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Vedetes e polêmicas

Novos verbetes surgem na dança contemporânea, enquanto a questão da autoria é posta em discussão

TEXTO Christianne Galdino

01 de Dezembro de 2011

A bailarina Helijane Rocha contou com Mônica Lira como dramaturga para compor o solo 'Ela sobre o silêncio'

A bailarina Helijane Rocha contou com Mônica Lira como dramaturga para compor o solo 'Ela sobre o silêncio'

Foto Camila Sérgio/Divulgação

O solo do outro – título do projeto de residência criativa em dança do Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolo-Hermilo, que, em 2011, chega à sua 10ª edição – traz duas palavras-vedetes que puxam um bailado de reflexões acerca das mais recentes novidades do vocabulário da linguagem do movimento. Em primeiro lugar, revelando uma possível contingência que virou opção: o solo, deixando claro que o foco das produções atuais de dança contemporânea são os trabalhos individuais. Levados pelas dificuldades de produção e circulação das obras ou por desejos de subjetividade, os criadores têm escolhido trabalhar sozinhos, ou, como prefiro dizer, estar em cena sozinhos. Porque, fora da cena, ou antes de chegar a ela, no processo de criação, muitos outros estão presentes. É aí que entra nossa segunda palavra-vedete: o outro.

Durante muito tempo, foi fácil identificar esse “outro” que entrava na dança sem dançar, talvez por um sistema hierárquico que foi sendo transferido de uma técnica a outra, passando naturalmente do balé clássico à dança moderna e contemporânea. Nesse modelo, todas as atenções estavam voltadas ao coreógrafo que, segundo definição das enciclopédias e dicionários, era o único responsável pelo “ato de compor bailados e os transcrever”. Era dele, e somente dele, a autoria da criação. Se considerarmos a tradução literal da palavra coreografia (escrita de dança), podemos afirmar que, nessa lógica hierárquica herdada também do próprio sistema educacional do Brasil, o coreógrafo escrevia sozinho, ainda que estivesse utilizando para isso os gestos e movimentos de outros.

“Era como se o bailarino fosse um objeto, um mero executor que aprendia por imitação, sem direito a inserir nem um traço a mais naquela escrita”conta o coreógrafo Ivaldo Mendonça, deixando claro que enxerga valor também nessa metodologia e que, em certos casos, ela ainda é a solução mais acertada, em se tratando de bailarinos em formação. Ivaldo prefere trabalhar de forma colaborativa, contando com a participação do que se convencionou chamar bailarinos-criadores. Mas, se os bailarinos nessa nova conjuntura também escrevem a dança, como é que fica a questão da autoria?


Em Sobre mosaicos azuis, Januária Finizola estabeleceu uma relação criativa com os autores da trilha sonora. Foto: Silvio Barreto/Divulgação 

Essa é uma polêmica discussão porque nem todos os coreógrafos conseguem realizar bem a transição para a forma partilhada de criação. Muitos transferem aos intérpretes a responsabilidade total da composição e, às vezes, até da concepção, como se entendessem que, agora, ser coreógrafo é apenas ser o dono da ideia inicial de um espetáculo. “Eu sou contra a banalização dessa forma de democratizar a criação que, na minha opinião, tem gerado muitas distorções. Acredito que, para trabalhar assim, o coreógrafo tem que oferecer um material como ponto de partida, células, frases de movimento e, principalmente, deixar claro conceitos e princípios que sustentam sua pesquisa de vocabulário de movimento”, complementa o coreógrafo.

INTERPRETAÇÃO CRIADORA
Com formação clássica e atuando também nas composições contemporâneas de dança, a bailarina Juliana Siqueira diz gostar mais de assumir a função de intérprete ou intérprete-criadora, pois considera que o trabalho do coreógrafo transcende o ato de criar movimentos e, para isso, ela não se acha pronta ainda, pelo menos, não no universo da dança contemporânea. “O intérprete-criador participa da pesquisa de movimento, elaborando algumas sequências, mas o trabalho do coreógrafo vai além. Cabe a ele selecionar material, estabelecer relações entre os intérpretes, a dança e os outros elementos, como a música, a cenografia, por exemplo. Dominar e saber transmitir o conceito da obra também é imprescindível”enumera a bailarina. Juliana acredita que os dois significados para a palavra coreógrafo ou as duas formas de trabalhar com criação em dança contemporânea são válidas e vão coexistir.

Com 22 anos e um invejável currículo artístico, o bailarino Jefferson Figueiredo estreia como coreógrafo, montando e interpretando o espetáculo A face da falta, em O solo do outro. “O desafio foi surpreendente. Não pensava que tinha que dar conta de tantas coisas, além da criação do movimento em si”, admite. Criar composições a partir dos princípios coreográficos e do vocabulário artístico de Ivaldo Mendonça foi a proposta para os solos deste ano, contando com a direção artística do idealizador do projeto, Arnaldo Siqueira, e do próprio Ivaldo, que também atuou como orientador coreográfico – mais um verbete do novo vocabulário da dança contemporânea.

Partir do outro para compor algo autoral pode ser um caminho fácil ou difícil. Para não cair na armadilha da cópia, Jefferson buscou apoio nas suas memórias e na sua já tão rica trajetória profissional. Fotos e vídeos da infância e adolescência nos palcos e na vida são trazidos para a cena e para o movimento do intérprete, inserindo traços sutis da sua escrita no denso e fluido vocabulário de Ivaldo. Nesse processo criativo, ele contou com a ajuda da bailarina Marina Souza que escreveu um texto para organizar as ideias e dar uma forma mais definida à concepção do amigo.


Em A face da falta, Jefferson Figueiredo buscou referências na sua história para atuar pela primeira vez como coreógrafo. Foto: Reprodução.

Esse olhar de fora, que já ganhou vários nomes anteriormente, está aparecendo agora como dramaturgo nas fichas técnicas das obras. Diferente de um diretor, essa pessoa não tem poder de decisão sobre a criação, o seu papel é “colocar em crise”, fazer uma crítica durante o processo e ajudar o coreógrafo a tomar decisões mais adequadas e eficazes ao que ele pretende comunicar. Nesse sentido, podemos dizer que o dramaturgo faz o papel de espelho, ou de consciência auxiliar, se preferir. Para os solistas – principalmente os intérpretes-criadores –, o outro que assume essa função tem sido uma grande ajuda. Talvez essa necessidade de outros olhares fique mais gritante em uma carreira solo. Por isso, tantas funções surgiram no vocabulário da dança, nessa fase em que os trabalhos individuais estão se tornando maioria.

A bailarina Helijane Rocha, que faz parte do elenco do Grupo Experimental, e agora apresenta sua primeira criação, Ela sobre o silêncio, também entendeu que, para contar suas histórias em um solo, não podia estar sozinha. E isso tornou o processo mais prazeroso e produtivo. Mônica Lira, diretora e coreógrafa do grupo, assumiu então, a função de dramaturga e a atriz Ceronha Pontas teve uma participação significativa como colaboradora artística, outro título novo que figura nas produções em dança.

Mário Nascimento, Henrique Lima, Marcelo Pereira, Mônica Lira, Ivaldo Mendonça e Heloísa Duque figuram na lista de coreógrafos com quem a bailarina Januária Finizola já trabalhou. Esse mosaico de informações corporais ajudou na escrita do seu primeiro trabalho autoral. Sozinha em cena, pela primeira vez, mas cercada por muitos outros, ela montou Sobre mosaicos azuis, baseado na obra do escritor Rodrigo de Souza Leão. “Mesmo criando em paralelo, a sinergia com Marcelo foi perfeita, parecia que ele tinha visto toda a movimentação para criar a trilha”, conta Januária, sobre sua relação criativa com Marcelo Sena que, junto com Caio Lima e Hugo Medeiros, compôs a trilha sonora original.

A conversa sobre autoria e os novos significados da função de coreógrafo levam a crer que houve um deslocamento, sim. E, agora, quem está no centro das atenções não é mais aquele que escreve previamente a cena, mas o que dá vida às palavras-movimento, o que faz a leitura pública, ou seja: o intérprete. Mas o fato de o bailarino assumir o papel principal não elimina a função do coreógrafo, apenas lhe dá outros contornos. E, além disso, evidencia a participação dos coadjuvantes no processo criativo. Não é só uma inversão de papéis, é uma reconfiguração. Mudou também o modo de criar, cada vez mais coletivo e integrado, cada vez mais feito de “outros”. 

CHRISTIANNE GALDINO, jornalista, professora e mestre em Comunicação Rural.

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