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'Festa no covil': Homens na pele de animais

Livro de estreia do mexicano Juan Pablo Villalobos traz personagens com ações comandadas pelo instinto de preservação e pela violência

TEXTO Schneider Carpeggiani

01 de Abril de 2012

Juan Pablo Villalobos

Juan Pablo Villalobos

Foto Divulgação

Num texto clássico sobre Franz Kafka, Walter Benjamin destacou que o mundo kafkiano é mais jovem que o dos mitos. Nele, as sereias não cantam, silenciam. O escritor tcheco também seria contrário ao universo das fábulas, que convertem homens em animais em busca de alguma lição, alguma moralidade tardia, antes do ponto final. Poderíamos ler durante muito tempo as histórias de animais de Kafka, sem percebermos que elas não tratam de seres humanos porque o mundo dos homens já estaria bem longe. Animais são animais. O escritor priva os gestos humanos dos seus esteios tradicionais e os transforma em temas de reflexões intermináveis.

Podemos pensar não em fábulas em relação a Kafka, mas em parábolas, ainda que todas as tentativas de aproximar a leitura da sua obra de algum estrito sentido religioso tenham se mostrado inúteis. Parábolas, sim, porque invocam o sentido de ordem de um mundo em crise com o espírito moderno, no período entre as duas grandes guerras. Não trazem ensinamentos, mas ordenações.

A elogiada estreia do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos, Festa no covil, segue a premissa kafkiana: homens com nomes de animais, que vivem regidos por instinto de preservação e violência, atacam e cercam o possível inimigo, como se seus hormônios vivessem em constante sentido de alerta.

O protagonista se chama Tochtli, que em dialeto asteca significa coelho, o animal que, segundo Lewis Carrol, sabe que o tempo é um elemento evasivo e traiçoeiro. Tochtli é, também, uma criança fascinada por dicionários e suas cercas interpretativas. Procura apreender o sentido das palavras todas as noites antes de dormir, como se contasse ovelhas. Já sabe de cor as implicações por trás de “sórdido”, “nefasto”, “pulcro”, “patético” e “fulminante”. Expressões bastante necessárias, em se tratando de alguém cujo pai é chamado apenas pela alcunha de Yolcault (serpente). Tochtli não tem mãe. Quer até chorar por isso em alguns momentos, mas não chora. Garotos (e coelhos) não choram. É criado para dar continuidade a uma hierarquia masculina que prescinde de sentimentos.

Aquele que não quer que o chamem de “pai” faz questão de lembrar constantemente a Tochtli: “Diz que somos o melhor bando de machos num raio de pelo menos oito quilômetros. O Yolcaut é dos realistas, e por isso não diz que somos o melhor bando do universo, nem o melhor bando num raio de oito mil quilômetros. Os realistas são pessoas que acham que a realidade é assim, como você pensa que é. Foi o Yolcaut que me falou. A realidade é assim, e pronto. Sem chance. ‘É preciso ser realista’ é a frase favorita dos realistas”.

Nesse mundo sem choros, sem mulheres (quando elas aparecem são secundárias, anônimas e silenciosas) e povoado por animais (uso animais, sem aspas, para não me afastar da lição kafkiana), Villalobos nos oferece sua interpretação do universo trágico do narcotráfico que transforma a América Latina num longo e tempestuoso cartel. Não poderia ter sido melhor escolha para narrar a história um coelho-filhote: o olhar infantil apreende o mundo no seu real absurdo de significados à flor da pele, como a Alice que tem seu rito de passagem ao descobrir que, depois de encolher, existem em algum lugar “cogumelos” que a fariam crescer novamente. Ou mesmo no Guimarães Rosa de Primeiras histórias.

IMPACTO
“Tentei por diversas vezes encontrar uma voz narrativa convincente para escrever esse livro, mas só a infantil é que se mostrou concreta para o que eu desejava”, explicou Villalobos, em conversa com a Continente, por telefone. O mexicano – casado com uma brasileira, atualmente residente em Campinas, interior de São Paulo – não esconde a perplexidade diante do impacto de Festa no covil. O romance já foi vendido para mais de 14 idiomas, com críticas positivas em publicações como The Telegraph e The Independent. Seu espanto ganhou proporções maiores porque ele conhece bem o jogo das editoras europeias, que (ainda) insistem em buscar a América Latina de possíveis e anacrônicos imitadores de Gabriel García Márquez. “Eu não posso deliberadamente dizer que quero me afastar da tradição do boom literário latino-americano, porque, dessa forma, estaria confirmando ainda mais suas premissas. Prefiro fazer a minha própria literatura”, destaca.

O crítico que se propõe a descrever os trâmites de Festa no covil deve evitar possíveis spoilers no seu texto: o livro assusta justamente porque tateamos no imaginário dos seus animais sem compreender muito bem o que está prestes a acontecer. E, como se trata da narração de um filhote, a violência e os respingos de sangue pululam na cara do leitor, travestidos de uma inocência perturbadora. Seria possível cair no clichê de tratar esse romance como uma obra de formação, mas, no fundo, toda a história literária é também a saga de personagens fraturados, que se formam e se decompõem com o passar das páginas.

A versão inicial de Festa no covil teria 70 páginas. Mas o autor conseguiu esticar a narrativa para não menos sucintas 88. Seu próximo livro, que será entregue à editora espanhola Anagrama, no final do ano, já tem o dobro disso. “Um dos meus autores favoritos é Roberto Bolaño, que ficou famoso por livros enormes, como 2666 e Detetives selvagens. Até pouco tempo, nunca havia pensado em fazer um romance com essas dimensões, porque seus livros com tamanho reduzido, como Noturno do Chile e Estrela distante, já dizem tudo, num espaço de tempo tão curto. Mas penso que, no futuro, irei me entregar à liberdade de fazer um grande romance, no qual nem todas as páginas são necessárias. Essa liberdade é um exercício importante para um escritor”, afirma Villalobos, que escreveu uma crônica para o blog da sua editora brasileira, Companhia das Letras, contemporizando o fato de que “lemos Bolaño porque precisamos acreditar”. Pelo visto, Villalobos já está acreditando. 

SCHNEIDER CARPEGGIANI, jornalista, editor do suplemento Pernambuco e doutor em Teoria da Literatura.

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