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Franz Liszt: Um cabeludo que mudou o formato dos recitais

Aos 200 anos do nascimento do compositor húngaro, ele é lembrado tanto pelo talento para tocar partituras difíceis quanto pelo status que trouxe ao intérprete

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Julho de 2011

Liszt foi o primeiro músico, de que se tem notícia, a conquistar fama pelos seus longos cabelos naturais

Liszt foi o primeiro músico, de que se tem notícia, a conquistar fama pelos seus longos cabelos naturais

Imagem Reprodução

Imagine o quão estranho você acharia, hoje, se entrasse numa sala de concertos para ouvir um recital de piano solo e o instrumento estivesse com a cauda virada para o fundo do palco, de modo que o solista ficasse de costas para a plateia; ou que, num ano de efemérides, ninguém promovesse um programa dedicado exclusivamente a um compositor falecido; ou, ainda, que o intérprete não se preocupasse em memorizar as partituras, e sempre desse lugar a outros pianistas e findasse sua participação com apenas uma obra executada.

No início do Romantismo, esses eram costumes vigentes, e talvez viessem a caducar em um dado momento devido a algum estalo de bom senso, mas coube ao maior pop star da era pré-fonográfica modificar as convenções, respaldado pelo prestígio junto a nobres, clérigos e casas reais por toda a Europa. De início, Liszt Ferenc (batizado conforme a prática húngara de se antepor o sobrenome ao prenome) fez perceber, simplesmente, que o som do piano se propagaria melhor, se a tampa estivesse aberta em direção ao público.

Todavia, Liszt (1811-1886) possuía intenções mais recônditas, e paradoxalmente mais narcisistas – sem deméritos nessa observação. Sabendo que tocar sem encarar os ouvintes equivalia a proteger-se deles em uma redoma psicológica e, seguro que era de sua virtuosidade sobre-humana, comparável somente à do ídolo Niccolò Paganini (1782-1840), adotou o posicionamento de perfil (tal qual o de um violinista), a fim de que o público pudesse conferir sua técnica, e de que o mulherio em especial cultuasse suas feições.

Se, ao longo do Romantismo, a figura do intérprete passou a competir com a do compositor, prevalecendo sobre a deste na música popular do século passado até aqui, essa conquista deve-se ao músico magiar, que, segundo o pianista e compositor Amaral Vieira, foi o maior responsável por elevar a condição social de sua profissão, após Beethoven. Tamanho status Liszt atingiu, que ditou moda de forma sem precedentes aos seus pares.

Acrescente-se ao que falamos antes o fato de que Franz Liszt – como Ferenc passou a se chamar ainda criança, posto que vinha de família germano-falante – foi o primeiro músico que se conhece a fazer fama pelos longos cabelos naturais, algo trivial apenas do surgimento do rock and roll para a frente. Liszt também impeliu outros pianistas a tocar de memória e, por tabela, a focar na interpretação em si, enquanto ela ocorria; afora ele ter disposto do privilégio de produzir concertos em que fosse a única estrela ou demonstrasse o domínio do repertório de um único compositor à sua escolha, a exemplo de Bach ou Beethoven.

Paralelamente a esses aspectos, Amaral Vieira, grande divulgador da obra lisztiana no Brasil, evidencia que a revolução inaugurada pelo húngaro na técnica pianística não buscava a mera pirotecnia com que diversos intérpretes o trataram após a morte; em contraste, o virtuosismo extremo servia de suporte para a condução de ideias musicais – fossem abstratas ou programáticas – que Liszt, ajudado por seu raro dom para lidar com partituras difíceis à primeira vista, desenvolveu em peças como os Estudos transcendentais e a Sonata em si menor.

“As passagens de dificuldade transcendental não são meras guirlandas, mas, sim, elementos interpretativos do mais alto interesse, que exploram novas possibilidades. Liszt em mãos erradas pode soar de modo abominável… Um intérprete egocêntrico e de visão estreita enfatizará sempre de modo desequilibrado os elementos que fazem parte de suas composições: transformará as oitavas, escalas, arpejos e cadências endiabradas em fogos de artifício, sacrificando a visão de conjunto e a arquitetura musical”, discerne Amaral Vieira.

Depois de um 2010 em que Chopin e Schumann – amigos de Liszt, mas de concepções e temperamentos bem diferentes – foram veementemente lembrados, agora, o gênio-mor do piano romântico recebe as atenções e completa o painel do imaginário sonoro que formou ao lado dos outros dois celebrados contemporâneos, desenhado em cores que expressaram, respectivamente, delicadeza, sonho e ímpeto. A Liszt, Pernambuco prepara uma digna homenagem este mês, no Recife e em Gravatá, em recitais abertos e estrelados por intérpretes competentes de sua obra. 

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