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Ferreira Lopes: Beverly Hills (também) é aqui

Sobre a dificuldade de, casualmente, conseguir um corpo a corpo com os habitantes da rua de belos casarões localizada no popular bairro de Casa Amarela, zona norte do Recife

TEXTO THIAGO LINS
FOTOS RICARDO MOURA

01 de Abril de 2012

Foto Ricardo Moura

No meio de Casa Amarela, um dos bairros de feição tradicionalmente popular do Recife, encontra-se o que se poderia chamar de “um pedacinho de Beverly Hills”. Com suas mansões, carros de luxo e palmeiras imperiais, a Rua Ferreira Lopes sugere com facilidade essa associação. O cenário de seriado californiano contrasta com o restante do bairro que, mesmo com a exagerada especulação imobiliária, ainda guarda referências a uma “modesta” localidade. Mas – sabemos – o Recife é uma cidade de extremos, onde complexos de compras avizinham-se a favelas.

Definir o padrão demográfico da rua é tarefa penosa. Numa investida de um turno, por exemplo, foram poucas as informações que o repórter conseguiu extrair de seus desconfiados moradores. Pela reincidência de câmeras de segurança, cercas vivas, muros altos e vigilância privada, há, certamente, naquelas residências tesouros muito bem guardados aos quais jamais teremos acesso. É a única razão para justificar tanta desconfiança.

Nosso propósito: um perfil da Rua Ferreira Lopes e de seus moradores. Primeiro empecilho: a vida naquele lugar circula sobre quatro rodas ou para além dos muros. Quando é possível superar os bloqueios mencionados – entre uma grade e outra, ou graças a uma brecha que escapa –, avista-se quase ninguém. Estão todos em outro lugar que não as dependências mais visíveis das casas.

Meu trabalho era semelhante ao de promotores de vendas de cosméticos, livros, bíblias: bater às portas, arriscar. Quase perturbar a ordem alheia. Vamos lá. Primeira casa, uma de tijolos aparentes com muro alto e ampla garagem. Um toque e o interfone disparou. Constrangedor. OK, nem tudo na Ferreira Lopes é perfeito. Espero um tempo razoável. Desisto, mas torço para que aquilo não seja um mau sinal.

Segunda casa. Ninguém atende. E, assim, sucessivamente. Eis que alcanço o que supus ser um caseiro, regando um jardim cirurgicamente bem-feito. Simpático, porém não me ajuda muito. Explica que na mansão só mora uma senhora muito doente, o que praticamente impossibilitaria a entrevista. Fico pensando em como alguém tão doente pode desfrutar de tanto espaço, mas o elevador panorâmico instalado na fachada externa do imóvel dizia tudo.


As casas da rua investem fortemente em segurança, com muros altos,
portões com fechaduras resistentes e equipamentos eletrônicos

Arrisco outra mansão, mas, novamente, não passo do portão. O sorriso do vigia me faz achar que posso ter um retorno a qualquer hora. Quem sabe? Deixo um exemplar da revista como suborno e meu contato. Sair tocando campainhas rua afora não estava sendo propriamente frutífero.

Cesso a operação-cigarra e decido abordar pedestres. Mas a Ferreira Lopes não é como a Padre Lemos, uma rua situada a alguns metros dali onde há congestionamento de tudo: carros, motocicletas, gente, em que não há distinções claras entre o que é casa, calçada, rua, porque tudo se mistura. O jeito é esperar. A primeira pessoa que vejo é uma mulher de meia-idade com um cachorro (quando a avistei, ela carregava o animal no braço). Sintomático: algo sempre tem que ser ostentado por ali, mesmo se passando a pé. Um cachorro fino e fofo, que seja. Pena, ela mora em outra rua, adjacente. Não serviu.

Interrompo outra transeunte, uma estudante com roupa, ar e aparente “saúde” de quem voltou da academia. Outra passageira, não reside naquela rua. Mas as duas dizem algo sobre o lugar: a primeira, pela fineza, e a segunda, pela beleza. E nenhuma das duas morava na rua. O que era suposição ganha ares de confirmação: na Ferreira Lopes, só se anda de carro. De preferência, um 4x4 blindado. Enquanto isso, a reportagem continuava à míngua. Decidi tentar as duas lojas do local. No caminho, tropecei no lixo: uma caixa vazia de iMac e, outra, enorme, de um telão LCD. Coincidência?

As duas lojas que ficam na rua são uma de roupas e outra de móveis. Na primeira, compro o vigia com uma revista e passo até a loja, após uma espécie de interrogatório. Ninguém dá as caras, mas a dona de uma voz cansada responde ao nosso pedido de atendimento, do recinto onde ela estava, dizendo que aquele era um horário “muito chato”. Ah! Horário de almoço... De qualquer modo, passava muito das duas da tarde. Tinha até as 18h para entrevistá-la, mas receei que aquela refeição não fosse ter fim (para a reportagem, digamos assim).

Cruzo a rua até o seu final, onde há uma fina loja de móveis. Quase sem querer, descubro que todos os objetos estão em liquidação, embora continue longe de poder comprar qualquer um deles. O movimento do estabelecimento, que passou por uma expansão recente, é fraquíssimo: imagino que uma venda pontual já garanta um lucro razoável.

Suposições à parte, a vendedora relata que a dona do ponto comercial também estava no horário de almoço e que nossa reportagem poderia voltar depois. A coincidência me faz pensar que naquela vizinhança se almoça mais tarde, ou com mais calma: talvez seja um privilégio de quem deu duro a vida inteira para ocupar um espaço razoável entre os metros quadrados mais caros de uma cidade transformada rapidamente pela especulação imobiliária. Mas a pauta não tinha mudado, e eu ainda tinha a tarde inteira pela frente.

Sem entrevistas, gravador vazio. O jeito foi registrar notas na caderneta, antes que a pressa e a angústia me fizessem deixar passar alguma coisa. Eis que um homem de farda interrompe o desenvolvimento do meu trabalho jornalístico.

– Boa-tarde, companheiro! É corretor?

Nego, e comento com ele a pauta. Com o esclarecimento, ele, mais tranquilo, diz que foi acionado para me interceptar porque os condôminos de um prédio “acharam que você fosse ladrão”. Gente fina, às vezes, é fogo. Queria poder processá-los pela ofensa, quem sabe assim tornar-me rico também. Fiquei pensando se os engenheiros, arquitetos e corretores que alimentam a especulação passam pela mesma situação quando trabalham ali.

Continuei com as anotações – escrevendo o que ocorria, como um artista pinta o que vê, mas sem nenhuma musa inspiradora, sob o sol escaldante, na mira de seguranças mais desconfiados que os de banco. Cruzei com PMs de moto três vezes, o que talvez se deva à natureza “suspeita” desse vagar jornalístico.

Mesmo sem ter falado com nenhum morador, a matéria já estava tomando forma... na minha cabeça. Ia tentar fazer como Joseph Mitchell, que traçou o antológico perfil de Sinatra sem ter trocado uma palavra com A Voz. Mas, antes que um choque de realidade soterrasse meu delírio, deparei-me com aquela que seria minha primeira e última fonte em potencial.


A beleza dos adornos chama a atenção dos poucos pedestres que circulam pelo local

Luiz Marcos Vilaça, um senhor aparentando mais de 50 anos de idade e afirmando ter 40 só de residência ali: a única pessoa solícita que encontrei. Ele estava em sua garagem, sem camisa, quando o chamei do portão, já com a revista na mão – minha contraparte às gentilezas. Ele não demora em me deixar entrar e me oferecer uma cadeira, enquanto torço para que não haja no local algum cachorro assassino. Conta que foi morar ali com os pais, vivendo com a mãe até hoje (o pai faleceu).

Diz que os primeiros prédios da rua começaram a ser construídos na década de 1980. Ainda são poucos, ou muito baixos ou muito altos (outra discrepância, só que geométrica), os últimos sendo muito recuados, para interferir menos na paisagem. Sobre as mansões, ele sublinha que sempre foram uma marca do local. E aponta para uma das mais pomposas, na esquina, revelando que ela pertencia ao grupo Othon Bezerra de Melo, tendo sido comprada, há pouco tempo,por uma construtora local, que tem loteado o Recife (o nosso gonzismo não demanda uma verificação para comprovação, mas vale a especulação, neste caso).

É evidente que a expansão imobiliária e todos os seus sedentos agentes já conseguiram penetrar na (até aqui) intocável e (ainda) arborizada Ferreira Lopes. Mas a rua continua resguardando algum segredo por trás das cercas vivas, dos muros altos, dos cães de guarda e da segurança privada. E seus moradores se mostraram dispostos a levá-lo para o túmulo. 

THIAGO LINS, repórter especial da revista Continente.
RICARDO MOURA, fotógrafo, estagiário da Continente.

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