Arquivo

Mão Molenga: Um grupo teatral com o tempo a seu favor

Com 25 anos de atividades ininterruptas, companhia de teatro de bonecos transformou o autodidatismo num trunfo, conquistou o público e, hoje, pretende formar profissionais

TEXTO Pedro Paz

01 de Julho de 2011

Espetáculo 'O fio mágico' está circulando pelo país no Projeto Palco Giratório

Espetáculo 'O fio mágico' está circulando pelo país no Projeto Palco Giratório

Foto Mariana Leal

Estimagtizado pelo senso comum, quando comparado ao de atores, o teatro de bonecos é visto como “menor”, por ser evidentemente fantasioso e ter como público-alvo as crianças. No entanto, o grupo pernambucano Mão Molenga Teatro de Bonecos mostra, há 25 anos, que isso não passa de bobagem, fruto da supervalorização midiática da imagem dos atores. Com temas universais, os espetáculos transmitem a essência das coisas em imagens cênicas capazes de fascinar espectadores de todas as faixas etárias.

Papel, cola, massa, tinta, madeira, tecido e espuma são os ossos, órgãos e pele dos seres inanimados que, inicialmente inspirados nos personagens da série The Muppets, nasceram na Rua Doutor Sabino Pinho, 214, Bairro da Madalena, Região Metropolitana do Recife. A história do Mão Molenga Teatro de Bonecos começou exatamente nesse endereço, em 1986, no condomínio onde moravam os pais dos irmãos Fábio e Fátima Caio, dois dos integrantes do quarteto de atores-manipuladores que formam o grupo. Juntaram-se com o casal Marcondes Lima e Carla Denise, e passaram a fazer apresentações cênicas em um corredor comprido, chamado por eles de “o beco”. Hoje, a casa funciona como o ateliê da trupe.

Não se aponta com exatidão quando surgiu o teatro de animação. Mas é certo que sua história é tão ancestral quanto à do próprio teatro tradicional. Presentes nas sociedades milenares do Oriente, os místicos bonecos moldados de barro foram difundindo-se por toda a Europa e, posteriormente, pelo mundo, no período das grandes navegações, nos séculos 15 e 16. No Brasil, acredita-se que as primeiras artes dramáticas com a participação de bonecos surgiram do processo de catequese, protagonizadas pelos colonizadores portugueses. As encenações, que eram realizadas, geralmente, em presépios animados, conventos e igrejas franciscanas, com o tempo, passaram a ser exibidas em templos, sacadas, pátios, até chegarem às praças, tornando-se manifestações profanas.

Apesar de Pernambuco ser o berço dos populares mamulengos, a manifestação delesno estado somente teve reconhecimento no século 20, nas experiências dos grupos Teatro Popular do Nordeste e Mamulengo Só-Riso, fundados, respectivamente, por Hermilo Borba Filho e Fernando Augusto Gonçalves dos Santos. Foi a partir do trabalho dessas duas companhias que esse tipo de teatro de animação ficou reconhecido como uma forma de expressão dramática legítima. No entanto, até hoje, não há escola que ensine a arte da manipulação em Pernambuco.

Nesse cenário, o Mão Molenga surgiu pela iniciativa de autodidatas. O jeito era testar, na prática, as técnicas que aprendiam em livros. Mão mole, mão molenga, mamulengo. A união semântica das palavras que deram origem ao nome do gênero de teatro de bonecos foi a inspiração para denominar o grupo. Entretanto, o Mão Molenga se especializou no boneco de luva, feito de espuma, tecido e papel machê. Na grande maioria, com boca articulada e manipulação de forma direta.


Oficina e acervo funcionam na antiga residência dos atores. Foto: Ricardo Moura

O início das atividades, como quase sempre, foi muito difícil. Vontade e ajuda das famílias dos atores foram essenciais na empreitada. Naquela época, Fábio Caio tinha um bar chamado De vento em polpa, no mesmo bairro em que fica hoje o ateliê. O estabelecimento virou point no Recife, frequentado pelo público descolado da cidade. E essa foi, possivelmente, como eles atestam, a fase de maior experimentação que viveram, por meio de encenações para crianças e performances para jovens e adultos, essas últimas inspiradas em filmes como Uma cilada para Roger Rabbit (1988).

Na sua jornada, o Mão Molenga ganhou dinheiro se apresentando em festas de criança, antes de circular por todo país no Projeto Palco Giratório, do Sesc, a partir de 2006. Um dos primeiros desafios que a trupe enfrentou foi dominar o disperso público infantil das festas, atraí-lo para a encenação, enquanto os pais se divertiam em suas rodas de adultos. Desde aquele início, o exercício de metateatro – falar dele no próprio fazer teatral – está presente em quase todas as montagens do grupo, assim como o humor, sua grande tônica. Outra especificidade da companhia é desenvolver coletivamente as produções, desde o serviço “sujo” (lixar, cortar, esculturar e modelar os bonecos) até a assinatura do texto e direção. Estreando em 1987, com o espetáculo O retábulo da Barafunda, os primeiros personagens Fanhoso e Cia conquistaram o público, e sobrevivem até hoje no ateliê do Mão Molenga.

O FIO MÁGICO
Este ano, percorrendo o país com a peça O fio mágico, no citado Projeto Palco Giratório do Sesc, o Mão Molenga conta a história de Gérard, um menino impaciente que recebe o dom de adiantar o tempo, manipulando o fio da própria vida. A ação, que acontece na primeira metade do século 20, utiliza-se de máscaras e bonecos em diferentes técnicas – como recortes, fantoches e manipulação direta – para contar uma parábola sobre o tempo e a importância de vivermos e aprendermos com todos os momentos. Como pano de fundo, deparamo-nos também com situações e temas atuais: dificuldades econômicas de uma família comandada por uma mulher, trabalho infantil, devastação do meio ambiente pela expansão das áreas urbanas e industrialização, conflitos armados, assim como o amor entre jovens.

A peça é baseada na ação das parcas da mitologia grega - Cloto, Láquesis e Átropos - e traz à cena bonecos originais, confeccionados partir das criações de Mozart Guerra, escultor pernambucano residente em Paris. Explorando o improviso e o humor, os manipuladores incorporam-se à trama como personagens e, ao mesmo tempo, narram e contracenam com os bonecos.

A concepção da peça também privilegia a música como elemento narrativo. A cenografia, composta em torno de uma mesa circular de tampo móvel e modulável, remete à forma e aos elementos de um relógio, ou à própria roda da vida. Uma “máquina do tempo” que permite mudanças rápidas de cena e alterações no lugar da ação dramática.

EM 24 QUADROS
As produções do Mão Molenga, em sua maioria, caracterizavam-se pela atuação no interior de uma tenda, com personagens confeccionados basicamente em espuma e tecido. Contudo, essa lógica de produção foi alterada a partir do convite, em 1998, para participar da série 500 anos, realizada pela Massangana Multimídia (Fundação Joaquim Nabuco) para a TV Escola/MEC e veiculada em todo país, o que acabou aproximando o grupo da linguagem cinematográfica.


Fábio, Fátima, Clara e Marconi são os atores manipuladores do Mão Molenga.
Foto: Mariana Leal

A série, com quatro módulos de seis a oito episódios cada, finalizada em 2002 e com 805 personagens nos roteiros, reproduz os principais personagens, acontecimentos e cotidiano de diferentes períodos da História do Brasil, apresentando um retrato sociocultural de cada época. Nela, os bonecos ganharam uma estética mais escultórica, com técnicas de papel machê. A textura deles precisava ser mais lisa, por exemplo, para que os materiais utilizados não chamassem mais a atenção do que a própria história que estava sendo contada no vídeo.

Depois dessa experiência, os trabalhos em vídeo não pararam mais. Destacam-se as campanhas do Festival Sesi Bonecos do Mundo, realizadas em 2004 e 2005, além de trabalhos para produtoras e instituições públicas e privadas, como Unicef, TV Jornal/SBT, REC Produções, Museu do Estado e Rede Globo Nordeste.

Com um quarto de século de experiência, o Mão Molenga comemora o feito com mais um espetáculo e investimentos na formação e teoria do teatro de bonecos. Os dois projetos foram inscritos no último editais de fomento da Fundarpe e da Funarte, este, aguardando aprovação.

Algodão doce é o nome do projeto aprovado, um espetáculo de formas animadas em que figuram atores-manipuladores, bailarinos, máscaras, bonecos e objetos. A peça remete aos processos da formação do povo brasileiro que definiram alguns dos seus traços identitários. A proposta é mostrar o amargo passado escravagista do país de forma lúdica e poética.

No plano da pesquisa, o grupo pretende aprofundar questões práticas e teóricas do fazer cênico em um livro, além de realizar oficinas abertas a não integrantes do Mão Molenga, instigando outros realizadores a dar continuidade ao teatro de bonecos.

Paralelamente, serão estabelecidas iniciativas em que seja possível uma aproximação do teatro de formas animadas a públicos portadores de deficiência, como surdos e cegos. Em O fio mágico, o Mão Molenga já exercita o trabalho com recursos táteis, além da audiotranscrição para cegos. Eles também experimentam apresentações para surdos com tradução simultânea na linguagem de sinais. 

PEDRO PAZ, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

Publicidade

veja também

Franz Liszt: Um cabeludo que mudou o formato dos recitais

Evaldo Coutinho: Pensamento à espera de (re)leituras

Riso: Um personagem de todas as épocas