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Amaro Quintas: Um entusiasta da tarefa de ensinar

Professor e pesquisador, que tem importantes obras de sua autoria agora relançadas, influenciou gerações de estudiosos da história pernambucana

TEXTO José Ernani Souto Andrade

01 de Julho de 2011

Amaro Quintas

Amaro Quintas

Foto Reprodução

Pernambuco foi centro de irradiação e convergência da formação histórica do Nordeste. Polo administrativo, religioso, econômico e cultural, teve, e tem, papel importante na construção e dinâmica do espaço regional e nacional. Movimentos e personagens de resistências às mais diversas opressões foram decisivos na formação da nacionalidade. Daí sua historiografia ser muito rica e marcante nos planos nacional e internacional.

No caso pernambucano, o registro histórico conta com uma plêiade de autores notáveis: Abreu e Lima, Pereira da Costa, Mário Sette, José Antônio Gonsalves e Rostand Paraíso, entre outros. Destaque para o professor Amaro Quintas, como pesquisador e historiador, que terá agora reeditadas pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) três de suas obras: A Revolução de 1817O Padre Lopes Gama: um analista político do século passado e O sentido social da Revolução Praieira.

A história das regiões e dos estados, enfim, “localizada”, hoje não é mais chamada de “micro” ou “pequena”, pois essa hierarquização, no entender de muitos, estabeleceria uma relação historiográfica discriminatória. Todavia, essas abordagens particulares são importantes para a busca da própria identidade numa sociedade heterogênea, desde que trabalhem, com equilíbrio, o geral e o particular.

Nos últimos tempos, as histórias de municípios e de estados vêm sendo adotadas nos currículos escolares, incentivando, assim, a busca das raízes como base para a compreensão do hoje e a ampliação de perspectivas futuras. Valem as máximas “conhece tua aldeia e conhecerás o mundo” e “conhece-te a ti mesmo” (nessa questão, tem dado notável contribuição o Centro de História Municipal do Condepe – Fidem). Nesse contexto, a colaboração de Amaro Quintas para a memória de Pernambuco constitui feito louvável.

HUMANIDADES
Amaro Quintas assumiu a sala de aula muito jovem e nela permaneceu associando, com maestria, a pesquisa e o ensino. Lecionou em várias instituições particulares, no Ginásio Pernambucano, Escola Normal, Unicap, Fafire e no mestrado de História da UFPE. Destacava-se por estimular nos alunos o gosto pelas ciências da sociedade, sobretudo a História.

Gerações de professores e estudiosos de História foram por ele influenciados. Entusiasta da liberdade, dava ênfase à “ardência natural dos pernambucanos” na formação da nacionalidade. Essa sua definição de atitude valeu-lhe arbitrária cassação profissional, em 1965. Proibido de ensinar em qualquer instituição, foi acolhido pelo curso de Direito da Unicap (História do Direito) e pelo Colégio Torres (Sociologia), do professor Manuel Torres. Voltou à UFPE, com a anistia, mas, durante quase 20 anos, o ensino de História foi privado de sua atuação.

Seu A Revolução de 1817 tem origem na tese com a qual concorreu à cátedra de História no Ginásio Pernambucano. O movimento justifica o nome de revolução porque, inserido no quadro mundial – crise do antigo sistema colonial – teve governo provisório (cerca de 70 dias), símbolos definidos e propostas de mudanças significativas; não foi uma mera inconfidência. Ao abordá-lo, Amaro Quintas não se limita à sua cronologia e ao desempenho de seus heróis.

Quintas inicia a obra com um panorama do Brasil colonial, analisando o problema da descentralização iniciado com o Sistema das Capitanias, não totalmente resolvido com a centralização de 1549, e gerador do “espírito local” e do persistente regionalismo. Ainda na primeira parte da obra, mostra a evolução do espírito nativista, autonomista de Pernambuco e a resistência às prepotências e desmandos da metrópole e às medidas autoritárias do império sob o comando de Pedro I.

Na segunda parte, a Revolução é estudada nas suas condições internas e externas. Em cinco capítulos, trata da gênese do movimento até as causas da derrocada, passando pelo “sentido da revolução”, pelos “condutores do movimento” e “participação popular”. Apoiado em fontes primárias e secundárias, o autor abre caminhos, já em 1939, para novos estudos sobre o processo de independência, não só do Brasil, mas também das Américas.


Entre os temas de seu interesse, Quintas focou, sobretudo, as revoluções do século 19.
Foto: Reprodução

PADRE LOPES
Na obra O Padre Lopes Gama: um analista político do século passado, Quintas investe no difícil gênero da biografia sem limitar-se a narrar feitos e qualidades de um personagem. Na verdade, contextualiza-o, no espaço e no tempo, em suas dimensões subjetivas e objetivas. Afinal, o homem é ele e suas circunstâncias.

Trata da atuação do padre Carapuceiro como crítico da sociedade – no fim da primeira e início da segunda metade do século 19 – em seus usos e costumes, além dos aspectos políticos e culturais. De fato, o livro nos fornece um quadro real da vida sociopolítica de Pernambuco no período. Num estilo cáustico e irreverente, o padre Gama fustiga aquelas que considera serem as mazelas de sua época, não poupando nem o próprio clero.

Frade, depois padre secular, jornalista, professor e político, foi um polêmico por excelência. A reação às suas críticas enriqueceu a história do jornalismo pernambucano. O periódico A Carranca, entre outros, foi inclemente no combate ao padre Carapuceiro. Graças a isso, temos muitas fontes primárias para, inclusive, uma história da caricatura.

Waldemar Valente, no livro O Padre Carapuceiro: Críticas de costumes na primeira metade do século XIX (Departamento de Cultura da SEEC, Recife, 1969), construiu outra importante fonte para conhecimento do biografado e sua época. Vários são os trabalhos que abordam o padre e sua obra, pois, como disse o escritor Gilberto Freyre, no prefácio da obra acima citada, “o padre-mestre Lopes Gama, ao falecer, não se aquietou em figura de museu histórico. Continuou a despertar interesse e admiração em não poucos de seus pósteros, dentre os mais lúcidos e mais sérios”. A reedição do trabalho de Amaro Quintas confirma o pensamento do autor de Casa-grande & senzala.

PRAIEIRA
A primeira impressão do livro foi levada a efeito pela Imprensa Oficial de Pernambuco, atual Cepe, e, desde então, já recebeu várias reedições, o que demonstra o valor histórico da obra. Utilizando como fontes primárias as notícias de jornais, Amaro Quintas reconstrói a época em seus vários matizes. Fatos, atores e ideias propostas, expressas ou subjacentes, são apresentadas e interpretadas sob uma visão científica e, felizmente, acessível.

A Revolução Praieira (1848-49) encerra o “ciclo das revoluções pernambucanas”. Durante muito tempo, foi reduzida a mais uma rixa entre a oligarquia conservadora (guabirus) e a liberal (praieiros). Em 1948, sendo governador de Pernambuco o jornalista Barbosa Lima Sobrinho, comemorou-se o centenário do movimento e o professor Amaro Quintas consagrou-se com sua abordagem em letra de forma.

A composição de forças da Revolução foi corretamente ampliada com o destaque de componentes sociopolíticos como os caixeiros, os comerciantes e pensadores diferenciados (socialistas, republicanos etc.). O antilusitanismo, o problema da propriedade territorial, o desemprego urbano dos “nacionais” e o domínio alternado das oligarquias (“Quem não é Cavalcanti é cavalgado”) compunham um quadro interno explosivo, que atingira seu ápice em 1848.

Some-se a tudo isso o espírito quarante-huitard, apogeu das revoluções burguesas no dizer de Eric Hobsbawn. Intelectuais como Antonio Pedro de Figueiredo, Borges da Fonseca, o padre Lopes Gama, Abreu e Lima e Nascimento Feitosa, dentre outros, apesar de algumas ideias discrepantes, preocupam-se com os problemas da época e propõem soluções. A obra do professor Amaro Quintas mostra as contradições dentro do movimento: os escravocratas e donos de terras queriam reformar para conservar; os setores mais radicais, mas não hegemônicos, pretendiam reformas mais profundas. Predomina, como mostra Amaro Quintas, o sentimento federalista e social.

Sem as limitações temáticas impostas pelo academicismo esterilizante de muitas instituições, ele consegue manter um padrão científico, porém inteligível para os leigos. As três obras têm, portanto, um sentido social que tornam sua reedição uma contribuição marcante para a historiografia pernambucana. 

JOSÉ ERNANI SOUTO ANDRADE, professor do departamento de História da Unicap, especialista em História de Pernambuco.

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