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O inesquecível 21 de julho de 1975

Em 'Tapacurá, viagem ao planeta dos boatos', o jornalista Homero Fonseca remonta o pânico que se alastrou pelo Recife em um dia chuvoso

TEXTO Danielle Romani

01 de Setembro de 2011

Moradores fogem de suas casas, ao saber do suposto estouro da barragem

Moradores fogem de suas casas, ao saber do suposto estouro da barragem

Foto Pedro Luiz/Divulgação

Os que participaram do episódio, ao vivo, com todas as suas nuances dramáticas, jamais vão esquecer aquela segunda-feira, dia 21 de julho de 1975. Nas primeiras horas da manhã daquele dia, uma onda de pavor, pânico, medo e descontrole se alastrou pela capital pernambucana. Por toda a cidade, ecoava o grito de que a barragem de Tapacurá acabara de estourar, prometendo deixar o Recife devastado sob suas águas. Algumas pessoas morreram, muitas se machucaram, inúmeras largaram seus carros nas ruas e abandonaram suas casas, milhares ficaram atordoadas, correndo que nem baratas tontas em busca de um refúgio. Dois dias após a catastrófica enchente que destruíra vários bairros, a cidade mostrava o tamanho do seu estresse e desequilíbrio. E se entregou ao boato.

Até que o desmentido oficial fosse veiculado e a multidão se certificasse de que tudo não passara, realmente, de um boato, muita água rolou, no sentido figurativo. E, até hoje, não se sabe se houve, ou não, um culpado direto pelo fato. O jornalista Homero Fonseca foi marcado pela experiência, que deixou más lembranças não apenas na sua, mas em várias gerações de recifenses. Para detectar o tamanho do impacto que o episódio causou na cidade, ele resolveu investigar os motivos que deflagraram o fenômeno coletivo de pânico diante do “estouro” de Tapacurá. Chegou a muitas conclusões – em especial, a de que o descaso do poder público na execução de obras para prevenção e contenção de enchentes ajudou a destruir a confiança do recifense; e mais: de que não houve um foco único de boato. Ele, provavelmente, foi construído durante os dias anteriores, quando milhares de pessoas se recuperavam dos estragos causados pela maior cheia de todos os tempos.

Em 1995, após anos de pesquisas, leituras e entrevistas, Homero lançou a primeira edição de Viagem ao planeta dos boatos, que rapidamente se esgotou. Neste mês, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) relança o título, desta vez nominado de Tapacurá, viagem ao planeta dos boatos, que chega ao público com nova roupagem. A reedição traz um capítulo que não constava na publicação inicial, mas cuja inclusão é mais do que justificada: Tapacurá 2011, o retorno reconstitui como e por que o recifense se deixou assustar, novamente, por um boato que tinha como cerne a destruição da capital pelas águas do Rio Capibaribe. Trinta e seis anos depois, o pesadelo se repetia.

Para relatar o episódio, que eclodiu na tarde do último dia 5 de maio, ele voltou a conversar com autoridades, jornalistas, protagonistas e especialistas no assunto. “O sentimento de medo voltou a generalizar-se, após rumores de que o nível do Capibaribe havia subido 12,5 metros com a abertura de comportas de suas barragens e, à tarde, com a chegada da maré alta, a cidade ficaria submersa”, conta Homero no novo capítulo, que chama a atenção, principalmente, para a rapidez com que os boatos se espalharam pela cidade, graças ao uso de duas ferramentas indisponíveis aos recifenses de 1975: a internet e o celular. “A diferença mais notável entre os dois acontecimentos foi o fato de, na década de 1970, o boato e o pânico terem eclodido dias após a ocorrência da enchente catastrófica, enquanto nesse início do século 21 os rumores ocorreram simultaneamente ao perigo real de uma inundação que, entretanto, não se materializou”, descreve no livro.

AQUÁTICA
Além de registrar um episódio marcante para a cidade, o livro de Homero faz uma reflexão sobre a relação dos recifenses com a cidade aquática. Lembra que, desde os tempos remotos da colonização, a população aqui instalada enfrenta as cheias e alagamentos dos rios Capibaribe e Beberibe. O Recife, enfatiza Homero, é uma cidade roubada das águas.

A luta do homem para ocupar a vasta área de manguezal à direita das terras altas de Olinda começou a se intensificar há muitos séculos. “Quando os holandeses da Companhia das Índias Ocidentais, à força das armas, ocuparam a região, no século 17, esse movimento (de ocupação das áreas alagadas) acelerou-se. Com know-how de domadores de águas, os flamengos dominaram o espaço físico e fizeram o núcleo urbano expandir-se na direção da terra firme. Sobretudo no período Nassau, projetaram e construíram palácios, pontes, diques, estradas, casas, canais.” E lembra que a vila cresceu “tapando camboa, engolindo maré, aterrando pedaços de mangue, comendo ilhas, virou cidade. A maior parte da zona urbana, hoje, foi edificada em cima de aterros”.

Durante o trabalho, Homero se preocupou em estudar outros fenômenos coletivos que colocaram cidades em polvorosa. Entre os episódios, estão o Êxodo de Paris, que aconteceu durante a invasão da cidade pelos alemães, na Segunda Guerra Mundial, e a falsa transmissão radiofônica de um ataque de marcianos, feita por Orson Welles, em 1938, que parou Nova York e espalhou pânico nos Estados Unidos.

No livro, há também pesquisas e estudos científicos, mas o tom que prevalece é o da boa reportagem, com um ritmo intenso, rápido, com espaço até mesmo para pequenas – e, hoje, patéticas – comédias pessoais, ajudando a tornar a leitura mais leve e a amenizar o clima tenso do episódio que transtornou a cidade. 

DANIELLE ROMANI, repórter especial da revista Continente.

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