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'Ficcionais': As perguntas que não querem calar

A partir de provocação feita por jornal literário, autores comentam motivações e processos criativos que são agora publicados em livro

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Maio de 2012

Alberto Mussa, Sidney Rocha e Eric Nepomuceno estão entre os 32 autores da coletânea

Alberto Mussa, Sidney Rocha e Eric Nepomuceno estão entre os 32 autores da coletânea

Fotos Divulgação

Há certas profissões para as quais parece não haver dúvidas quanto às suas motivações e processos. Ninguém ou pouca gente se detém em perguntar a um médico os seus porquês e comos. Situação bem diversa vive o escritor, sobre o qual sempre pairam as indagações “por que você escreve?” e “como é o seu processo de criação?”. Perguntas chatíssimas, aliás, pois sempre repetidas nesse ambiente criativo. Um jornalista em entrevista com um escritor, por exemplo, precisa de tato e sagacidade para escamotear essas incontornáveis questões, camuflando-as, disfarçando essa curiosidade atávica. E não foi outra a estratégia de dissimulação dos editores do jornal literário Pernambuco (Cepe), Schneider Carpeggiani e Raimundo Carrero, ao criarem a seção Bastidores, em que se requer do escritor convidado uma resposta à questão: qual o processo de criação de seu livro?

Nos últimos cinco anos – que é o tempo de vida desse mensário –, vários escritores se dispuseram a responder os tais porquês e comos de suas mais recentes obras. E, observa-se pela leitura, nem todos os clichês são dispensáveis. Vale a pena insistir nessas questões: é prazeroso ler os depoimentos que são momentos de exposição profissional e pessoal para o escritor.

Diante dessa constatação, e como marco do “aniversário” do Pernambuco, está saindo Ficcionais (pela mesma Cepe), livro que reúne 32 dos textos publicados em Bastidores no período.

E o que temos em Ficcionais? Bem, se quisermos ser dramáticos, um monte de angústias. Se preferirmos simplificar um pouco as coisas, vozes que esclarecem quanto a uma prática que pode ser percebida como mais um campo profissional, em que há regras a serem seguidas (ou, quase isso). Porque, embora uma parte considerável de leitores continue a acreditar que a feitura de um romance ou de um poema deve-se a uma encarnação do divino, a tarefa pode ser muito mais pragmática, objetiva, afinal, escrever é uma técnica como o é manipular um bisturi (embora as consequências do contato com um mau texto sejam menos desastrosas que com um mau manuseio de bisturi).

Então, observemos alguns dos depoimentos a partir dessas bitolas e suas nuances: autores que demandam processos extremamente racionais, outros que encaram a atividade como uma necessidade saciada, feliz; e os que sofrem muito para entregar ao leitor aquela obra bem empacotadinha que ele compra na livraria.

Alberto Mussa, autor do ótimo O senhor do lado esquerdo e que comenta Meu destino é ser onça para o Pernambuco, avisa logo no primeiro parágrafo: “Para começar a escrever eu necessito de um estímulo intelectual. Não consigo escrever sobre minhas experiências pessoais, observar e analisar o mundo ao meu redor ou expiar minhas próprias angústias”. E o que faz o carioca? Pesquisa, anota, cria esquemas, coteja obras, estuda línguas e até faz mapas para chegar ao ato da escrita, propriamente, mas não deixa de ter suas idiossincrasias, como a de escrever pouco por dia e sempre à mão (isso valendo só para a ficção).

Não é exagero dizer que Eric Nepomuceno é “o homem que traduziu a América Latina”, título dado à contribuição do autor para os Bastidores. Tudo ou quase tudo de Gabriel García Marquez que lemos em edições nacionais chegou à língua portuguesa através dele. De tanto traduzir Eduardo Galeano – sua primeira tradução do uruguaio foi em 1975 –, ficou amigo dele. E isso diz muito da relação do escritor com a atividade. Ele escreve: “Eu sou incapaz de aceitar uma tradução por razões em termos exclusivamente profissionais. Volta e meia recuso convites para traduzir autores que respeito, ou cuja obra admiro, mas por quem não tenho nenhum afeto pessoal, ou sinto que não fazem parte do meu universo. Na hora de traduzir, sou movido em primeiro lugar por afinidade, por afeto”.

É possível colocar tradutores no elenco de escritores escalados para participar dessa seção, pergunta o leitor? Se você admitir que traduzir também é criar... Nepomuceno defende um ponto de vista legítimo, quando afirma que livro bem traduzido é aquele em que não percebemos que foi traduzido. “Estranha determinação”, escreve, “a de se esforçar o máximo para que ninguém perceba o que você fez”. Ainda bem que os editores não se ativeram a classificações estanques, e convidaram tradutores para escrever também – o texto desse autor é um dos melhores da coletânea.

Se estamos falando de pessoas que não se afligem com o ato da escrita autoral, falamos também daqueles para quem a ficção é dolorosa. E há muitos exemplos disso, seja porque o autor é exigente demais, ou porque ele hesita, reluta, briga com a criação. Claro, sabemos que há a retórica da dor, sua encenação, mas isso é apenas um detalhe, afinal, quem encena também sofre.

Antes que se esqueça, é preciso dizer que alguns dos escritores reunidos nesse livro foram detalhistas e trouxeram descrições das várias etapas pelas quais passaram para escrever aquele livro, e de como fizeram com isso ou aquilo. O mérito desse impulso é trazer para o leitor processos mentais, estruturas de raciocínio muitas vezes convergentes. Cai o mito do divino e isso é salutar.

Entre os relatos que colocam a produção literária como uma angústia, ou, pelo menos, como uma disputa de forças internas para se chegar a um produto final, há Um manual de como encontrar a sua salvação, o depoimento de Sidney Rocha sobre a feitura do seu livro de contos O destino das metáforas. Aqui, o autor se debate entre escrevê-los ou retomar um romance abandonado. Na luta, quem vencerá? Enquanto se debate, o autor quase se afoga. Ele dá ao texto encomendado pelo jornal um corpo ficcional, como se fosse uma metáfora daquilo que é mesmo um sofrimento. 

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente.

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