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“Nossa vida está focada em ter coisas”

Mais conhecido como No Impact Man, escritor norte-americano Colin Beavan fala sobre o período em que se submeteu a reduzir os danos ao meio ambiente, experiência que virou filme, livro, blog e ONG

TEXTO Antônio Martins Neto

01 de Maio de 2012

Colin Beavan

Colin Beavan

Foto Antônio Martins Neto

A revelação se deu em janeiro de 2006. Colin Beavan, escritor norte-americano, então com 43 anos, deparou-se na sua rua com jovens de camiseta e short em pleno inverno. Eram universitários que viviam num alojamento vizinho. O calor num mês em que os termômetros deveriam marcar temperaturas próximas de zero era o sinal mais evidente de que o aquecimento global chegara a Manhattan e, como um bom morador da cidade que nunca dorme, Beavan deveria se manter desperto e reagir. Nascia o No impact man, ou Homem sem impacto, projeto no qual ele se comprometia a eliminar suas pegadas no período de um ano. Detalhe: sem abandonar o apartamento no charmoso bairro de Chelsea.

O primeiro desafio foi convencer o agente literário de que a experiência daria um bom livro. O segundo, fazer com que a mulher, jornalista da revista Business Week, desistisse das roupas de grife e das facilidades da vida moderna para viver nas trevas em meio à luz cintilante da cidade mais cosmopolita do mundo – a família passaria seis meses sem energia elétrica. Beavan se revelou um bom pregador e ambos se converteram.

O homem sem impacto costuma comparar a experiência à vida num monastério. Mas o processo se assemelhou a uma desintoxicação. A purificação foi atingida com a redução do lixo doméstico, comidas embaladas em plástico e papelão, material de limpeza agressivo ao meio ambiente e até... papel higiênico. A TV, vista como um santuário de devoção ao consumo, foi desligada e colocada da porta para fora. A bicicleta e o patinete viraram os principais meios de transporte. Nada de carro, táxi, ônibus, metrô e avião.

Beavan garante que encontrou a felicidade. Tudo foi registrado num documentário, num livro e num blog. E também nas páginas dos principais jornais, revistas e TVs dos EUA. A experiência e a fama repentina chancelavam a tranformação do escritor de livros de História em ativista ambiental. A Continente conversou com Beavan num café do Brooklyn, seu novo endereço – ele chegou a pé e tomou apenas um cappuccino. Orgânico.

CONTINENTE Além daquele dia de calor em pleno inverno novaiorquino, o que mais o levou a querer salvar o planeta?
COLIN BEAVAN A primeira vez em que pensei nisso foi em 2006. Estávamos em guerra no Iraque e no Afeganistão, ambas por causa de petróleo, e eu estava preocupado com isso, pois, na verdade, lutávamos por petróleo. Preocupava-me o fato de que, quando queimamos petróleo, sujamos todo o planeta. E em meio a isso, há nosso estilo de vida. As pessoas que conheço aqui em Nova York, e em outros lugares, não parecem felizes como poderiam ser. Em outras palavras, há uma guerra que esgota o planeta por um estilo de vida que sequer nos faz felizes.

CONTINENTE Sua família levava uma vida típica de cidade grande. Como foi convencer sua mulher a abandonar as facilidades da vida moderna e abraçar o projeto?
COLIN BEAVAN Eu já tinha o projeto de escrever um livro. Cheguei em casa, coloquei a ideia para ela e expliquei-lhe que teria de viver de forma sustentável também. Ela aceitou logo de cara e disse que ia adorar fazer isso e apoiar o meu projeto. Mas, honestamente, acho que ela não tinha percebido no que estava se metendo, porque naquele estágio nem eu mesmo tinha percebido. Não sabia o quanto o nosso estilo de vida destrói o planeta. E se quisermos diminuir os danos que provocamos, temos que mudar a maneira como vivemos.

CONTINENTE Qual foi a parte mais difícil?
COLIN BEAVAN Acho que faria mais sentido perguntar qual a parte mais interessante. É que sempre pensamos em ter de nos privar para salvar o planeta. Mas, quando paramos de consumir fast food para comer alimentos locais e paramos de usar carro para andar ou pedalar, comemos melhor e fazemos exercícios. Sem a TV, passamos mais tempo com a família. Então, nós estamos mais felizes. Mas se eu tivesse que dizer qual foi a parte mais difícil, diria que foi ter de lavar roupas à mão.

CONTINENTE E a mais fácil?
COLIN BEAVAN A mais fácil foi parar de comprar o tempo todo. Nos EUA, as pessoas gastam boa parte do tempo livre assistindo TV e fazendo compras. Elas saem aos sábados e compram, como se isso fosse de fato um hobby. Quando nos livramos disso, descobrimos outras coisas para fazer. E poupamos dinheiro.

CONTINENTE No livro No impact man, o senhor fala sobre as lições que deveríamos aprender com as velhas gerações, como a dos seus avôs. Que lições são essas?
COLIN BEAVAN Meus avós cresceram durante a Grande Depressão. Nos EUA, quando pessoas dessa época nos dizem para sermos mais cuidadosos com os recursos, nós os depreciamos. Há até um termo pejorativo para isso. Eles são os “filhos da depressão”. Mas acho que aconteceu algo especial com essa geração. Ela não é cuidadosa por preocupação com dinheiro, mas por ter aprendido a ter gratidão pelo que possui. Toda vez que minha avó pegava uma sacola de papel numa mercearia, ela dobrava e colocava atrás do refrigerador, pronta para ser usada mais uma vez. Há uma gratidão pelo que existe, pelo que chega até eles, e isso me fez pensar em ser grato pelo que temos hoje.


Foto: Antônio Martins Neto

CONTINENTE O livro também menciona as mensagens sustentáveis que podemos encontrar nos escritos judaicos e até budistas. Há, de fato, uma ligação entre sustentabilidade e religião?
COLIN BEAVAN Acredito que há uma ligação entre ambientalismo e espiritualidade. Algumas pessoas não gostam da palavra religião. Mas estamos destruindo o mundo para termos um estilo particular de vida. Toda nossa economia é baseada na ideia de que as pessoas devem comprar muito para manter a economia funcionando, como se esse fosse o propósito da nossa vida. Deveríamos nos perguntar o que nos faz felizes, por que estamos vivos, por que nascemos, para que vivemos. Essas são grandes questões espirituais. Mas também são temas que conduzem a nossa economia, porque nós assumimos vidas baseadas em ter cada vez mais coisas. Para mim, a tragédia mais terrível seria destruirmos o mundo para viver um estilo de vida que sequer está alinhado com os nossos mais verdadeiros propósitos. A ligação entre ambientalismo e espiritualidade está no fato de que devemos usar nossos recursos de uma maneira verdadeiramente alinhada aos nossos propósitos humanos. O pior é disperdiçarmos esses recursos sem que o motivo seja a nossa sobrevivência.

CONTINENTE Sua filha era pequena na época do projeto. Ela guarda alguma lembrança?
COLIN BEAVAN Ela tem sete anos de idade, mas naquele tempo tinha entre um ano e meio e dois anos e meio. Minha filha lembra pouca coisa, mas é muito consciente de que eu sou o homem sem impacto. Quando ela nasceu, nós decidimos que seria vegetariana e que, quando chegasse a uma idade em que realmente pudesse entender, poderia decidir por si mesma. Um certo dia, disse que não queria mais ser vegetariana, que queria comer carne. Mas, recentemente, numa conferência da Humane Society, uma entidade sem fins lucrativos que lida com os direitos dos animais, ela conversou com um dos membros da entidade e me disse que queria ser vegetariana novamente.

CONTINENTE Quase seis anos depois, que práticas foram abandonadas e que hábitos foram mantidos pela sua família?
COLIN BEAVAN Não tenho TV em casa. Algumas vezes, assisto a vídeo pelo computador, mas não muito. E continuo a pedalar para todos os lugares, porque é uma forma de incluir exercício físico na rotina. Prefiro comida local, de qualidade. E nada de água engarrafada.

CONTINENTE As novas tecnologias chegam com a promessa de nos livrar de hábitos que causam grande impacto. O iPad e os tablets, em geral, substituiriam os jornais e revistas e isso evitaria a derrubada de árvores, por exemplo. É possível acreditar nisso?
COLIN BEAVAN Não tenho estudado essa questão e não sei o que causa mais impacto, se o jornal de papel ou o iPad. Mas a ideia de não estar jogando alguma coisa fora é uma boa. Por outro lado, temos que estar conscientes de que há minerais, entre outras coisas, dentro dos equipamentos, como o coltan, encontrado no Congo, muito caro e raro. Guerras estão sendo travadas para que esse produto seja fornecido às empresas de tecnologia. O que sei é que ter o iPad 1 e, no ano seguinte, ter que comprar o 2 e, depois, o 3, não é bom para o meio ambiente. O ideal seria ter dispositivos que nos permitissem mudar a parte principal, a parte que foi melhorada, sem ter que jogar todo o equipamento fora.

CONTINENTE Mas o senhor não abre mão do computador?
COLIN BEAVAN Tenho um computador, iPad e iPhone. O computador e o iPhone, comprei de segunda mão. O iPad foi comprado novo, por ser a primeira versão e não tinha como ser usado.

CONTINENTE Se, daqui a mil anos, os arqueologistas resolverem estudar a nossa sociedade, o que eles devem encontrar?
COLIN BEAVAN Eles iriam encontrar garfos de plástico, copos de plástico e essas coisas que jogamos fora. O que eles não veriam seriam utensílios como descascador de laranja, de pepino. Nessa cultura da velocidade, veriam um povo correndo sem ter tempo para fazer uma comida decente. Teriam evidências de uma sociedade estressada, sem tempo para cuidar de si.


Foto: Arquivo pessoal

CONTINENTE Qual a grande diferença dos governos de George W. Bush e de Barack Obama em relação ao aquecimento global?
COLIN BEAVAN A administração Bush negou a existência do aquecimento global. A administração Obama aceitou a existência do fenômeno, mas os movimentos para resolver o problema têm sido lentos. Não tenho certeza se é porque o próprio Obama está mal ou porque o sistema político norte-americano está estrangulado pelo dinheiro das corporações.

CONTINENTE O senhor tem acompanhado como os Brics têm lidado com esse tema?
COLIN BEAVAN Sei o que eles pensam sobre isso, pelos problemas que os chineses têm enfrentado com a poluição e pelo fato de economias como a do Brasil, da China e da Índia estarem cientes de que as mudanças climáticas já estão afetando a qualidade de vida de suas populações. Há pressões sobre os países não desenvolvidos a respeito das consequências ecológicas do avanço econômico. Cruzo os dedos para que eles façam um trabalho melhor do que os EUA. Mas penso que todos temos de estar conscientes de que estamos esgotando o planeta para nos sustentar.

CONTINENTE Além das palestras, o senhor continua escrevendo sobre o tema?
COLIN BEAVAN Estou trabalhando no meu próximo livro. O título do trabalho é How should I live: the quest for rock’s fan fill meaningful life in a frightening confused world that needs our help. É basicamente sobre como nós equilibramos um estilo de vida supostamente feliz com a nossa responsabilidade para com o mundo e a nossa comunidade.

CONTINENTE Qual foi a sensação ao voltar a ter energia elétrica?
COLIN BEAVAN De todo o ano, só nos últimos seis meses nós não tivemos eletricidade em casa. Uma vez que o experimento acabou, era hora de voltar a ligar a luz. Honestamente, tive sentimentos misturados. O projeto foi tão intenso, que, em alguns aspectos, foi como entrar num monastério. É muito fácil seguir as regras. Você sabe o que deve fazer num monastério porque é tudo muito rígido. Ligar a luz foi como voltar ao mercado. E você enfrenta essa questão de como levar uma vida regular diante de um problema gigante do aquecimento global. De certa forma, é disso que o segundo livro trata.

CONTINENTE Como indivíduo, qual foi o grande impacto desse projeto?
COLIN BEAVAN Tudo veio como uma surpresa. Minha esperança era escrever esse livro, divertir algumas poucas pessoas e mudar a mente de outras. Mas acabei recebendo essa atenção gigantesca da imprensa. O resultado é que, hoje, faço muitas palestras, tenho uma pequena organização não governamental que conduz projetos de redução de impacto e ajuda outras pessoas a viverem sem impacto; e dou consultoria a outras entidades sem fins lucrativos. Enfim, sou um privilegiado por estar no meio desse debate e discutir o modo como o ser humano vive. 

ANTÔNIO MARTINS NETO, repórter especial da TV Jornal e correspondente do SBT no Nordeste.

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