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Um artista diante dos seus duplos

Roberto Ploeg realiza uma série de pinturas tendo, como modelos, pintores de sua convivência, posicionados de modo a aludir aos esquivamentos de pessoas detidas pela polícia

TEXTO Mariana Oliveira

01 de Agosto de 2011

Artista finaliza conjunto de obras com autorretrato, intitulado 'Capturados'

Artista finaliza conjunto de obras com autorretrato, intitulado 'Capturados'

Foto Chico Ludermir

A representação de uma figura humana ou de um grupo, a partir de um modelo vivo, de uma imagem fotográfica, ou mesmo fazendo uso da memória, é o que se chama de retrato. Muito utilizada durante o processo de aprendizagem de jovens artistas, essa categoria da pintura ganhou autonomia no século 14 e, desde então, nunca deixou de ser produzida. A imagem de um pintor em frente a um cavalete com uma tela retratando alguém ou um grupo de pessoas, como fez Velásquez, em As meninas, é clássica.

Alguns artistas, como o próprio espanhol, representaram-se em autorretratos, outros, mais reclusos, jamais se mostraram, não conhecemos seus rostos, apenas suas obras. Foi refletindo sobre essa dicotomia entre o revelar-se e o esconder-se, entre a exposição excessiva na mídia e a completa reclusão de alguns artistas, que Roberto Ploeg, holandês radicado há quase 30 anos no Brasil, decidiu pintar a série Capturados, na qual retrata apenas artistas que atuam em Pernambuco. Esse trabalho resgata a tradição de pinturas e gravuras que traziam imagens de artistas, feitas para os colecionadores dos séculos 16 e 17. “Minha proposta é fazer o mesmo nestas primeiras décadas do século 21, ter uma coleção de artistas de várias gerações, quase como um elucidário do contemporâneo”, afirma.


Marianne Peretti. Ploeg brinca com a cartela de cores, em busca
da ideia de transparência. Imagem: Divulgação

O quadro que deu origem à série foi pintado em 2007. Era um retrato do amigo, também pintor, Mané Tatu. À época, o artista estava produzindo obras para a exposição Ecce homo, cujo ponto de partida era a violência nas grandes cidades. Ploeg colheu imagens fotográficas publicadas na imprensa, que mostravam cenas violentas e pessoas mortas, e também assistiu aos programas televisivos policiais, nos quais os acusados fazem o possível para se esconder das câmaras. A partir dessa iconografia, pintou suas telas com rostos anônimos.

Por estar vivendo esse universo intensamente, ao retratar Mané Tatu, decidiu pedir que ele posasse com as mãos para trás, como se estivesse algemado, e virasse o rosto. O quadro foi feito e seguiu para a casa do pai de Mané, o pintor José Cláudio, onde passou a chamar a atenção. A partir da repercussão, Ploeg começou a pensar sobre a relação que existe entre a obra, o artista e sua biografia. Seria preciso conhecer o artista para entender sua obra? Dessas inquietações, surgiu o desejo de construir uma série em que pudesse homenagear seus amigos artistas, alguns deles extremamente reclusos, outros amantes dos holofotes, brincado com a ideia daquele que não deseja se expor e do outro que gosta e precisa aparecer – algo fundamental, por exemplo, numa performance.

Na primeira obra, Mané Tatu pousou para o amigo, nas outras, os artistas convidados foram fotografados pelo próprio Ploeg – em posturas clássicas de prisioneiros que tentam esconder-se –, e só depois transpostos para a tela. O resultado poderá ser visto a partir do dia 29 de setembro, na Galeria Mariana Moura, quando se espera a presença, pelo menos nos quadros, dos 25 artistas retratados. No total, são 28 telas em óleo, em diversas dimensões. Além deles, complementado o processo metalinguístico que permeia todo o material, Ploeg está terminando de pintar um autorretrato que deve compor a mostra.


O artista Eudes Mota incorporou facilmente os personagens
sugeridos por Ploeg. Imagem: Divulgação

OS RETRATADOS
Para levar à frente a série, necessitou de um certo tempo – pintou a maioria das telas entre 2009 e 2010. Foi difícil encontrar tempo na agenda atribulada de Marianne Peretti, que teve sua imagem capturada em dois momentos. No primeiro, ela está com o rosto levemente virado, com as mãos para trás, mas tudo de maneira muito delicada, condizendo com seu temperamento. Na outra, um close no rosto da artista, parcialmente coberto por suas mãos. Durante o registro fotográfico, ela comentou: “Assim, ninguém vai me ver”. Em ambos, os óculos de armação grossa tornam-se ícone, enquanto Ploeg pinta com um paleta de cores que vai mudando gradativamente, ganhando outros tons, quase como transparências, numa referência indireta ao trabalho em vitrais de Peretti.

O jeito despojado de José Cláudio também é revelado. Ele é flagrado com seu calção todo melado de tinta, com a blusa enrolada nas mãos escondendo supostas algemas. No segundo quadro, está usando as suas inseparáveis sandálias Crocs, que não saem mais dos seus pés desde que um pequeno acidente o impediu de usar sapatos confortavelmente. Guita Charifker usa um tomara-que-caia colorido, indumentária que também lhe é recorrente. Thina Cunha traz um certo ar escultórico, numa associação clara às suas obras em formato de totem. Noutro retrato, aparece como uma desperate housewife – a composição é feita num beco ao lado do ateliê da artista, com banco de plástico, vassoura e um tanque de lavar roupa. “Achei esse quadro muito bom, pois isso não condiz com Thina, a elegância em pessoa”, comenta Ploeg.

Assim, brincando com referências reais e outras contrárias às características dos artistas, Ploeg conseguiu reuniu personalidades díspares como Carlos Mélo, Reynaldo Fonseca e Tereza Costa Rêgo. Ela foi retratada com uma de suas túnicas e estende a mão para impedir o registro, como se fugisse de um paparazzi. Logo ela, uma das artistas locais que mais ganha espaço na mídia. O retrato de Reynaldo, que vive recluso em seu apartamento, invade sua privacidade e revela as meias Kendall utilizadas pelo pintor, indispensáveis a alguém que até hoje pinta por horas, de pé. O retrato de Carlos Mélo, o mais contemporâneo dos artistas capturados, surge como uma grande massa corpórea que salta do quadro e avança em direção ao espectador.


Gil Vicente foi um dos amigos retratados em mais de uma tela.
Imagem: Divulgação

Maurício Arrais veste uma camisa em que está estampada uma de suas obras; um atormentado Gil Vicente parece travar uma batalha interior e vira seu rosto e dorso para o lado. Ploeg aproveita para jogar com as luzes e as sombras. Eudes Mota, por sua vez, encarnou personagens em duas pinturas. Numa, parece carregar nas costas todo o peso do mundo, noutra, encarna um ativista de uma gangue e amarra a camisa sobre o rosto.

Badida, que mantinha um ateliê na Rua do Amparo, em Olinda, mudou-se para um apartamento na Avenida Rosa e Silva, no Recife. No retrato, ela observa o exterior da varanda, cenário que remete às grades de uma prisão. O paisagista Eduardo Araújo aparece, tranquilamente, preparando um cigarro; aqui, a prisão não é a casa, mas o vício.

O PINTOR
Ploeg não poderia deixar de retratar Eduardo Araújo, já que ele foi peça fundamental na sua aproximação com a pintura, no princípio dos anos 1990. “A gente morava em Campina Grande até 1988, viemos morar em Olinda e minha mulher o conhecia. Ele andava com José Cláudio, Guita, e me incentivou muito”, diz. Com formação em Teologia, Ploeg sempre teve admiração pelo universo da arte, desenhava quando jovem, mas nunca teve coragem de investir nessa aptidão. José Cláudio costuma contar que, quando leu as cartas de Van Gogh para seu irmão, Théo, decidiu que queria ser pintor. A leitura do mesmo livro provocou uma ideia contrária no jovem Ploeg, que, de tão impressionado com as cartas de seu conterrâneo, teve medo de fazer essa opção.


Tereza Costa Rêgo, em sua habitual túnica, como se fugisse de
um paparazzi. Imagem: Divulgação

“Convivendo com Eduardo, o receio desse universo diminuiu, ficou mais próximo. O fato de ter vindo para Olinda colaborou com essa aproximação, já que estavam no Ateliê Coletivo Baccaro, Gil Vicente, Luciano Pinheiro, a marchand Tereza Dourado. Fiz cursos com Zé de Moura, Delano e Flávio Emanuel (no MAC), na Fundaj, no IAC, na Escolinha de Artes do Recife. Até que, em 1995, comecei a pintar e não consegui mais deixar”, conta.

Desde então, ele vem se dedicando à pintura, numa investigação recorrente da figura humana, com caráter realista, mas com pinceladas soltas, dando textura aos seus quadros. Quem se aproxima de uma de suas obras observa as pinceladas largas, as gradações de cores, a solidez da tinta. Em seu processo de criação, outra coisa que o apaixona é a presença do modelo no ateliê. “Eu me sinto acariciando a pessoa com o retrato, o encontro com o modelo também é muito interessante.”

Em Capturados, Ploeg usa a pintura para falar da pintura e dos pintores, expondo os retratados, suas obras e a si mesmo. Um afago entre amigos. 

MARIANA OLIVEIRA, repórter especial da revista Continente.

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