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'Elucidário': Para profissionais do ramo e curiosos

Publicação de Fernando Cerqueira Lemos explica, em seus quase 400 verbetes, um espectro vasto de temas e objetos culturais

TEXTO Artur A. de Ataíde

01 de Janeiro de 2012

entre os verbetes, vários referem-se a utilitários e decorativos produzidos com este material

entre os verbetes, vários referem-se a utilitários e decorativos produzidos com este material

Foto Reprodução

Às vezes, dizemos, daqueles que sabem demais sobre tudo: “Fulano? Fulano é um leitor de dicionários”. A frase esconde um juízo ambíguo, tanto sobre Fulano quanto sobre os dicionários. Parece falar de alguém que se dedica, provavelmente com muito tempo a perder, à estéril tarefa de memorizar, como um robô que nada discerne, alheado das premências do mundo e da vida, um catálogo de coisas desarticuladas, relacionadas uma à outra senão pela ordem alfabética. É como aquela personagem de Sartre que planejava tornar-se inteligente lendo de A a Z, sem distinções, toda a biblioteca de sua cidade. Não é exatamente admiração o que nos inspira.

Completamente outro, no entanto, é o papel de “leitor de dicionários” que o Pequeno elucidário (Cepe Editora), do crítico de arte Fernando Cerqueira Lemos, nos convida já de início a desempenhar, capturando-nos com um subtítulo irresistível: “Útil para leiloeiros, marchands, decoradores, colecionadores, arquitetos, estudantes, antiquários e você... que não é nada disso, mas é um curioso”. E o sequestro dos curiosos, de fato, não fica apenas na promessa da capa: seus quase 400 verbetes, complementados por 82 apêndices, cobrem um espectro bem variado – e curioso – de assuntos. Deve estar pronto o leitor para passar do processo de oxidação do estanho, e de como recuperar as peças por ele acometidas, para a história do expressionismo paulista, sem deixar de aprender algo, claro, sobre a função das falsas portas nos mastabas do Antigo Egito, sobre as várias teorias acerca do surgimento do milho, sobre a técnica da cera perdida ou sobre as provas irrefutáveis em favor de Santos Dumont, e contra os irmãos Wright, na polêmica sobre a invenção do avião.


Metal, madeira, tecidos. Arte e artesanato. Técnica e criação. religiosidade e
laicismo perpassam os temas do
Pequeno Elucidário. Foto: Reprodução

Mas, além de encontrar respostas para perguntas como o que é o niello, o que é sheffield plate ou quem foi Antoine Daum, o leitor poderá se inteirar, eventualmente, de verdadeiras histórias de detetive. Há, por exemplo, o caso das três peças de majólica italiana que integram o acervo do Paço da Vila Viçosa e do Museu de Arte Antiga, ambos em Lisboa, e que exibem a marca peculiar de uma asa negra. O desenho não consta dos catálogos dos maiores especialistas do mundo no assunto, que aparentemente nunca a teriam visto, mas pode ter sido aplicado pelo conhecido ceramista italiano Orazio Fontana, ainda no século 16, na cidade de Urbino, condição que talvez compartilhe, aliás, com outra marca de forma semelhante, reproduzida no alto e à direita da página 188 de certo catálogo francês.

Talvez menos borgiano, mas também interessante, é o caso da tambuladeira, misterioso utensílio de prata listado em mais de uma centena de inventários do tempo dos nossos bandeirantes, mas de forma e função ainda não determinadas de modo conclusivo. A coincidência de algumas de suas descrições com a de certa peça seiscentista, encontrável à página 147 de um livro sobre a ourivesaria portuguesa, faz pensar se não corresponderiam à menos misteriosa tembladeira, cujo nome, acrescente-se, faria referência à sensação tátil de quem nela transporte o vinho ou a sopa: a vibração dos líquidos seria facilmente transmitida às mãos pela fina folha de metal com que era fabricada.

SEGREDO CAULIM
E que dirá da matéria branca lustrosa, não fundível, que só chegou à Europa com as Grandes Navegações do século 16, embora já mencionada por Marco Polo no século 13? Fabricada na China pelo menos desde o século 7, a porcelana só teve seu segredo milenar descoberto – um segredo chamado caulim –, em âmbito europeu, no século 18, por obra do incansável alquimista alemão Johann Friedrich Böttger. Antes disso, alguns acreditavam que punhados de certa substância arenosa, moldados em formas de metal, queimavam por 15 dias num forno à lenha, no qual, em seguida, esfriavam por mais 20 dias, até serem dali retirados por um ministro especial do imperador chinês, que examinava peça por peça dando o seu aval, e garantindo ao Império seu quinhão.


Trabalho de Fernando Cerqueira Lemos reflete sua experiência como jornalista,
crítico de arte e
marchand. Foto: Ricardo Melo/Divulgação

À parte o estímulo à curiosidade implicado em semelhantes exemplos, outra diferença fundamental afasta o Pequeno elucidário de um catálogo desinteressante e aleatório de coisas. Trata-se da clave em que todo esse conhecimento é partilhado, que se deixa tingir sem cerimônias pela fonte nada impessoal de onde provém. Resultado de um trabalho de décadas, dividido entre a pesquisa nos livros e o contato efetivo com esses tantos objetos e técnicas num escritório de arte, traço que reflete a condição múltipla do autor, de jornalista, crítico de arte e marchand, o texto dos verbetes se divide entre a informação especializada, a experiência prática individual e a pessoalidade da conversa, com seus parênteses e ponderações circunstanciais. Há lugar mesmo para a eventual suspensão cética dos juízos últimos, casos em que ao leitor é facultado tomar lugar no debate. Esse espírito, que anima os melhores momentos do volume, parece uma transposição, para os tempos atuais, do ar de pesquisa empírica e pessoal sempre em aberto, nunca conclusa, que reconhecemos nos antigos vocabulários da língua, a exemplo do de Rafael Bluteau, de 1712, e do Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente foram usados e que hoje regularmente são ignorados, de Santa Rosa de Viterbo, de 1798, ambos frequentemente lembrados pelo autor. O tom do pequeno prólogo, “À guisa de explicação”, e a escolha de Montaigne para uma das epígrafes do livro talvez apenas reforcem essa impressão.

Esteja pronto quem lê, portanto, para entender de que modo o azul dos quadros pintados com a azurita transforma-se em verde com o passar dos anos, ou para saber algo sobre as expedições enviadas por D. João II em busca das terras lendárias do Preste João. Se é verdade que pode se tratar de um mero livro de referência, como se vê, é também verdade que não deixa de ser, o Pequeno elucidário, um bocadinho a mais que isso. 

ARTUR A. DE ATAÍDE, mestre em Teoria Literária e revisor.

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