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É possível narrar sem representar?

Inspirados pela vanguarda moderna, autores buscam o não figurativo e o não narrativo nos quadrinhos

TEXTO Diogo Guedes

01 de Agosto de 2011

Richard Hahn explora na obra a incerteza e a cegueira

Richard Hahn explora na obra a incerteza e a cegueira

Imagem Reprodução

A pergunta do título pode ser complexa. Narrar sem representar? Como é possível contar algo sem, em nenhum momento, dar de fato um objeto concreto (um lugar, um tema, qualquer coisa) para que o leitor se localize? Observando a literatura, é bastante difícil conceber um texto “não figurativo”, como foram as pinturas de Wassili Kandinsky, Franz Mac e Paul Klee – qualquer tentativa parece resultar simplesmente em um texto nonsense ou surrelista. Nos quadrinhos, o desenvolvimento dessa linguagem tem sido debatido produtivamente por autores jovens e nomes já consagrados na área.

Para começar, é bom definir o que normalmente se considera abstrato. O termo vem de uma tradição não narrativa, a das artes plásticas, que o entende como obras que dispensam a figuração, ou seja, que não trazem em si referência a nenhum objeto da realidade. Para linguagens como a música e a fotografia, a apropriação do conceito foi mais simples, por se tratarem de formatos que prescindem da narrativa como elemento obrigatório. Nas artes visuais, a videoarte se mostrou influenciada por essa vanguarda, mas as obras parecem sofrer a mesma dificuldade de romances, peças teatrais e histórias em quadrinhos: é difícil contar algo sem se reportar a elementos existentes no mundo.


A busca de Alexey Sokolin é pela multiplicidade. Imagem: Reprodução

Faz alguns anos, as HQs passaram a expressar com maior frequência essa problemática. Mais do que definir o que seria o abstracionismo na linguagem, alguns autores, essencialmente nomes alternativos, tentaram desenvolver – na prática – o que poderia ser o abstrato nessa linguagem. Apenas em 2009, o quadrinista Andrei Molotiu tomou a iniciativa de reunir, na coletânea Abstract comics (inédita no Brasil), uma impressionante lista de trabalhos e autores que representam bem a influência dessa vanguarda plástica.

Como ele mesmo ressalta no prefácio – uma espécie de manifesto tardio do estilo –, as HQs do livro poderiam ser definidas como “arte sequencial” (usando o apelido artístico dos quadrinhos, cunhado por Will Eisner), “feita exclusivamente de imagens abstratas”. Ele prefere, no entanto, dar um sentido mais amplo ao gênero, selecionando na obra algumas produções que trazem elementos figurativos, mas que não constituem uma narrativa clara.

Como um dos principais defensores do conceito, Molotiu vê em comum entre os diversos trabalhos do livro a ausência de uma motivação narrativa. É um ponto bastante questionável, mas o quadrinista argumenta que, retirada a vontade de contar algo, resta uma ênfase nos elementos formais dos quadrinhos, como os formatos dos requadros (as molduras de cada desenho), balões, cores e traçados.


Draw se diz interessado nos limites das HQs. Imagem: Reprodução

Abstract comics rendeu diversas discussões sobre o tema, com artigos, como o de Charles Hatfield, criticando a definição ampla de abstracionismo do antologista. Outros, sem negar a importância do que o livro propõe, argumentam que uma HQ totalmente desprovida da intenção de criar uma narrativa sequer pode ser considerada pertencente à linguagem. O rótulo, na verdade, foi pouco aceito como única ou principal motivação da carreira de algum quadrinista específico, mas vários, em algum momento de sua trajetória, experimentaram essa proposta, com resultados múltiplos e até mesmo contraditórios entre si.

A obra de Molotiu traz diversos nomes atuantes no cenário alternativo das HQs, ainda que pouco conhecidos. As belas “histórias” de Henrik Rehr, Derik Badman, Richard Hahn, Alexey Sokolin e Draw são provas disso. A grande surpresa, no entanto, é a presença de um dos mais famosos autores de quadrinhos e um dos pais da contracultura americana, Roberto Crumb.

Sua colaboração para o livro Abstract expressionistic ultra super modernistic comics (Quadrinhos super ultra modernistas abstratos expressionistas), de 1967, não pode ser vista como um exemplo sólido do conceito proposto, mas, sim, como um passo inicial dele, uma de suas obras precursoras. Como o próprio título evidencia, a experimentação irônica de Crumb não se restringe a formas abstratas: com a presença de figuras identificáveis, ela junta o traço sujo do quadrinista a uma lógica narrativa que parece mais nonsense do que abstrata. Os objetos representados podem até não trazer uma relação direta entre si, mas ressaltam essa própria quebra de sentido.


A obra de Crumb é precursora do abstracionismo na linguagem.
Imagem: Reprodução

Nesse trabalho de Crumb, já está apontada a principal dificuldade de trabalhar o abstracionismo na linguagem: o que é simplesmente nonsense e o que de fato é não figurativo? A solução de Molotiu abriga diplomaticamente as duas respostas, mas os melhores resultados são dos autores que, sem abdicar dos elementos formais dos quadrinhos, levam os elementos abstratos ao limite, sugerindo uma narrativa sem apresentar nenhum objeto, como faz Warren Craghead III em Un caligramme.

No Brasil, as tentativas abstratas são raríssimas, entre elas estão as criações, deste ano, de Lucas Tonon Gehre para a publicação independente Samba, editada em parceria entre Gabriel Góes e Gabriel Mesquita. Mas a permanência do debate sobre o assunto, dois anos depois da publicação da coletânea de Molotiu, com produções renovadas e resultados diversos, indica um duplo retrato dos quadrinhos atualmente.

Primeiro, aponta a própria vontade dos autores de posicionar as HQs como arte, como linguagem própria, autossuficiente e autorreflexiva – uma velha briga entre os nomes autorais e alternativos dos quadrinhos. Depois, evidencia o rompimento dos limites e das “imposições” formais das narrativas das HQs de vendagem em massa. Assim, mais do que um movimento, como foi o abstracionismo moderno, evitar os caminhos convencionais dos quadrinhos é a forma encontrada pelos autores de buscar um elemento cada vez mais raro com a profusão atual: o estilo próprio, que os leve aos limites do que é fazer “arte sequencial”. 

DIOGO GUEDES, repórter da Continente Online.

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