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Apipucos: Era uma casa, virou museu

Criada em 1987, a Fundação Gilberto Freyre abriga acervo que testemunha universo doméstico e profissional do sociólogo

TEXTO GIANNI PAULA DE MELO
FOTOS CHICO LUDERMIR

01 de Junho de 2011

Exemplar arquitetônico do século 19, a edificação mantém as mesmas características de quando foi adquirida pela família

Exemplar arquitetônico do século 19, a edificação mantém as mesmas características de quando foi adquirida pela família

Foto Chico Ludermir

Gilberto Freyre deixou o Recife, aos 18 anos, para estudar na Universidade de Baylor, nos Estados Unidos. Concluída sua formação de bacharel em Artes, no ano de 1920, ele seguiu para a Universidade de Columbia, onde fez mestrado e defendeu sua dissertação. Daí em diante, trilhou o caminho de um cidadão do mundo – não à toa, seus textos sobre o Oriente integrarão as discussões da 7ª edição da Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), na qual será homenageado. No entanto, por mais que tenha conquistado respeito nos incontáveis países por onde passou, Freyre não abdicava do aconchegante bairro recifense, escolhido para erguer o seu lar. “Ele podia rodar o mundo, mas os pés dele estavam fincados em Apipucos”, conta a filha Sônia Freyre.

Foi na Vivenda Santo Antonio de Apipucos, localizada no tradicional e bucólico bairro da zona norte da cidade, que o sociólogo viveu por mais de 40 anos, ao lado de sua esposa Magdalena e dos seus filhos Fernando e Sônia. Em sua casa, Freyre reuniu toda sorte de objetos pessoais, itens artísticos, coleções, condecorações e, por trás da materialidade desses pertences, seus afetos. Pois, como ele próprio escreveu: “a relação do homem com a casa é (…) quase o que é a relação do homem com o ventre materno, o ventre gerador, o abrigo do útero”. Respeitando seus anseios pela preservação de sua memória, no dia 11 de março de 1987, os familiares converteram esse patrimônio privado em um espaço de acesso público, a Fundação Gilberto Freyre (FGF). Hoje, ela é formada não só pelo imóvel, que recebe o nome de Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre, mas também pelo sítio ecológico restaurado – remanescente de quintais antigos – e pelo Espaço Cultural, construído em 2000, ano do centenário de Freyre, para sediar eventos e cursos.

Ao todo, a fundação conta com uma área de 10 mil metros quadrados, em que é possível testemunhar intimamente o universo do personagem histórico. Alinhado à preocupação ecológica explicitada no livro Nordeste, de 1936, Freyre cultivou a vegetação do seu terreno durante anos. Composto por paus-brasis, mangueiras, bananeiras, oitizeiros, pitangueiras, entre outras espécies, o sítio ecológico passou por alguns melhoramentos com a finalidade de facilitar a locomoção dos visitantes, já que os percursos eram originalmente de barro. Lá, entre fruteiras e palmeiras imperiais, repousam os ossos do casal Freyre, em um memorial fúnebre cercado por um mural de cerâmica construído para atender o desejo do sociólogo de retornar a Apipucos depois de morto. Uma curiosidade sobre a escolha por esse bairro é a de que o escritor considerava a existência de uma ordem religiosa como um bom indicativo do lugar. “Ele costumava dizer que os religiosos sabiam escolher seus locais para moradia e, no caso de Apipucos, havia o seminário Marista”, comenta Sônia, que atualmente é a presidente da Fundação.


Era nessa sala de estar que Gilberto Freyre recebia os convidados mais formais

MEMÓRIAS
De fachada bela e ar aristocrático próprio dos exemplares arquitetônicos do século 19, a casa-museu mantém a mesma estrutura da época de Freyre e todas as alterações feitas no imóvel datam do período em que a família ainda estava instalada nela. No início dos anos 1940, por exemplo, época de aquisição da casa pelo sociólogo, foi feita uma grande reforma, porque a construção se encontrava em ruínas.

Segundo o arquiteto José Luiz da Mota Menezes, a distribuição dos cômodos indica que, originalmente, aquele imóvel não servia de residência e, sim, de escritório comercial dos engenhos daquela região. Até os anos 1950, na casa existia apenas um quarto, onde dormiam o casal e as crianças. Para melhor acomodar a família e sua coleção de livros – que não parava de crescer, começando a se acumular até mesmo em sua banheira –, Freyre ampliou a casa, construindo mais dois quartos (um para cada filho) e o gabinete de trabalho, que se tornou seu preferido. “Sem dúvidas, o local onde ele trabalhava é o que melhor o representa. Aquela cadeira onde se sentava bem à vontade, ali era o cantinho dele”, relembra Sônia.


Local em que o sociólogo passava mais tempo. Boneco reproduz a posição relaxada na qual ele costumava escrever

Para alguns, o gabinete de trabalho também poderia ser considerado a biblioteca de Freyre, mas parece um equívoco reduzir aquele espaço à função de abrigar livros, quando por todos os lados existem estantes reunindo seu acervo pessoal de mais de 40 mil obras. Nas paredes, os numerosos quadros também chamam a atenção, principalmente os dos amigos Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. Este último dá nome a uma das salas da casa-museu, onde ficam, além de pinturas de sua autoria, coleções de porcelanas holandesas, francesas e alemãs.

Como pesquisador preocupado em perceber o Brasil a partir da perspectiva da vida privada, Freyre também atentou em adequar o espaço doméstico à sua linha de pensamento. “Ele fez da casa a união perfeita entre o homem e o pensamento; por efeito, ela representa o espelho do seu rosto no sentido cultural e sociológico. Há um intenso mimetismo, que era fortalecido cotidianamente pela sua capacidade de adorná-la ao seu jeito”, analisa a antropóloga Fátima Quintas. Desde a elegante e solene sala de estar da família, por onde começa a expedição pela casa, até o solário intimista, local dedicado aos amigos próximos, várias faces do escritor são reveladas. Nesse ambiente, mantido com cuidado e requinte, a pesquisadora da obra freyriana aponta os detalhes que, em sua opinião, geram mais encanto: “Os azulejos me chamam a atenção pela dignidade estética e pelo estilo harmônico; os aparadores são belíssimos e imponentes; a escada principal transmite o tom heráldico e discreto”.

O patrimônio e seus arredores promovem uma experiência sensorial que se soma àquilo que é possível conhecer sobre Freyre através dos seus livros e estudos. O pesquisador Rodrigo Alves Ribeiro analisa o diálogo entre o espaço e a memória, em sua dissertação Moradas da memória: a construção de um museu na casa de Gilberto Freyre: “Tudo que Gilberto Freyre enumerou como memórias de Apipucos, do Recife, de Pernambuco, do Nordeste açucarocrático, estava interagindo com a vida íntima e intelectual do escritor. Os espaços foram por ele transformados em lugares de memória, num quebra-cabeça em que as peças não são em sua totalidade completas, em virtude do tempo da memória: fragmentado, disperso e velado”.


Embora os restos mortais do casal Gilbero e Magdalena estejam depositados em outro local da propriedade, é nessa placa simbólica que os visitantes acendem velas

PEQUENOS NOTÁVEIS
Dentre os objetos íntimos ou decorativos, alguns carregam histórias significativas. Uma das mais famosas está associada ao conjunto de painéis de azulejos portugueses dispostos pela casa com ilustrações de cenas sacras. Antes de aportarem em Apipucos, eles pertenciam à Igreja Nossa Senhora da Soledade, em Lisboa, que foi demolida para ampliação de um aeroporto. Na época, Freyre comprou os azulejos, mas foi impedido de trazê-los ao Brasil, pois eram considerados patrimônio português. Na tentativa de contornar o empecilho, escreveu ao governo do país e seguiu em viagem para a África, onde faria pesquisas. Ao retornar, seu pedido seria atendido com a ajuda de um “jeitinho português”: Freyre foi nomeado embaixador e, dessa forma, sua residência passou a ser considerada um pedacinho de Portugal no Brasil.

Outro agrado vindo das terras ibéricas é a edição fac-similar de Os Lusíadas, distribuída pelo governo de Portugal para 150 pessoas de destaque. No Brasil, além de Gilberto Freyre, apenas uma pessoa recebeu exemplar dessa edição: o presidente da república na época, Getúlio Vargas. De honrarias mais simbólicas às mais oficiais, toda a trajetória do intelectual está exposta no museu, através de medalhas, placas e homenagens. Entre elas, sobressai-se a condecoração que recebeu da Ordem do Império Britânico, pelas mãos da rainha Elizabeth II. Já os descendentes da família real brasileira agraciaram Freyre com uma mesa – na qual está gravado o símbolo do império – que ele havia elogiado na época em que era deputado federal.

Dentre as coleções associadas à cultura popular, as esculturas de Zé do Carmo merecem destaque, em especial a réplica do cangaceiro com asas de anjo que o artista plástico pretendia entregar ao papa, na época em que o religioso visitou o estado, mas não obteve autorização do arcebispo.


Azulejos pertenciam à Igreja Nossa Senhora da Soledade,
em Lisboa, que foi demolida. Freyre só conseguiu trazê-los
ao país ao ser nomeado embaixador de Portugal no Brasil

VIÉS EDUCATIVO
Apesar da riqueza do patrimônio, a coordenadora de visitação da Fundação, Manuella Falcão, afirma que despertar o interesse dos recifenses para o museu ainda é um desafio. Mesmo assim, a equipe se esforça para desenvolver atividades temáticas e atrair escolas e turistas. O tour inspirado no livro Assombrações do Recife Velho é o mais conhecido e ocorre entre os meses de setembro e março, com um formato de apresentação cênica interativa. Durante o ano, também são organizadas visitações em consonância com as datas comemorativas, buscando resgatar o que Freyre disse em seus estudos sobre cada elemento festejado. A fundação fica aberta de segunda a sexta, das 9h às 17h, e, no fim de semana, pode ser visitada mediante agendamento prévio dos grupos.

Porém, se muito esforço é feito para trazer o grande público ao espaço, também é verdade que os estudantes e pesquisadores que já possuem interesse na vida e obra freyriana enfrentam uma grande burocracia para terem acesso aos livros da casa, assim como às fotos de arquivo, documentos e aos materiais multimídia. Para isso, é preciso não só agendar horário, mas escrever uma carta de intenção, apresentar o perfil da pesquisa e especificar os materiais necessários. “Infelizmente, esse controle se faz necessário para a manutenção de um acervo que se quer preservar para as futuras gerações. O zelo institucional reivindica tal tipo de comportamento, qualquer patrimônio reclama cuidados”, comenta Fátima Quintas.

Com a homenagem à Gilberto Freyre na 7ª Fliporto, é de se esperar que aumentem as atenções voltadas à casa-museu. Na ocasião da festa literária, a fundação estará presente com estande de livros e uma área de exposição. 

GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.
CHICO LUDERMIR, fotógrafo, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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