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Padaria: Do hábito atávico de comer o pão

Alguns estabelecimentos mantêm o tradicional estilo de loja de bairro, atraindo amantes do saboroso alimento

TEXTO Eduardo Sena

01 de Janeiro de 2012

O cheiro do francês saído do forno, quentinho, faz parte da memória olfativa nacional

O cheiro do francês saído do forno, quentinho, faz parte da memória olfativa nacional

Foto Sérgio Lôbo

Há coisas que só os hábitos muito íntimos, artérias de um DNA cultural, podem explicar. O acordar e ir à padaria para saborear o pão ainda quentinho, fruto da primeira fornada da manhã, certamente, está entre eles. É lá que o dia começa de verdade, na passarela em que o bairro desfila e acontece, local em que as primeiras notícias do dia são comentadas – sejam as dos jornais ou da vida alheia. Para muitos, é também a extensão da cozinha de casa, referência para a primeira refeição do dia de todas as subsequentes. A “Meca” dos amantes dos carboidratos, frituras e afins está lá, sobre o balcão em fórmica, através da vitrine que blinda o tangível. No ar, o aroma permanente do café coado misturado ao do pão na chapa, e, principalmente, com o funcionário solícito de caneta apoiada atrás da orelha, de onde só sai para fazer as contas.

Funcionando há 54 anos em Jardim São Paulo, bairro da periferia recifense, a Padaria La Roque é a corporificação de todos os significados, tangíveis e intangíveis, que a palavra padaria pode carregar. Fundada em 1957, pelo padeiro Armando Pedrosa, o estabelecimento é referência de primeira ordem naquelas plagas e adjacências, quando o assunto é panificação. Pudera. O negócio cresceu junto com o bairro, que, nos idos de sua fundação, era limitado a apenas uma avenida principal. Atualmente, se ele contempla uma população estimada em 30 mil habitantes (segundo o último senso do IBGE), sua principal padaria segue o mesmo crescimento.

Para se ter uma ideia, uma média de 1,5 mil pessoas passa pelo local diariamente. O foco principal é o infalível pão francês, que é como deve ser: macio por dentro, crocante por fora e com pestana (nome técnico para a abertura na parte de cima). Em média, 280kg do alimento são vendidos diariamente, algo em torno de 7 mil unidades, índice que aumenta nos fins de semana, números superlativos em relação a muitos estabelecimentos do segmento. Ainda no rol dos pães, a casa oferece os clássicos baguete, sedinha, bolachão, doce, crioulo, e os sofisticados brioches, roscas e foccacias de recheios que passeiam entre o de charque com queijo coalho e frango com catupiry.


Padeiro dá os toques finais na sobremesa de massa folhada. Foto: Ricardo Moura

Mas não são apenas os pães os astros da La Roque. Todas as minúcias gastronômicas “tem-que-ter” de padarias estão lá: tortas, bolachas, sonhos, coxinhas, pastéis de festa, salgadinhos de queijo, sanduíches, extensa linha de confeitaria e frios. Ao todo, o empreendimento tem cerca de 500 itens de fabricação própria, e ainda oferece banquete para as três refeições, todas no estilo self-service, a preço justo e com farta variedade. “Sempre tivemos uma lanchonete dentro da padaria, que contava apenas com 16 lugares. Atento às mudanças comportamentais dos clientes que nos procuravam, cada vez mais, para fazer suas refeições, investi internamente no segmento de cozinha. Hoje, nosso salão para refeições conta com 70 lugares e, se antes oferecíamos apenas lanches rápidos, agora, contamos com bufê variado para as três refeições”, orgulha-se Luciano Pedrosa, proprietário da La Roque.

Ainda segundo ele, esse é um caminho natural que as padarias estão tomando. “Os serviços de bufê nas padarias é uma demanda que é fruto de uma tendência, sociológica até, da contemporaneidade. Em detrimento do pouco tempo que têm, as pessoas abrem mão de realizar as refeições em casa, e passam a fazê-las na rua. É mais cômodo e rápido”, diagnostica Luciano, que também é presidente da Associação dos Industriais de Panificação do Estado de Pernambuco. Esforços para garantir a qualidade do serviço plural e versátil da casa são feitos. A La Roque conta, hoje, com nada menos que 100 funcionários fixos e, entre eles, manobristas para dar conta do intenso fluxo de estacionamento no local.


Entre os itens indispensáveis nas vitrines das melhores casas do ramo, estão os pães doces e recheados, empadas, coxinhas e biscoitos tipo tareco. Fotos: Sérgio Lôbo

E é nessa reinvenção que as padarias apostam, numa busca constante por novas especialidades, além do pão, que agreguem valor à casa.

Com 25 anos de idade, no Bairro da Iputinga, zona norte da cidade, é a Padaria Massa Pura que faz bom uso desse novo conceito. Além de oferecer um exemplar sistema self-service de pães, em uma sala fechada, com mais de 70 tipos do carboidrato, a padaria encontrou na pizza um motivo a mais para fidelizar o cliente. As redondas são produzidas em forno especial, e saem em 19 sabores. O sucesso é tanto, que, pelo menos, 800 delas são vendidas mensalmente. O segredo, segundo o proprietário Murilo Cavalcanti, é a massa do tipo italiano e o molho de tomate pelado. Além do pão e da pizza, outro ponto forte da Massa Pura são as emblemáticas bolachas caseiras. Elas ganham as prateleiras do estabelecimento nos tipos praieira, suíça, soda, sete capas e doce. “Juntamente às pizzas, as bolachas são motivos de desvios de rota. Tem gente da zona sul da cidade que passa aqui só para comprá-las”, garante Murilo.

O “CROC” DA TORRADA
A verdade é que cada padaria tem uma especialidade para chamar de sua. Com mais de 100 anos e recentemente reformada, a Padaria Santa Cruz, no Bairro da Boa Vista, centro da cidade, é exemplo mais que ideal para a máxima. Desde o fim da década de 1950, sob a direção da família Amorim, a casa produz cerca de 120 itens, sendo que 20 deles são receitas clássicas portuguesas trazidas pelos proprietários da terra dos Afonsinhos. Não são poucos os que vêm de longe para buscar as suas especialidades, e é difícil escolhê-las, árdua missão designada ao afável gerente da casa, Galdêncio Aguiar: “as torradas, o pão de ló e os pastéis de festa”, elenca, com ares de reticência.

Douradas, devido à generosa camada de manteiga que recebem, as torradas são artigos que não podem faltar nas prateleiras. Cortadas finamente, crocantes aos olhos – e mais ainda aos dentes –, elas fazem gente de todo o canto da cidade pegar a contramão da rota trabalho-residência para ir ao Centro em busca das amanteigadas. Diferentemente de outras padarias, em que as torradas são frutos da sobra do pão, na Padaria Santa Cruz, um pão do tipo baguete é feito especialmente para ter como destino final o petisco. Depois de assado, espera o período de quatro dias para ser delicadamente fatiado.


O sonho, um dos itens de confeitaria, não foi nomeado por acaso. Foto: Ricardo Moura

Na vitrine, o que também chama a atenção são os pastéis de festa. Tradicionalmente feito de carne moída, temperado de maneira bem particular, o petisco ganha aqui sua versão com frango – não menos irresistível. Depois de frito em imersão, recebe polvilhadas de açúcar refinado. Robusto, demasiadamente fofo e envolto em papelão, o pão de ló é outra estrela da casa. A massa, de receita portuguesa, é à base de ovos, trigo e açúcar. A tradição pede que se coma com as mãos, aos bocados, de preferência com um vinho do Porto. E é melhor assim mesmo, tentar cortá-lo à faca é tarefa difícil de ser executada. Ele se desmancha, simplesmente.

BROA DA BOA
Igualmente de ascendência lusitana, e que, de tão boa, foi tropicalizada rapidamente por aqui, a broa também se constitui iguaria clássica das casas de panificação. Quem passa pela bucólica Rua da Moeda, no Bairro do Recife, e vê a Padaria BrötFabrik, nem imagina que ali está um dos símbolos materiais – em tijolo, concreto e farinha de trigo – de protesto contra o pão recifense da década de 1990. O “delator” é o alemão Timm Mendes, que chegou ao Recife nos idos de 1998 para um intercâmbio estudantil da faculdade de administração de sua terra natal.


O preparo da Brötfabrik resulta de ótima qualidade. Foto: Ricardo Moura

Ao chegar por aqui, “estranhou” o pão local. “Era medíocre”, desabafa Timm. A insatisfação era tão grande, que, mesmo sem ter qualquer experiência no ramo, decidiu, em 1999, abrir a BrötFabrik (Fábrica de Pão, em alemão), como projeto de estágio no curso de Administração, para mostrar o que seria um pão digno. “Fazer pão não tem grandes mistérios. Basta usar ingredientes de boa qualidade. Por exemplo, minha farinha de trigo é importada, a água que eu uso é mineral”, defende.

Mas o que as broas tem a ver com isso? É que, na casa, elas não param nas prateleiras. Seja de farinha de milho ou de trigo, os pequenos bolinhos de fabricação própria são verdadeiros deleites alimentares para os clientes. “Gastronomicamente falando, acredito que esse reencontro com o passado, o que se chama de cozinha afetiva, é uma tendência forte. Até tenho sanduíches mais elaborados, mas são as coisas mais simples que despertam mais interesse”, argumenta. Os números corroboram a ideia. Além do pão e da broa, figuram entre os itens mais vendidos do local o icônico bolo de bacia, o misto-quente, e, para bebericar, café com leite.

Essas preferências constam de uma espécie de cartilha sociocultural do pernambucano, o que os sociólogos chamam de modus vivendi, em que determinados tipos de gostos e gestos são tão comuns, aos olhos tupiniquins, que parecem ser executados desde sempre. Ir à padaria, ao mercado, e estender a mão para pedir uma prova do queijo coalho é uma delas. Ali, é visto se o queijo está com o sal no ponto, borrachudo ou não, velho ou novo. Critérios muitas vezes pessoais, que estão além do mais sábio entendedor de queijos.


O pastel de Belém é herança da doçaria portuguesa. Foto: Ricardo Moura

Sob o epíteto da padaria que tem o “melhor queijo de coalho do Brasil”, alcunha concedida por ninguém menos que César Santos, chef do premiado Oficina do Sabor, a Caramelada, em Bairro Novo, Olinda, mal sabe o que é isso. Há 19 anos trabalhando com o queijo do mesmo fornecedor, que sempre despacha o produto com qualidade mais do que regular, a casa tem com seu cliente uma íntima relação de confiança que poucos atingem. O laticínio, oriundo de São Bento do Una, município do agreste pernambucano, está lá sempre fresco.

“O produto chega duas vezes por semana e não para nas cubas. Por mês, chegam a ser vendidas quatro toneladas – que perfazem inclusive, toda a produção do meu fornecedor”, conta Denis Monteiro, proprietário da Caramelada. Em outras palavras, “o melhor queijo coalho” só é encontrado em um endereço. E é de lá que sai o produto que, pelas mãos de César Santos, viaja o Brasil e o mundo, representando a cozinha do estado. “O ponto do sal é perfeito, a cor, branco claro, é fruto da boa procedência do leite, é sempre fresco, a textura é ideal para qualquer receita”, defende o chef, que usa o coalho desse produtores desde o início de suas atividades na cozinha.


A versão saborosa da torrada da Santa Cruz é feita com baguete fresco. Foto: Ricardo Moura

MAQUIAGEM DE GRÃ-FINO
Segundo dados da Associação dos Industriais de Panificação do Estado de Pernambuco, atualmente, as padarias somam 1,6 mil na Região Metropolitana do Recife, de um total de 3 mil em todo o estado. Mas poucas mantiveram o formato romântico da antiga padaria. Nas avenidas mais reluzentes, viraram delicatessens elegantes, convenientes, desejáveis. Nos subúrbios, são arremedos disso. No lugar da pasta de salmão defumado, quitute de boi enlatado. Se, em uma, os vinhos importados lotam as prateleiras, na outra, as garrafas de Sidra e Campari fazem as vezes. Uma coisa as une, é verdadeS: prestam os serviços alimentares dos tempos que correm. Mas já não exibem a elegância clássica daqueles estabelecimentos abertos pelos primeiros Joaquins e Manuéis de bigodes.

“Eu tenho a única padaria de verdade no Recife. Só vendo o que fabrico, sendo tudo voltado para a alimentação”, afirma Timm Mendes, da BrotFabrik. Da La Roque, Luciano Pedrosa lembra a relação “quente” que move seus funcionários com a clientela. “Aqui, todos os atendentes conhecem o nome e o time de futebol da clientela”, orgulha-se. Não se pode negar que os vestígios, que eram os diferenciais “daquela” padaria, ainda existem. Mas, lamentavelmente, passarão a entrar no time de rodar peão e brincar de barra-bandeira. No futuro, certamente, os antropólogos lembrarão como o homem do Brasil foi feliz com suas padarias do século 20. 

EDUARDO SENA, jornalista.

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