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De volta às prateleiras

Títulos raros e fora de catálogo são relançados pela Cepe, da poesia à prosa de caráter ensaístico, com enfoque na produção pernambucana

TEXTO André Valença

01 de Julho de 2012

Ilustrações Pedro Zenival

"Efetivamente, de todas as entidades que atuam hoje no Recife nenhuma é mais considerável, mais poderosa, mais cercada de prestígio, que o automóvel.” Apesar de parecer refletir sobre a situação atual da mobilidade do Recife, a citação de Antônio José de Melo e Sousa trata de uma questão bem datada, inserida num registro memorial do Recife dos anos 1940. Ainda assim evidencia essa tendência idiossincrática da cidade com a falta de planejamento urbano e o fascínio pelo automotor, atualmente bastante discutida. Mas, a propósito, quem é esse Antônio José? Nos autos da política brasileira, você o encontrará como senador de linha conservadora, ou ainda como duas vezes governador do Rio Grande do Norte. No título Dois Recifes, a ser publicado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), ele aparece como cronista, usando o pseudônimo de Polycarpo Feitosa.

A obra de Melo/Feitosa é uma das 10 que a Cepe publica no início do segundo semestre e integra a coleção Acervo Pernambuco. O intuito dessa coleção é resgatar livros raros, ou fora de catálogo, que sejam importantes tanto para a cultura de Pernambuco quanto do Nordeste. Não há restrição de gêneros para os escritos, podendo ir de ensaios à história, de crônicas a poesias, de geografia a teorias do teatro. A temática se divide de acordo com as classificações Letra Pernambucana (no que concerne à literatura), Terra Pernambucana (história, geografia, antropologia, sociologia), Arte Pernambucana (artes plásticas) e Palco Pernambucano (teatro).

Dos autores que estão sendo republicados, o único ainda vivo é o artista plástico José Cláudio, que reúne num só volume três livros: Memória do Atelier Coletivo, Artistas de Pernambuco e Tratos da arte de Pernambuco, editados separadamente nas décadas de 1970 e 1980. As obras traçam um panorama detalhado do movimento da arte moderna pernambucana. “Apesar de Pernambuco ser um estado que tem uma grande tradição de artes plásticas, não possui uma massa crítica à altura. Não há aqui livros de estudos teóricos nem de história suficientes a respeito da produção local”, comenta Marco Polo, responsável pela produção editorial do projeto.

O registro do Atelier Coletivo (que funcionou de fevereiro de 1952 a outubro de 1957) é relevante, nesse sentido, porque é praticamente o único sobre uma iniciativa que impulsionou artistas pertencentes ao cânone pernambucano, como o seu fundador Abelardo da Hora, Gilvan Samico, Guita Charifker e o próprio José Cláudio. “Eu fui fazendo o que encontrava, não tinha pretensão nenhuma quando escrevi tudo isso”, explica este pintor. “Fiquei admirado como atribuíram importância ao ensaio, provavelmente dada à carência de textos sobre a arte de Pernambuco”, reflete.

O Artistas de Pernambuco reúne uma série de depoimentos de pintores, desenhistas e escultores que marcaram o painel das artes plásticas no estado ao longo das últimas décadas. Para José Cláudio, os registros servem como “exposição escrita”. “Fiz tudo praticamente sozinho, não tinha gente para escrever dados biográficos dos artistas. A gente achava um quadro e ninguém sabia direito de nada. Comecei a compilar. É como se fosse um álbum desses artistas.”

Os outros títulos a serem lançados pela Acervo Pernambuco são Um sertanejo e o sertão, Moxotó brabo e Três ribeiras, os três assinados por Ulysses Lins de Albuquerque, que fazem um levantamento antropológico do interior do Nordeste nos anos 1930. São memórias, experiências que ele ouviu dos tipos sertanejos (coronéis, cangaceiros...). Muitas vezes se assemelham a “causos”, mas trazem também a reflexão desses personagens e acabam ganhando um caráter mais científico que literário. O selo Terra Pernambucana reúne ainda A Guerra dos Mascates como afirmação nacionalista, de Mário Melo, sobre o conflito entre Recife e Olinda, no início do século 18, e Paisagens do Nordeste em Pernambuco e Paraíba, de Mário Lacerda de Melo, que analisa aspectos geológicos da região.

Em Letra Pernambucana, são lançados o citado Dois Recifes, de Polycarpo Feitosa, e um volume com três livros do poeta Austro-Costa: Mulheres e rosas, Vida e sonho e De monóculo. O selo Palco Pernambucano reedita A personagem dramática, de Rubem Rocha Filho, um estudo de como se elaborou a personagem dramática, desde as tragédias gregas até os folguedos populares de agora; e Por um teatro do povo e da terra – Hermilo Borba Filho e o Teatro do Estudante de Pernambuco, de Luiz Maurício Britto Carvalheira, sobre o teatrólogo pernambucano e o Teatro do Estudante, precursor do Teatro Popular do Nordeste.

Especialistas de cada área foram escolhidos para escrever um prefácio recontextualizador de cada livro, revelando a pertinência de seu relançamento. O projeto gráfico foi elaborado pela designer Moema Cavalcanti e coordenado por Luiz Arrais. O cuidado de trabalhar com textos raros e antigos é imposto desde os processos burocráticos referentes aos direitos autorais, passando pela revisão, até a impressão e distribuição dos livros. “A Acervo já vem sendo produzida há uns dois anos. Essa coleção tem sido vista com especial cuidado. A transposição da ortografia antiga, muitas vezes com termos arcaicos, para a ortografia atual, é feita com o máximo de atenção. Como aliás é nossa meta em qualquer trabalho feito aqui”, destaca o produtor dos livros

ATUALIZAÇÃO
A Coleção Acervo Pernambuco ganhou corpo quando se constatou que diversas obras de alto relevo para a cultura do estado achavam-se esgotadas, fora de catálogo ou transformadas em raridades, só encontráveis em arquivos públicos ou em poucas bibliotecas particulares. Eram obras que cobriam diversas áreas, como literatura, teatro, artes plásticas, história, sociologia, antropologia, geografia, música etc., e que mereciam estar ao alcance dos leitores especializados, fossem estudiosos ou pesquisadores, bem como ao alcance do público em geral, interessado em conhecer o passado de Pernambuco para melhor entender seu presente.

A partir da constatação dessa realidade, foi solicitado ao Conselho Editorial da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), formado por professores universitários, jornalistas, arquitetos, escritores e pesquisadores reconhecidamente categorizados, que formulassem uma lista de prioridades para que fosse iniciada a coleção. De uma lista inicial de 100 títulos, foram escolhidos 10, para dar início à edição.

Além da atualização ortográfica, ficou patente que seria também necessário contratar um especialista de cada área, a fim de que pudesse fazer uma contextualização da obra, um perfil biográfico do autor, e uma comprovação da pertinência de sua reedição. Uma identidade gráfica, de capa e miolo, atraente e funcional, também foi encomendada a uma profissional competente, estando assim concluído o projeto editorial da coleção.

Para viabilizar as publicações, estabeleceu-se contato com os eventuais herdeiros dos autores, tendo em vista que a maioria é falecida. À alegria e orgulho desses herdeiros, juntou-se uma imensa boa vontade de cooperar no trabalho de trazer de volta essas obras, o que facilitou bastante todo o processo.

Agora, os 10 primeiros livros da Coleção Acervo Pernambuco chegam às mãos de todos, para que se comprove sua importância. E já se dá prosseguimento a uma nova listagem de títulos que enriqueçam esse acervo, que não é mais do que o acervo da cultura pernambucana. 

ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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