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Jards Macalé: Um artista e a praga dos rótulos

De erudito a maldito, o compositor pode ser catalogado em vários gêneros, embora seu esforço seja o de escapar de definições que limitem seu trabalho

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Dezembro de 2011

Jards Macalé

Jards Macalé

Foto Ricardo Moura

"Macalé? Quem é Macalé? É um bicho?", dispara, autoirônico, um dos mais espirituosos compositores nacionais. Aos 68 anos, Jards Anet da Silva não resmunga quanto à falta de popularidade de seu trabalho, mas também não dispensa certo humor ácido ao falar desse assunto. Documentado no filme Um morcego na porta principal (2008), do diretor Marco Abujamra, ele estará no centro de outro produto audiovisual, desta vez dirigido por Eryk Rocha, filho do cinemanovista Glauber Rocha. Esse projeto será formado por cenas de uma apresentação inédita, entrevistas e alguns registros cotidianos. Desde a estreia do filme de 2008, o músico ressalta o valor dessas iniciativas, por lançarem luz sobre sua obra, ainda pouco conhecida.

Mas, verdade seja dita, a falta de popularidade de Macalé deve ser colocada entre aspas. No meio artístico, sempre esteve bem-cotado e em boa companhia: Hélio Oiticica, Grande Otelo, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Moreira da Silva, Luiz Melodia, Dori Caymmi, Maria Bethânia. Para citar apenas alguns dos companheiros de criação e de vida. Se estiver certo o ditado “Diz-me com quem andas e te direi quem és”, dessa amostra de parceiros, já se pode tirar algumas conclusões.

Os depoimentos dos colegas, no documentário de Abujamra, reforçam o quanto o cantor é querido e admirado. Zé Celso Martinez, por exemplo, declara que “Macalé é uma Maria Callas, um Oscar Niemeyer” e o cantor se deleita com esse carinho no ego, mas confessa ter desconfiado um pouco de ver todos os amigos falando bem dele. Sobre isso, o diretor do filme explica que até procurou alguém para criticá-lo, mas não encontrou ninguém. O músico não se convence e demonstra sua incredulidade quanto à tanta adoração: “Como é possível? Eu trabalhei justamente para ser esculhambado, eu mesmo fiz isso comigo o tempo inteiro e, agora, ninguém me esculhamba mais?”. Uma reação mais que esperada, já que sua trajetória está marcada por pequenos desentendimentos, consequentes de suas declarações. Macalé não poupa ninguém.

BRIGUENTO
O episódio mais famoso é, provavelmente, a discussão que teve com Caetano Veloso à época do lançamento do CD Transa, em 1972, no qual não constava o crédito dos arranjos de sua autoria nem o da participação dos músicos e técnicos de som. O deslize não passou despercebido por ele, para quem crédito é sagrado, já que é através dele que o trabalho do artista circula.


A carreira musical do artista tem sido marcada por uma postura libertária.
Foto: Reprodução 

Resultado: ficaram de mal por um longo tempo. Como não podia deixar de ser, o compositor se diverte ao recordar o acontecido: “Eu briguei com o Caetano porque ele é legal, adora uma provocação e briga de volta. Não vou discutir com quem não vai me responder, né? Fui brigar com um irmão que eu conhecia desde 1959 e sabia que ia me peitar, mesmo que não tivesse razão. Aí, comecei a falar um pouco mal dele, mas com amor, sem perder a ternura jamais. Até que ele foi ao jornal O Globo e declarou: ‘Macalé é um canalha’. Eu achei foi bom, porque já era maldito, era tudo e não era canalha ainda”.

Para completar, na edição deste ano do Cine PE, foram exibidos registros em super-8 feitos pelo carioca, na época da gravação de Transa, em Londres, cujos créditos são dados ao baiano – isso, quase 40 anos depois. “Pô, já transferiram meu arquivo pessoal para o Caetano? Agora que fiz as pazes com ele? Vou ter que brigar de novo!”

De perto, o seu falso mau humor não convence ninguém. Entre um cigarro e outro, totalmente à vontade em solo recifense – afinal, é filho de pernambucano, como gosta de lembrar –, o músico se afirma como um personagem cada vez mais leve e irreverente da música brasileira. É provável que a combinação entre tranquilidade e desajuste deva-se às quatro décadas de psicanálise com o doutor Ricardo Vaz, já informado sobre o processo jurídico que terá de enfrentar, caso cogite dar alta ao artista.

Talvez o divã, combinado à maturação pessoal promovida pelo tempo, tenha colaborado para que o erro do crédito de Transa ficasse no passado e os dois músicos passassem a trocar e-mails sobre o novo CD de Gal Costa, com um repertório de músicas inéditas, produzido por Caetano.


Transa foi responsável por uma discussão histórica entre Jards Macalé e Caetano Veloso. Imagem: Reprodução

A propósito, Macalé também teve um desentendimento histórico com a cantora. Tudo porque um jornalista pediu sua opinião sobre uma foto dela com o político Antônio Carlos Magalhães. Abordado no susto, e crítico à imagem, Macalé disparou: “Canta bem, mas é burrinha, né?”. A declaração virou a “frase da semana”, estendendo-se para os dias seguintes, porque polêmica é o prato preferido dos sensacionalistas.

É pertinente notar, no entanto, que as posturas e posicionamentos do cantor nunca seguiram a trilha das escolhas e bandeiras óbvias. Poucos sabem, por exemplo, que o artista manteve um longo relacionamento com a ministra da Cultura, Ana de Hollanda. A curiosa combinação entre uma controversa representante do ministério e o artista libertário parece paradoxal, mas, no campo do afeto, a militância raramente dita regras. Por opção, ele não se estende sobre esse assunto, o relacionamento do passado é um dos poucos temas que o deixa desconfortável. Ao mesmo tempo, dá pistas sobre a discordância com algumas posturas da ex-mulher. Principalmente, quando adianta que vai fazer o Macalé Commons e juntar todo o material artístico de sua carreira para disponibilizar na internet. “Ah, vamos acabar com essa veadagem de pagar conteúdo. Eu vou cobrar? Eu não tenho nada para cobrar.”

As fronteiras impostas pelo discurso político já eram subvertidas pelo músico, com humor e amor, desde o governo militar. Em plena ditadura, Macalé, que era anarquista convicto, apaixonou-se e casou com a filha do governador de Minas Gerais, e também presidente da Arena, Francelino Pereira. Os assessores de Francelino, que reclamavam “Governador, sua filha namorando com um comunista...”, equivocavam-se no alinhamento político. Os amigos de Jards, que xingavam “Pô, Macalé, casado com a filha da direita!”, equivocavam-se na revolta. Com o tom de praxe, o músico explica como aquilo era óbvio para ele: “A direita já tinha estragado tudo, eu tinha mais era que comer as filhas da direita mesmo!”. Ele brinca, mas depois recobra a ternura, ao falar de Maria Eugênia Pereira. E, embora trocasse poucas palavras com seu ex-sogro, reconhece que, dos 11 casamentos que teve, foi o único do qual não deveria ter saído.

BENDITO SEJA
Mas não foram os posicionamentos políticos que fizeram de Jards Macalé um maldito. Aliás, essa expressão, usada para designar artistas como Sérgio Sampaio, Jorge Mautner, Luiz Melodia e Itamar Assumpção, não passa de um rótulo controverso, criado pelos críticos musicais e pela indústria fonográfica, que, naquele momento, não compreendiam muito bem o som produzido por esses músicos. Era difícil assimilar a liberdade pela qual Jards e os outros enveredavam, algo que ele classifica como uma “liberdade interna, mais potente e perigosa que qualquer liberdade externa”.


Jards assinou a trilha sonora do filme O amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos. Foto: Reprodução

É óbvio que, olhando de fora, há certa mágica em ser maldito, afinal, Rimbaud e Baudelaire também o foram, como relembra o cantor, e esse é um grau de patente interessante. Na prática, a classificação segregava aqueles músicos cuja genialidade não era negada, mas na qual nenhuma gravadora estava disposta a investir. As sonoridades eram difíceis, as letras malucas; então, era melhor ignorar. Mesmo quando foi criado o selo Pirata, da extinta PolyGram, justamente para dar conta destes compositores, Macalé ficou de fora. “Eu já estava pronto pra entrar de pirata, o olho já estava tampado, e ninguém me chamou”, lembra.

Com o respaldo do tempo, os malditos tornaram-se ícones da música nacional, ainda que seus trabalhos circulem num público restrito. “Agora, maldito passou a ser escrito entre aspas e também já criaram ex-maldito”, brinca Macalé. O rótulo está sendo abandonado, mas o ideal de liberdade criativa persiste. Recebendo influências variadas desde o berço, pois o seu pai era fã de ópera e a sua mãe da Rádio Nacional, até hoje Macalé não faz distinção entre a música erudita e a popular: para ele só existe a música. “Não existem esses catálogos, as pessoas criam isso pra comercializar. Aqui é música popular – aí vende pra caramba. Aqui é música erudita – aí não vende nada. Hoje, tem catálogo de músicas que nunca vi igual: tecnopop, tecnobrega, sertanejo universitário... O que será isso? Eu tenho até medo de ouvir, porque vai que é uma bomba retardada terrorista.”

Considerando a formação rigorosa que teve – foi aluno de ninguém menos que Guerra-Peixe –, essa crítica à cultura musical massiva é inevitável. Apesar disso, ele acha importante conhecer ao máximo o que está sendo difundido como parte do seu ofício, e também entende que qualquer som pode ser usado a favor da estética: “Mesmo essa porcaria de trânsito horroroso, com suas buzinas, tem uma hora em que tudo é música”. Só alguém com essa percepção poderia ser o responsável pela trilha sonora de O amuleto de Ogum, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, no qual o barulho de um trem é o principal som da composição.

À parte os enveredamentos pelo território do audiovisual, os próximos projetos de Macalé são mesmo musicais. Ele conta que pretende compor pequenas peças inspiradas nas Gymnopédies, composições do francês Erik Satie. “Eu sou vidrado nas Gymnopédies, elas têm harmonias lindas, então resolvi fazer as Macalépédies, que são mais chegadas a esse negócio que vocês chamam de música popular.” Além disso, acaba de ser lançado, pela Biscoito Fino, o seu mais novo CD, Jards, e o DVD dirigido pelo Eryk Rocha deve ficar pronto no primeiro semestre de 2012. Quando questionado, se esses lançamentos representam um retorno aos seus grandes sucessos, Macalé é categórico: “Eu nunca fiz ‘grandes sucessos’. Quer dizer, eu fiz um big hit junto com o Waly Salomão, uma coisa maluca chamada Vapor barato, que nasceu e morreu várias vezes, e agora está nascida de novo, desde que O Rappa o gravou”.

A canção, que Waly considerava um “hino hippie pobretão”, tem, na voz de Gal Costa, uma das gravações mais conhecidas. Na versão da cantora, depois da famosa frase “eu não preciso de muito de dinheiro”, ela solta um “graças a Deus!”, que o público já incorporou como letra da música, mas que, na época, deixou Waly contrariado: “Mas, Gal, Deus não rima com dinheiro, Gal”. E não rima mesmo. Vapor barato, no entanto, nunca mais voltou a ser a mesma, como comenta Macalé: “Eu mesmo vou abaixando o volume, quando chega essa parte da música, e nunca falo esse trecho, mas aí o público sempre grita ‘Graças a Deus’. Deus e dinheiro são pessoas completamente diferentes, mas tudo bem”. 

GIANNI PAULA DE MELO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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