendurado na parede da sala de Celso Marconi, em Olinda, chama a atenção um pequeno quadro com a frase tão otimista quanto irônica: “A vida começa aos 100”. O crítico de cinema explica que aquele foi um presente da sua irmã e nos entrega um sorriso divertido e sereno. É este sorriso que dá o tom de toda a nossa conversa: coloquial, espirituosa e, sobretudo, serena. Aos 80 anos, Celso acredita que a filosofia budista tem função importante na sua leveza diante da passagem do tempo e não demonstra um sentimento nostálgico forte. Ao contrário, reconhece a modificação do mundo como algo que não pode ser evitado e por isso acompanha as novidades, baixa filmes da internet, comunica-se pelo Twitter e Facebook.

Jornalista e professor universitário aposentado, o trabalho não existe mais sistematicamente em sua rotina, porém ele mantém projetos ainda sem previsão de execução. O único com dia e lugar marcados para lançamento é o DVD duplo O cinema de Celso Marconi, que o público pode adquirir a partir do dia 5 deste mês, na Livraria Cultura. Uma oportunidade de as novas gerações conhecerem 22 filmes do crítico de cinema que não se considera cineasta.

Acompanhado do seu cachorro Jean-Luc Jomard, Celso Marconi recebeu a Continente e dividiu conosco não só suas impressões sobre cinema e crítica, mas também suas reflexões sobre as vaidades sociais, novas tecnologias e religião.

CONTINENTE Já faz algum tempo que este DVD está para ser lançado. Em 2009, surgiram os primeiros rumores sobre ele já estar pronto. Por que só agora ele vai chegar ao público?
CELSO MARCONI As cópias do DVD foram feitas na França e, depois de resolver tudo, quando chegou na hora de trazer para o Brasil, nós não tínhamos mais dinheiro. Só trouxemos 50 para prestar conta com a prefeitura. Depois, Sérgio Dantas, produtor do projeto, arranjou verba e aí trouxemos uma parte. Tem uns dois ou três filmes que eu já fiz em vídeo, mas a base mesmo é a minha produção em super-8 da década de 1970. Inclusive, ainda tenho esses filmes. Na realidade, eu só tinha finalizado dois deles, todos os outros montei depois que passei para digital. 

CONTINENTE Havia incentivo para a produção em super-8 no Estado?
CELSO MARCONI Não, era cada um por si. Eu tinha um equipamento, Fernando Spencer outro. Então, cada um tinha sua câmera e até mesmo montadeira. Como eu trabalhava em jornal e era muito ocupado, não montava os meus filmes. Jomard (Muniz de Britto) me esculhambava, dizia que eu era o cineasta dos filmes inacabados. Mas não havia lei de incentivo, o que tinha era polícia nos proibindo de fazer as coisas.

CONTINENTE Com a reestruturação do cinema pernambucano e o maior apoio para essa produção, você não teve vontade de voltar a fazer filmes?
CELSO MARCONI Não, porque eu não sou cineasta. Assim, eu sou cineasta porque qualquer pessoa que trabalha com cinema é cineasta, mas a minha produção era mais por uma questão de participação, como uma brincadeira mesmo. Claro que os assuntos tinham um conteúdo mais público, mas o meu interesse não era fazer filmes para exibir, ganhar prêmios, porque profissionalmente sou crítico de cinema. Quer dizer, atualmente sou aposentado, mas minha profissão era de jornalista. Meu lado cineasta é como um deleite.

CONTINENTE O senhor acompanha as novas gerações do cinema pernambucano?
CELSO MARCONI Eu acompanho mais ou menos. Meu hábito, atualmente, é de ver filmes em casa, baixo pela internet. O mais recente que eu vi foi o Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karin Ainouz. Fico pensando que Pernambuco tem uma característica um pouco diferente. Porque, no Brasil, nós vemos uma tentativa de fazer cinema comercial mais na linha do Tropa de elite ou filmes de espiritismo para ganhar dinheiro e público. Algo diferente da política dos anos 1960, quando se faziam filmes para conscientizar as pessoas. E, ainda hoje, Pernambuco tem um certo sentido de fazer filmes sem essa destinação tão forte ao comercial. 

CONTINENTE Atualmente, é possível imaginar uma produção cinematográfica estável em Pernambuco sem as leis de incentivo?
CELSO MARCONI Acho essa política inteiramente errada, sabe? Essa política apoiada apenas nas leis de incentivo. Os museus estão praticamente abandonados, inclusive o Museu da Imagem e do Som, do qual fui diretor, está lá parado. Acho que deve haver uma política de incentivo sempre. O problema é que aquilo que está estabelecido não está certo. Porque se tivesse muito dinheiro, tudo bem. Mas se temos uma verba limitada, então temos que incentivar aquilo que não tem possibilidade realmente de ser feito sem o apoio do governo. 


Foto: Divulgação

CONTINENTE Além do DVD, existem dois novos livros seus para serem lançados, não é?
CELSO MARCONI Estou tentando lançar a minha produção no Jornal do Commercio, de 1981 a 1989, que daria dois livros. Mas também queria fazer outro só com o principal da cobertura de cinema estrangeiro. Além desses, queria fazer um álbum bonito sobre artes plásticas, porque nos anos 1970 e 1980 escrevia sobre artes. Tem muitos projetos, o que está mais perto para sair, pela prefeitura, é algo à parte do jornalismo, algo mais teórico sobre cinema e sobre o Cinema Novo. O título seria Por que gostamos mais do cinema de Hollywood?, parte dele escrevi de forma independente e outra parte trouxe da minha dissertação de mestrado em Antropologia, que acabei não defendendo. 

CONTINENTE Geralmente, as pessoas mais velhas têm certa resistência às novidades da comunicação, mas Celso Marconi está muito à vontade no Facebook, no Twitter e no blog.
CELSO MARCONI Nunca mais escrevi no Twitter e parei um pouquinho no Facebook, porque toma muito tempo. Mas acho que você tem que sentir a sua insignificância diante do mundo, porque o que é que podemos fazer individualmente? Nada. Nos anos 1950 e 1960, nós pensávamos que podíamos modificar o mundo, mas ele já vem se modificando. A gente tem que se adaptar, porque a natureza é mais forte que nós. Então, acho maravilhosa a internet, sou a favor da tecnologia, inclusive sou a favor da energia atômica.

CONTINENTE A tecnologia utilizada em filmes 3D desperta seu interesse?
CELSO MARCONI Nunca vi um filme em 3D, porque estou cego de um olho. Eu não estava vendo bem e com a cirurgia acabei perdendo a visão. Aqueles óculos do 3D são só para quem enxerga pelos dois olhos, então só vou poder ver quando inventarem uma coisa para um olho só.

CONTINENTE Então, a transição do referencial analógico para o digital lhe parece positiva.
CELSO MARCONI Como disse, sou a favor de toda a tecnologia, acho que não se pode ser contra ela. Agora, cada coisa tem sua especificidade. Por exemplo, o livro não vai morrer, mas vai deixar de ser o instrumento de comunicação mais comum. Ao mesmo tempo, você ainda tem o jornal, mas você já se informa tanto nele quanto por outros meios. Por exemplo, soube do episódio trágico em escola do Rio de Janeiro, no Bairro do Realengo, pelo jornal da TV espanhola. Quer dizer, estou aqui em Olinda e sei de uma notícia do Rio de Janeiro pela Espanha. As informações estão muito em cima de você. Aí o papel vai perdendo a sua importância, mas você não pode esquecê-lo, porque tem a ver com a sensibilidade do homem.

CONTINENTE E os cinemas de bairro? Têm a ver com a sensibilidade e a sociabilidade do homem e estão esquecidos também. 
CELSO MARCONI Eu não sinto falta de cinema, sabe? Eu gosto do novo. Acho que a gente vai se acostumando, tem mesmo que se acostumar com o novo. Existe a dificuldade para aprender a manipulá-lo, mas você aprende. Como vemos naquele filme, A pessoa é para o que nasce, você age diante do mundo de acordo com o que você é. Inclusive, fico pasmo com a humanidade, que não melhorou do ponto de vista da vaidade, as pessoas ficam disputando. Tanto os pobres quanto os ricos e milionários. Acho que o mundo tem que mudar dentro das pessoas, para poder fazer outro mundo. Voltando à sua pergunta, a relação mais pessoal, mais intimista com o cinema é o que ainda me interessa. Isso é diferente de você sair, ir ao cinema, encontrar com as pessoas. Na verdade, encontrar com as pessoas também é uma coisa boa e eu tenho feito pouco. Mas hoje vivo um tipo diferente de vida. É por isso que não sinto falta de cinema de bairro.


Foto: Divulgação

CONTINENTE Com o passar do tempo, o ser humano se torna mais sereno?
CELSO MARCONI Tem gente que fica mais serena e tem gente que não. Vejo muitas pessoas reclamando dos 80 anos. Eu, inclusive, passei por um processo duro, ia fazer uma festa no meu aniversário e acabei não fazendo, porque me deu uma emoção que não me permitiu. Claro que tem aspectos terríveis e o principal deles é a questão de você ser marcado para morrer, porque qualquer pessoa pode morrer de repente, mas isso é uma eventualidade. A pessoa que tem 80 anos, no entanto, sabe que está na reta. Isso é duro, perturba muito as pessoas. 

CONTINENTE Mas você parece, na maior parte do tempo, tranquilo com esse movimento natural da vida.
CELSO MARCONI É porque sou um pouco budista, gosto da filosofia. Não sou propriamente adepto, porque acho que a igreja é sempre comercial, sempre algo para utilizar as pessoas. Porém a filosofia budista me parece muito explicativa do mundo e me ajuda muito.

CONTINENTE Foi também a filosofia budista que permitiu aquela fotografia com Ariano Suassuna, em 2007? Aquela imagem representa quase um desatamento de nó entre uma esquerda festiva e uma esquerda mais sisuda. 
CELSO MARCONI Tem uma foto minha com o Ariano? Ah, foi na entrada do Cine PE. Mas quem é mais sisudo para você? Você acha que é ele? Ele é tão gaiato. Engraçado você falar dessa foto, porque que eu não me lembrava dela. Tem coisas que a gente não sabe da vida da gente, tá vendo?

CONTINENTE
 O senhor concorda com essa ideia de falência da crítica cultural, na atualidade?
CELSO MARCONI Acho que a crítica sempre foi esculhambada. As pessoas falam que não existe crítica, mas quando se faz crítica de verdade, mais radical, aí ninguém gosta.

CONTINENTE O que é pior: a quantidade de Bolsonaros na política brasileira ou a quantidade de salas exibindo filmes como Tropa de elite?
CELSO MARCONI O pior são as pessoas e o fascismo que existe nelas. Um dia desses uma mãe ligou para marcar uma consulta com a minha filha, que é pediatra. Seu filho, do outro lado da linha, gritava sem parar. Eu perguntei para a mulher se ele poderia falar mais baixo e ela disse que eu estava sendo grosso, que se dependesse do meu atendimento a médica morreria de fome. O que ela imaginou foi que a pessoa marcando a consulta dela era um pobrezinho que seria demitido se ela fizesse uma reclamação à médica. Foi isso que passou na sua cabeça: “Eu vou demitir esse cara que tá me tratando mal”. Mas eu não estava tratando mal e tive vontade de dizer: “Olha, no começo do livro do Marcel Proust tem uma frase dizendo: ‘Como é bom entrar em uma casa onde as pessoas falam baixo’ ”. Então, a educação é uma coisa fundamental para conviver com as pessoas e conviver no dia a dia, não só na rua. Porque a minha geração, inclusive, convivia muito bem na rua, mas quando chegava em casa tratava mal a mulher, a família. Eu também fui assim, mas procurei melhorar. É uma batalha diária para se mudar o mundo.

CONTINENTE E para mudar a arte também?
CELSO MARCONI Não, a arte eu acho que não. Para mim, a religião é a arte. Eu vivo em função do que consumo de arte. Eu me acho até egoísta quando percebo o prazer que a arte me dá. É ela que me sustenta. Os artistas, em geral, são os mais maravilhosos seres humanos, porque eles não se submetem aos esquemas. Acho muito ruim as pessoas que dizem “eu penso assim e não vou mudar minha opinião”. Tenho um amigo que ficava danado porque eu dava uma opinião sobre um filme e depois dizia tudo diferente. Ele falava: “Vou mandar você escrever e assinar embaixo quando der uma opinião”. Mas eu não tenho culpa se as coisas mudam, se você muda. 

GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

Publicidade

veja também

Em meio às engrenagens

'Limite': O maior enigma do cinema brasileiro

Coletivo Angu: Algumas espetadas no coração feminino