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Antúlio Madureira: O homem que faz do serrote um instrumento

Membro do clã que se tornou sinônimo do armorial, músico comemora 35 anos de carreira, unindo cultura popular e experimentação, com resultados comparados aos de artistas como Hermeto Paschoal

01 de Agosto de 2011

Antúlio Madureira

Antúlio Madureira

Foto Divulgação

A cada domingo de Carnaval, boa parte dos foliões que passa pelo Marco Zero dança ao som de uma canção de versos bem simples e curtos, inspirada em um dos principais personagens animais do bumba-meu-boi (“É no passo da ema, é lá e lô/ É no meu Sertão, é lá e lô...”). Simpático, o boneco da ema que entra em cena nessa hora tornou-se tão requisitado após suas aparições, que hoje em dia pode ser visto o ano todo em fotos publicadas no Orkut e no Facebook.

A ema, porém, não é a atração principal do espetáculo: ela prepara o clímax para outro personagem retirado do bumba-meu-boi, a cobra, que se encontra com o dragão do bloco carnavalesco Eu Acho é Pouco e desfila pelo meio da multidão no Recife Antigo. Feita de pano, essa serpente, que mede mais de 30 metros de comprimento, e aumenta a cada ano, adquiriu fama de casamenteira para quem caminha debaixo dela, por conta das histórias de paquera, namoro e matrimônio dali surgidas.

O capitão ou, para sair do jargão do bumba-meu-boi, o dono da ema e da cobra iniciou sua carreira de músico, dançarino e ator no surgimento do Balé Popular do Recife, então chamado Grupo Circense de Dança Popular, em 1976. Naquele tempo, o Quinteto Armorial e a Orquestra Armorial já haviam lançado seus principais discos e davam lugar a uma nova fase da música armorial, conduzida pelo Quarteto Romançal e pela Orquestra Popular do Recife. Faltava a articulação com a dança, que veio a ser realizada pela instituição fundada por cinco dos 11 irmãos Madureira.

Um dos outros seis irmãos – Antônio José, o “Zoca” Madureira – ficou fortemente associado ao Movimento Armorial, porque atuou tanto no Quinteto Armorial quanto no Quarteto Romançal, ao passo que os demais membros da família tiveram sua imagem ligada ao Balé Popular. Talvez por isso, Antúlio Madureira, o citado capitão, nunca seja mencionado como um artista participante do movimento, mesmo que tenha seguido o mesmo caminho de pesquisa e releitura do folclore nordestino.


Antúlio, assim como todos os seus familiares, tem uma ligação muito forte com o Balé Popular do Recife. Foto: Divulgação

Ele atribui esse fato ao seu trabalho fora do circuito musical: “Não que eu não me ache um artista armorial, mas é que nunca fui incluído nas ações oficiais do movimento. Como abri um pouco o leque para viver como músico, participando do Carnaval e de festejos juninos, minha música afastou-se do contexto mais rígido do armorial. Sempre compus, mas as interpretações são feitas pelos meus grupos”. Antúlio ressalta que essa opção por tocar ao lado dos grupos musicais que lidera, como o Perré-Bumbá, também se deve às dificuldades de outros intérpretes manejarem os instrumentos que ele mesmo fabrica. Possivelmente, ninguém mais conseguiria executar a Ave Maria de Schubert ou a Cantilena da quinta Bachianas Brasileiras em um mero serrote, sem nenhuma adaptação especial. E as experiências timbrísticas continuam, tomando por base a cultura popular do Nordeste,“mas não me prendo a isso”, ressalva o artista.

MÚSICA DE RUÍDOS
No novo projeto em que está trabalhando, previsto para estrear em dezembro, Antúlio pretende transformar em música ruídos de obras de construção, como aqueles que estavam audíveis no dia dessa nossa conversa. “Estou pegando sons da rua. Esse timbre agora, da construção, será utilizado em Conserto para um concerto, que acontecerá dentro de um galpão e usará essas células rítmicas do bate-estaca, da furadeira. Por trás de todo esse barulho, há um sentido musical. Uma furadeira, por exemplo, tem semelhanças com o glissando de um trombone”, explica.

A linha musical de Antúlio guarda pontos em comum com experiências tão inusitadas no Brasil quanto a dos instrumentos caseiros fabricados pelo mineiro Marco Antônio Guimarães, do grupo Uakti, o improviso musical a partir de objetos, à Hermeto Pascoal, ou o eventual contato com a música concreta, fora a nítida influência do armorial no emprego de ritmos e escalas modais nordestinas. O músico, porém, rejeita com razão quaisquer comparações, enfatizando que as vertentes em geral servem à sua música, e não o contrário.

Sobre a música brasileira atual, afirma que ela tem perdido cada vez mais a poesia e virado negócio, sucumbindo também à política: “Não há mais a iniciativa privada dos músicos. Tudo é voltado para o governo. Se você tem alguma força dentro do governo, está bem; se é a arte pela arte, está fora”. Mas, defendendo a máxima de que “o bem sempre prevalece”, mostra-se esperançoso: “As pessoas perdem esse espaço em que era para acontecer a arte, a música, mas acredito que o meio sujo não tem vida longa, pois em alguns anos esses valores serão retomados. A própria natureza cuida disso”.

No cenário pernambucano, o término do mandato de Ariano Suassuna na Secretaria de Cultura do Recife, nos anos 1970, é lembrado por Antúlio como aquele que marca a progressiva desvalorização da cultura popular no nível institucional, mas também da abertura de uma nova trilha: “Nós perdemos aquele espaço, então tivemos de vender nossos espetáculos. Em contrapartida, houve a busca de informações sobre a cultura popular local. Antes, os trabalhos escolares eram copiados da TV ou da música folclórica de outros países. Depois, as escolas pediram orientação ao Balé Popular”.


Ainda jovem, atuando no espetáculo Prosopopeia.
Foto: Divulgação

Dessa época, Antúlio destaca outras ações que ajudaram a mudar a visão da cultura popular no Estado, como a criação do Bloco da Saudade, pelo seu irmão Zoca (Antônio José) Madureira, e dos grupos instrumentais armoriais (“Então, a própria Orquestra Sinfônica do Recife passou a tocar música folclórica”). Essas referências se fazem presentes em suas composições ao lado das melhores recordações que ele guarda do Balé Popular do Recife, com o qual atua até hoje, e planeja um projeto infantil de canções e danças populares.

SINOS DOBRAM
Um dos momentos que Antúlio rememora nas andanças com o Balé Popular envolve uma situação incômoda e outra compensadora, na Argentina. Após o empresário da turnê naquele país ter passado calote nos dançarinos, eles obtiveram auxílio da embaixada brasileira para chegar de ônibus até a fronteira, em Paso de los Libres. Lá, tiveram a sorte de encontrar um médico espírita, proibido de atuar no Brasil sob pena de charlatanismo, que simpatizou com o grupo e ofereceu ajuda financeira em troca de uma apresentação para seus pacientes. O anfitrião, entre outras coisas, providenciou hospedagem durante uma semana, enquanto os integrantes procuravam um meio de poder continuar a viagem.

Já em Juazeiro do Norte, no encerramento de um festival, Antúlio – desta vez solo – protagonizou uma história mais misteriosa, e perante um grande público. Quando tocava no palco em frente a uma igreja fechada para reformas (ou talvez não), o sino do templo começou a tocar no momento em que interpretava a Ave Maria de Schubert. Segundo o músico, que pretende juntar seus relatos em um livro de memórias, daqui a alguns anos, ninguém sabe quem foi o responsável por aquilo.

Ele conta que, em seus 35 anos de carreira, a serem coroados não somente com o espetáculo Conserto para um concerto, mas também com o lançamento de seu primeiro DVD, Teatro instrumental, nunca teve uma aproximação tão intensa com seus fãs: “Não sou um artista popular, mas em todo canto sou muito bem-recebido e vejo que nossas atividades estão sendo reproduzidas. Ouço coisas do tipo: ‘Depois que vi seu trabalho, mudei alguma coisa. Fui atrás dos elementos da minha terra’, ou seja, servi de algum exemplo”. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, crítico musical e mestrando em Comunicação Social. 

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