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Kiev: Em busca do tempo perdido

Entre monumentos e igrejas, e também lanchonetes norte-americanas, capital da Ucrânia guarda símbolos de um passado de utopias e lutas

TEXTO Thiago Soares

01 de Dezembro de 2011

Cúpulas de igrejas são belos destaques na paisagem local

Cúpulas de igrejas são belos destaques na paisagem local

Foto Reuters

Parece uma cena do filme Encontros e desencontros, dirigido por Sofia Coppola, cujo título original é Lost in translation (em tradução, no português do povo, “sem entender nada”): as portas automáticas de saída da sala de desembarque do Aeroporto Borispol, perto de Kiev, abrem e não entendo absolutamente nada daquilo que leio. Criança que ainda não sabe ler. Rapaz de 34 anos, analfabeto. Homens com papéis de receptivos escritos em alfabeto cirílico. Placas de publicidade em que a única coisa familiar, para mim, era aquele sorriso padronizado da modelo que vende um novo tipo de chocolate. Na nossa escolha cotidiana por destinos turísticos, somos acostumados a buscar comprovações. Lugares que conhecemos por foto, vídeo, filme. E vamos lá, quase numa busca por estar frente a frente com um simulacro, como a Torre Eiffel ou a estátua do Cristo Redentor. Na Ucrânia, não foi assim.

Fotos em baixa definição nos sites, poucas informações prévias, muitas recomendações nas redes sociais. Não coma cogumelos, o solo da Ucrânia ainda “guarda” radiação. Cuidado com os “batedores de carteira”, nos metrôs. Há muitas garrafas de vidro de cerveja e vodca nas praças, à noite, tropeçar numa delas é quase um “cartão” de boas-vindas. Cheguei à Ucrânia, país de nome “duro”, terra natal de Clarice Lispector, do desastre radioativo de Chernobyl e do alfabeto cirílico – esse conjunto de letras com formas mais geométricas que as nossas –, sem saber muito bem o que encontrar. Talvez, quisesse mais me perder do que achar algo. Sensação de ir ao cinema ver um filme sem ter lido a sinopse. Comprar o livro só pela capa.


Cores da Catedral de São Vladimir são as mesmas da bandeira do país.
Foto: Reuters

Cheguei. Até saber como sair do aeroporto de ônibus, que fica em Borispol, cidade vizinha a Kiev, levei algo em torno de uma hora. Placas em cirílico. Inglês? Não falam. Serve russo? No centro de informações turísticas, uma senhora mais “entendia” que falava inglês. Resolveu. Ela me encaminhou para um local em que poderia pegar um ônibus até o centro de Kiev. Um jovem de uns 17 anos, notando a incapacidade de comunicação entre nós, apareceu para mediar. Explicou que o ônibus me deixaria perto da Ploshcha Peremohy (uma praça) e que, lá, eu acharia uma estação de metrô. Seria a forma mais fácil de chegar ao endereço do meu albergue. Num aeroporto em que funcionários só falam ucraniano e russo, surpreendia um jovem de 17 anos articular tão bem a língua inglesa. “Onde você aprendeu a falar assim?”, perguntei. “Na internet.”


Na capital da Ucrânia, estão as estações mais profundas do mundo. Foto: Divulgação

Da janela do ônibus, imensos conjuntos habitacionais. Entre Borispol e Kiev, uma rodovia. É julho, verão, temperatura quente, clima seco. Os subúrbios da capital da Ucrânia são de prédios altos, tintura desgastada, varais a ermo. Quando nos aproximamos de um núcleo urbano mais adensado, surge aquela que seria, para mim, a imagem mais marcante de Kiev: sob o sol brilhante, ao longe, avista-se o dourado cintilante das cúpulas das igrejas ortodoxas da cidade. Uma, duas, muitas.

A distância, essas cúpulas disputam espaço com edificações mais modernas. Poucos segundos depois, e elas ficam para trás na velocidade do ônibus. Chego à estação de metrô e, aqui, meu primeiro alumbramento com a grandiosidade que irrompe do cotidiano. Descemos um lance de escada rolante. Depois outro; outro e mais outro, e mal vemos o fim. Sim, lembro de ter lido: é em Kiev que estão as estações de metrô mais profundas do mundo, como a mais “funda” de todas, Arsenal’na, com 107 metros. A estação Universytet tem a maior escada rolante em estações de metrô no mundo, com 87 metros. Observo lustres, paredes em mármore, bustos. As formas do comunismo soam de um glamour vintage.


Com placas em alfabeto cirílico, cidade dificulta o turismo. Foto: Thiago Soares

Na estação Ploshcha Kontraktova, uso o recurso de contar: são seis estações a partir desta em que estou. Ao descer do metrô, a subida. Mais lances de escada rolante e, já na superfície, caminho pelas ruas de Kiev até chegar a meu albergue, que fica na rua Yaroslavska, no bairro Podol. O meu olhar “primitivo”, de quem não sabe sequer ler, identifica: vejo muitas placas indicativas, letreiros de farmácias, plaquetas com nomes de praças e ruas; todos pichados. Sim, palavras pichadas. Acima dessas, outras palavras. Fico curioso. No albergue, alguém me explica: como ex-república soviética, a Ucrânia tinha que “obedecer” a diretrizes da Rússia e todas as placas oficiais da cidade eram escritas em russo. Só que, lá, se fala ucraniano – que é parecido com o russo, mas bem distante dele política e ideologicamente. Grupos separatistas, rebeldes, reescreviam as placas “russas” com pichações em ucraniano. Muitas placas, nas cidades locais, foram substituídas por novas, na língua pátria, depois da “quebra” da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Mas, o Podol, bairro que eu estava hospedado, em Kiev, era longe do centro, fora das áreas turísticas e ali ainda existiam muitas placas pichadas. Pensei nas pichações como cicatrizes à mostra de um passado rebelde.


Sopa de beterraba com carne de porco, Borsch é um típico prato local. Foto: Thiago Soares

OBELISCO AO CONSUMO
Peguei o metrô para a estação Maydan Nezalezhnosti, que me daria acesso à avenida Khreschatyk, uma espécie de “avenida Paulista” de Kiev. Centro financeiro, de lazer e entretenimento, é onde as pessoas caminham, sentam nas praças, bebem e, sim, deixam garrafas de cerveja a ermo. Ali está a Praça da Independência, com toda aquela imponência das edificações públicas e um enorme vão, berço dos apoiadores de Yuschenko na Revolução Laranja, em outubro de 2004 – que levou a Ucrânia à independência. Imerso no passado, li num guia de viagens que a Khreschatyk tinha sido bombardeada, na Segunda Guerra Mundial, e depois reerguida, imponente e sóbria. Em seguida, deparo-me com o enorme “M” amarelo da McDonald’s. Assim como ergueu uma enorme loja na Praça Vermelha, em Moscou (Rússia), a cadeia de fast food, símbolo do capitalismo, ocupa um prédio de quatro andares na Praça da Independência de Kiev. Olhando de alguns ângulos, é possível que o “M” do McDonald’s se “encaixe” ao topo do obelisco, símbolo da independência do país, logo na frente. Nada parece mais simbólico.

Caminhando, vejo mais contradições: a poucos passos da Praça Lva Tolstogo, outro dos ambientes destruídos durante os bombardeios da Segunda Guerra, está o shopping Metrograd, cheio de lojas de grifes e o Taras Shevchenko Boulevard, igualmente imponente e chique. Kiev vai se revelando esse lugar em que heróis revolucionários emprestam nomes para locais hoje ocupados por ícones do consumo. Talvez, mostrando que o mundo é muito mais complexo do que o ideário marxista nos fez supor. Difícil entender que ele não é a utopia imaginada.


Local de encontro de apoiadores da Revolução Laranja, que levou a Ucrânia à independência. Foto: Divulgação

No bairro Podol, em que estou hospedado, caminho pela Andrivskyj Uzviz, na qual há mercados públicos repletos de produtos naturais, flores, frutas; em que camelôs vendem bonecas babushka. Apesar da moeda local, a hryvnia (lê-se “grivnia”), ser relativamente desvalorizada em relação ao euro, as coisas não são assim tão baratas... Pelo contrário. Foi em busca de objetos mais em conta – e tentando provar comidas típicas da Ucrânia – que achei, por indicação de um colega de albergue, o restaurante Puzata Khata (nas imediações da Ploshcha Kontraktova). Nesse espécie de self service, provei borsch, a sopa de beterraba com porco, e também as inúmeras variações de recheios do varéneke, um tipo de pastel cozido que, em geral, se come com algum molho de cogumelos. Aliás, aqui a iguaria é um item culinário constante. Lembro ter achado estranho comer cogumelo defumado como se fosse presunto, no pão, do café-da-manhã.

ARQUITETURA DA PRECE
À noite, de volta ao albergue, depois de mais um dia caminhando pela cidade, uma vontade estranha: a de rezar. A beleza das igrejas de Kiev é tamanha, que somos impelidos a agradecer. São muitas. Numa primeira, a Catedral de São Vladimir, na Vladimirskaya Gorka, cúpulas douradas contrastam com o azul e branco da pintura externa. E visualizo as cores da bandeira da Ucrânia – azul e amarelo – em inúmeras edificações. Na Catedral de Santa Sofia, a poucos metros, a pé, da de São Vladmir, ao invés do azul em combinação com a cúpula dourada, tem-se o verde. Kiev está à beira do rio Dnipro, tem vários montes, elevações. É dessa geografia que emerge uma premissa que imperadores do passado levaram à risca: estamos numa cidade em que serão criados ambientes bonitos para se rezar.


Estátua da Grande Mãe Rússia no Memorial da Segunda Guerra. Foto: Thiago Soares

Talvez o mais belo desses ambientes seja o Monastério Lavras (Kievo-Pecheskaya), que conta com uma área em que se pode observar múmias de antigos imperadores ou chefes religiosos. Seria, ali, um belo local para se morrer. De alguma forma, o assunto “morte” começa a aparecer com mais frequência nas andanças por Kiev. Chego ao local de visita da Estátua Mãe, uma espécie de “Cristo Redentor” local, no topo de uma montanha e “guardando” a capital da Ucrânia, do alto. Fico sabendo, em seguida, que essa Estátua Mãe, na verdade, é a Rússia, metáfora de dominação sobre a então “república rebelde” ucraniana. Bem ao lado da estátua, está o Museu da Grande Guerra Patriótica, com mausoléus de heróis e homens que morreram pela pátria.


A McDonald's ocupa um prédio de quatro andares na Praça da Independência de Kiev.
Foto: Other Images

Sinto uma beleza enorme em ver que a rebeldia ainda é capaz de legar emancipações, vitórias. Mas não consigo parar de imaginar as inúmeras vidas perdidas. Mão e contramão. Vias de mãos duplas. Kiev me fez ver como é bela a utopia e como são duras as formas de tentar chegar a ela. Bustos de líderes comunistas ao lado da McDonald’s. Estátua simbolizando a Rússia sobre catacumbas de ex-soldados ucranianos. O reluzir da cúpula da igreja e o brilho do novíssimo modelo de carro BMW. Deixei Kiev, acreditando que ali é mesmo um belo lugar para se rezar. 

THIAGO SOARES, jornalista, professor universitário e doutor em Comunicação pela UFBA.

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