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“A Academia não quer sujar as mãos”

Um dos pioneiros dos estudos de Comunicação no Brasil, José Marques de Melo critica o desempenho da pesquisa nas universidades e demonstra preocupação com o futuro do jornalismo impresso

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Setembro de 2011

José Marques de Melo

José Marques de Melo

Foto Givaldo Barbosa/ Ag. O Globo

Num momento de mudanças e incertezas no jornalismo, acentuadas pela emergência de novas forças no campo da comunicação, as reflexões de um pesquisador que tem quase meio século dedicado ao assunto tornam-se ainda mais importantes. O professor José Marques de Melo é considerado um pioneiro e um dos maiores nomes dos estudos de Comunicação no Brasil. Nascido em Palmeira dos Índios, em Alagoas, há 68 anos, foi no Recife, na década de 1960, que começou sua vida profissional como jornalista e, quase simultaneamente, como professor nos primeiros anos do curso de jornalismo da Universidade Católica. Ainda jovem, mudou-se para São Paulo, onde fez carreira como professor na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Também na USP, obteve seu doutorado, em 1972, e a livre-docência, em 1983.

Atualmente, Marques de Melo é professor emérito da USP e diretor-titular da Cátedra da Unesco de Comunicações na Universidade Metodista, em São Bernardo do Campo. É membro do conselho editorial de várias publicações acadêmicas e participa das principais sociedades científicas de sua área. Sua produção está refletida em cerca de 50 livros que escreveu ou organizou. Presenciou vários momentos do jornalismo e acompanhou a própria transformação da Comunicação Social em campo de estudo importante. Nessa entrevista, concedida às vésperas de vir ao Recife para participar do 34º Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), ele fala sobre os rumos da pesquisa acadêmica, e sobre o presente e o futuro do jornalismo e da indústria cultural.

CONTINENTE Que comparação o senhor faz entre a qualidade da pesquisa acadêmica em Comunicação que se desenvolve no Brasil de hoje e a de outras regiões do mundo?
JOSÉ MARQUES DE MELO O Brasil desenvolve, hoje, uma pesquisa acadêmica situada no mesmo patamar daquela gerada na Europa ou nos EUA, sem dúvida, ocupando a vanguarda da produção latino-americana. No recente congresso internacional da nossa comunidade acadêmica em Istambul, a delegação brasileira foi a mais numerosa. Aproximadamente 110 papers inscritos por brasileiros passaram pelo crivo dos pareceristas, quase sempre europeus ou norte-americanos, designados pela International Association for Media and Communication Research (IAMCR). O grande problema a enfrentar é o pouco interesse despertado junto aos acadêmicos anglófonos pelas pesquisas brasileiras. Apesar de apresentadas em inglês, elas mimetizam desnecessariamente, no meu entender, os estudos hegemônicos, como se o conhecimento produzido nas ciências sociais pudesse ser aplicado sem passar por filtros de natureza cultural.

CONTINENTE Como vê o futuro do ensino superior do Jornalismo como área específica do conhecimento, num momento em que se difunde a ideia de que qualquer pessoa munida de um celular poderia apurar e difundir notícias (jornalista cidadão)? Acha que há uma precarização da profissão? A quem interessaria isso?
JOSÉ MARQUES DE MELO O jornalismo defronta-se no Brasil com dupla incerteza, a do ensino e a da profissão. As escolas deixam de ser “cartórios” ou “fábricas” de diplomas, com o fim da reserva de mercado para os bacharéis certificados pelas faculdades e voltam ao seu papel original, ou seja, centros de formação de produtores de conteúdo informativo e espaços de investigação sobre os fenômenos gerados pela indústria de notícias. Exatamente aquela situação identificada por Luiz Beltrão, há 50 anos, quando fundou o Curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Ele teve que convencer o mercado sobre a qualificação dos profissionais que diplomava para lograr credibilidade pública. Hoje, o panorama é mais complexo porque o mercado está saturado de jornalistas preparados para a função, mas desprovidos de referencial cognitivo capaz de suprir as demandas reais das empresas. Isso acarreta a precarização ocupacional, reduzindo o poder de barganha do “exército de reserva” que sai da universidade a cada ano. Não me preocupa muito a insurgência do jornalista-cidadão, porque este só atua organicamente em comunidades onde a escassez de informação impele os cidadãos responsáveis a suprir as deficiências causadas pela ausência de fluxos regulares de notícias. Para sair do impasse, vejo duas opções simultâneas: criar programas de reciclagem profissional para os jovens, abrindo perspectivas de trabalho em sintonia com o empresariado, governo e setor terciário; e buscar estratégias eficazes, através do mestrado profissional, para formar uma nova geração de professores de Jornalismo focados na dinâmica dessa indústria. Trata-se de ocupar os lugares existentes no magistério superior, mas precariamente preenchidos, na atualidade, por jovens docentes forjados em mestrados e doutorados acadêmicos que privilegiam o campo genérico da comunicação, sem dar atenção ao conhecimento específico do jornalismo.

CONTINENTE O senhor enxerga um futuro para o jornal impresso?
JOSÉ MARQUES DE MELO O jornal impresso, tal qual produzido hoje no Brasil, está com os dias contados. Os jornais de prestígio, que atendem aos interesses das elites, possuem versões eletrônicas difundidas pela internet, o que torna anacrônicas as edições em papel. Já os jornais populares, destinados a audiências espalhadas pela periferia das cidades, carecem de ligação com os problemas imediatos da população e por isso enfrentam a concorrência crescente do rádio, que não apenas fala a linguagem das ruas, mas atende de forma imediata às aspirações comunitárias. No mundo, temos um mosaico polimorfo.


Foto: Reprodução

CONTINENTE Poderia citar um exemplo de como a internet teria ajudado a melhorar o jornalismo e um exemplo de como ela teria piorado o que se faz, atualmente, nesse campo?
JOSÉ MARQUES DE MELO O melhor exemplo parece ser o uso do hipertexto, que estimula a interpretação jornalística para atender às demandas dos leitores mais bem-educados. O pior exemplo é o da veiculação de mensagens típicas de propaganda, sob a forma de notícias. Trata-se daquelas matérias consideradas “híbridas” pelos blogs personalizados, omitindo fontes ou deixando de relatar os fatos segundo distintas versões de testemunhas oculares.

CONTINENTE Ao reler alguns artigos seus, escritos por volta de 1980, percebemos uma crítica contundente à programação de TV da época e à passividade do telespectador. Trinta anos depois, o que dizer do papel nocivo da televisão numa época de reality shows?
JOSÉ MARQUES DE MELO Os perigos continuam vigentes, especialmente naquelas famílias que deixam seus filhos à mercê das “babás eletrônicas” – TV, internet, video games e veículos similares de entretenimento. Mas, nesses 30 anos, algumas coisas mudaram. Primeiro, a escola, cujos agentes educativos são menos apocalípticos que no passado, e onde houve ampliação das oportunidades de matrícula. Programas de redistribuição de renda como o Bolsa Escola retiraram das ruas as crianças mais pobres, que sequer eram “educadas” pelas “babás eletrônicas” e cresciam sob a égide da “pedagogia” da marginalidade. Mudou também a qualidade e a variedade da programação da TV, incorporando novos formatos educativos, o que permite a pais e educadores orientar melhor o consumo videográfico dos filhos e alunos. Infelizmente, a mídia ainda está inundada pelo “lixo cultural”, principalmente nos programas “enlatados” made in USA.

CONTINENTE O senhor escreveu que considerava a TV um instrumento neutro e atribuía seus males ao governo militar. Mantém a opinião de que a TV como meio é neutra e pode ser usada para o bem e para o mal? Se acha, poderia nos dar exemplos de lugares onde ela exerce um papel preponderantemente positivo para a sociedade?
JOSÉ MARQUES DE MELO Continuo adotando postura não apocalíptica e defendendo a tese de que a mídia, isoladamente, não altera a vida social, sendo um dos fatores de mudança ou de preservação dos valores dominantes num determinado momento histórico. Ela pode retardar ou acelerar os processos de mudança política ou cultural, como bem ilustra o caso dos países soviéticos. Ali, o comunismo ruiu como um “castelo de cartas”, apesar de retardado pelo saneamento cognitivo mantido durante muito tempo pela “cortina de ferro”. A perestroika minou o processo pelas bordas e a glasnost o acelerou irremediavelmente, quando Gorbachev oficializou a política da “transparência informativa”.

CONTINENTE O senhor escreveu também sobre “o funcionamento avassalador dos mecanismos de reprodução ideológica inerentes à estrutura da comunicação de massa”. Nesta era de internet, por que tão poucos enxergam no mundo digital os mesmos mecanismos de reprodução ideológica? O que aconteceu com a crítica aos mass media? Concordaria que existe um deslumbramento em amplos setores da academia em relação às novidades tecnológicas que está anulando o poder de crítica?
JOSÉ MARQUES DE MELO Concordo que a “telemania” dos “anos de chumbo”, quando a sociedade teve que refugiar-se no “espaço doméstico”, temendo a vigilância brutal exercida pela ditadura militar sobre o “espaço público”, pode ser comparada hoje à “euforia digital”. Os setores “deslumbrados” da intelectualidade transitam pelas instâncias de poder da “democracia sindicalista” hegemônica, enquanto a “sociedade civil” desfruta oniricamente a estabilidade monetária do pós-real. Até quando? Essa é a resposta que a Academia vem sonegando olimpicamente.


Foto: Reprodução

CONTINENTE O senhor refletiu sobre o que chamou de “fascínio que jovens pesquisadores sentem pela moderna tecnologia da indústria cultural”. Podemos dizer que isso ocorre também em relação à internet?
JOSÉ MARQUES DE MELO É o mesmo fenômeno, em conjunturas diferentes. Recente pesquisa, patrocinada pelo Itaú Cultural, demonstra como o jornalismo digital (via internet ou plataformas portáteis) vem assumindo papel avassalador nas escolas de Jornalismo desta fase pós-diploma, aposentando precocemente categorias estratégicas, como o jornalismo radiofônico, pelo qual se informa a grande maioria da população. Ou o jornalismo impresso, ignorando o detalhe de que a maior parte da nossa sociedade ainda permanece à margem da galáxia de Gutenberg. Sem adquirir capacidade de abstração, carece daquele requisito que McLuhan já evidenciava como essencial para despertar a “consciência critica”.

CONTINENTE O senhor concorda com a opinião de que a crítica saiu de moda no meio intelectual brasileiro (incluindo o academico), se comparado com os anos 1970 e 80? Por quê?
JOSÉ MARQUES DE MELO Hoje, a comunidade acadêmica, sob a tutela dos ph.D.’s forâneos ou dos pós-docs aculturados, comporta-se de modo “politicamente correto”, sem querer “sujar as mãos”, como aliás o fizeram frankfurtianos de carteirinha, existencialistas pós-sartrianos ou culturalistas não gramscianos. Evitam imiscuir-se nas demandas coletivas, na ilusão de melhor interpretá-las pelas lentes da “epistemologia” legitimada por agências de fomento científico. Vítimas do produtivismo acadêmico, instaurado no modelo instituído pela chamada “ciência ocidental”, os scholars tupiniquins sucumbem aos encantos do Lattes e se deixam seduzir pelo feitiço do Qualis. Tudo o mais é considerado anacronismo, inclusive a crítica.

CONTINENTE Considerando que a indústria cultural se “bastardizou” durante os últimos 50 anos, apesar de toda a reflexão crítica feita pela Academia, o senhor diria que existe um componente de frustração da parte de um acadêmico que dedica a vida a analisar e criticar a realidade e não vê as coisas melhorarem?
JOSÉ MARQUES DE MELO Nunca fui panglossiano e tampouco sou derrotista. Não vejo a indústria cultural pelas lentes exclusivas do pessimismo. Assim sendo, vejo ganhos e perdas. Os ganhos estão na democratização de bens culturais do legado humanístico, antes mantido como privilégio das elites. As perdas devem ser debitadas na caolhice dos nossos governantes, que ainda não priorizaram a educação de base, perpetuando as deficiências cognitivas da maioria da população. Carente de conhecimento, ela continua a demandar produtos que podem ser classificados como “bastardos”. 

MARCELO ABREU,  jornalista e professor da Universidade Católica de Pernambuco.

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