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Chiclete: Um doce grudado à cultura pop

A goma de mascar chegou ao Brasil na Segunda Guerra Mundial, causando polêmica; mas se adaptou bem ao país

TEXTO Renata do Amaral

01 de Outubro de 2012

Imagem Hallina Beltrão

A menina experimentou chiclete pela primeira vez. Novidade na época, a goma de mascar custava o preço de uma porção de balas, mas foi presente de sua irmã. “Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira”, alertou. Não foi a cor nem o sabor que provocou estranheza, mas, sim, o fato de a guloseima ser infinita. “Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade”, contou a menina.

O doce eterno mais parecia história de conto de fadas: “Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta”. Depois de colocar na boca, a ordem da irmã era taxativa: mastigar para sempre.

Quando o açúcar e o aroma foram embora, nem era tão gostoso. Mas incômoda mesmo era a sensação de pavor causada pela infinitude. “Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar. Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.” Alívio imediato.


Personagem de A fantástica fábrica de chocolate. Imagem: Reprodução

A crônica reproduzida nos trechos acima, e publicada em sua coluna semanal no Jornal do Brasil, em 1970, é da escritora Clarice Lispector. Medo da eternidade foi publicada no livro A descoberta do mundo, coletânea dos textos escritos entre 1967 e 1973 para o diário carioca. Assim como para a escritora, na vida real também houve espanto – ainda que não tão poético, dramático ou filosófico – diante do doce, que chegou ao Brasil na década de 1940.

O produto entrou no país com os militares, nas bases mantidas pelos Estados Unidos em Natal (RN) e Barreiras (BA). É o que conta o jornalista Gonçalo Junior, autor de Ora, bolas! A inusitada história do chiclete no Brasil. No início, pouca gente se arriscou a experimentar a novidade, mas logo foi inaugurada a primeira fábrica da americana Adams, em 1944, com 30 operários. E as caixinhas amarelas (hortelã) e rosa (tutti-frutti) se difundiram.

A ligação anterior da goma de mascar com a guerra é curiosa: o chicle Wrigley era parte da ração de guerra nos Estados Unidos. Sua função era aplacar a fome, estimular a saliva (reduzindo assim também a sede) e ajudar a fazer contatos amigáveis com crianças e adultos. Por ter se tornado um ícone pop dos Estados Unidos décadas depois, chegou a ser proibido em países comunistas na Guerra Fria.

O vício foi criticado pelo folclorista Câmara Cascudo no jornal O Diário, de Natal, em 11 de dezembro de 1943. “Que um norte-americano, não todos os norte-americanos, mastigue chicle, entende-se que é hábito, popular hábito, muito combatido pelos médicos dos Estados Unidos, mas, enfim, é um legítimo usus na terra ilustre do Tio Sam”, justificou o autor de História da alimentação no Brasil. “Mas um nosso brasileiro, gente daqui, nordestino, bronzeado, muito bom mestiço, com outra educação, hábitos, tendências e mentalidade, atirar-se como gato aos bofes em cima do chicle e não ter medida nem juízo para deter a mastigação, em todos os momentos triturando, sem fim, a borracha, porque um amigo estrangeiro o fez igualmente, então, é caso positivo de subalternidade moral visível”, julgou sem dó.


Embalagens multicoloridas atraem mais o público infantil. Imagem: Reprodução

MORDIDA RELAXANTE
A verdade é que o hábito de mascar acompanha o homem há muito tempo. Gonçalo Junior conta que esquimós mastigavam pele de baleia para aquecer a mandíbula, andinos mascavam folhas de coca há cinco mil anos e índios da Guatemala mordiscavam resina de árvore desde o século 2. A ação era considerada uma maneira de acalmar os nervos.

Ao contrário da fama de vilã do sorriso que a goma tem hoje, uma das versões para sua origem conta que o dentista William Semple criou uma borracha com alcaçuz e carvão para limpar os dentes, em 1869, nos Estados Unidos. Mas foi Thomas Adams Junior que aprovou o de látex consumido no México e o levou para o país, no mesmo ano. Em 1871, fundou a primeira fábrica de chicletes.

A goma fez fama em Nova York por sua função antiestresse, mas ainda não parecia em nada com a que se consome hoje. O vendedor de pipoca Williams J. Branco adicionou menta, xarope de milho e açúcar, chegando mais perto da receita que viria a fazer sucesso em todo o mundo. Em 1888, a Adams criou o sabor tutti-frutti e a máquina automática de venda, instalada nos metrôs.


Adams foi a primeira empresa foi a comercializar o produto no Brasil. Imagem: Reprodução

No Brasil, somente a Adams pode usar o nome chiclete, que virou marca registrada e palavra dicionarizada na década de 1950. Na época, a goma era retirada da maçaranduba amazônica, em vez de ser sintética. Gonçalo Junior conta que a escassez de moedas foi um dos fatores que contribuiu para a explosão do consumo do chiclete: o doce passou a ser oferecido como troco.

Enquanto a Adams focava no público adulto, a Companhia Brasileira de Novidades Doceiras, então dona da Kibon, lançou em 1955 o primeiro chiclete de bola, voltado para as crianças, o Ping-Pong. Era um novo mercado consumidor que se abria, estimulado pela propaganda em revistas infantis e pelas figurinhas colecionáveis. Em 1968, a Q-Refres-Ko produz o Ploc. Para concorrer, a Kibon introduz o Twist, com cartuns de Ziraldo, Fortuna e Jaguar.

A fascinação infantil pela goma pode ser exemplificada pela personagem Violete, do livro A fantástica fábrica de chocolate, de Roald Dahl, de 1964: “Eu simplesmente adoro chiclete. Não posso viver sem mascar. Eu masco durante todo o dia, exceto por alguns poucos minutos na hora do almoço, quando tiro-o da boca e o guardo atrás da minha orelha”. Preceitos higiênicos à parte, muitas crianças de antigamente já fizeram algo parecido.


Design foi um dos que marcaram a infância nos anos 1970 e
1980. Imagem: Reprodução

Os lançamentos seguem as tendências de cada década: entre as balas, o Halls surge na década de 1970 e responde por metade das vendas da Adams em 1973, desbancando o tradicional drops Dulcora, frutado e doce. Com foco no público adulto, o produto diet Trident entra no mercado em 1981, junto com a moda das academias de ginástica. No ano seguinte, o sucesso é o Bubbaloo, ainda nas lojas atualmente.

O Brasil é hoje o terceiro mercado consumidor, com venda de 18 milhões de unidades por dia. Uma das curiosidades que o autor do livro apresenta: o país conta com 600 mil pontos de venda, mas 80% das compras acontecem em padarias e 40% são para adultos. A Adams, controlada pela Kraft Foods Brasil desde 2010, continua no topo, porém enfrenta concorrentes que prezam pela rotatividade de sabores e marcas.

E o chiclete sem açúcar, afinal, limpa os dentes como promete? “A mastigação, a produção de saliva e o atrito da goma nos dentes podem limpá-los superficialmente, mas o chicle não remove a placa bacteriana. Por isso, a escova e fio dental são indispensáveis”, explica o site da Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Cacau, Amendoim, Balas e Derivados (Abicab).

AMERICAN WAY OF LIFE
O autor associa o consumo do doce ao deslumbramento da classe média brasileira com o modo de vida dos EUA no pós-guerra. A publicidade também tem culpa no cartório: a revista Seleções do Reader’s Digest, cuja divulgação fazia parte de uma estratégia anticomunista na América Latina, com apoio da Fundação Nelson Rockefeller, chega aqui em 1943, com tiragem de 500 mil exemplares. A Adams era anunciante regular.


Figurinhas estão entre os brindes mais comuns do produto. 
Imagem: Reprodução

O interesse, porém, era notado. “Como dar crédito a um país cujos habitantes tinham o hábito de passar horas por dia mastigando um pedaço adocicado de borracha como animais ruminantes? Mas isso não era o mais grave. Esse ritual tido como abominável se tornara uma poderosa máquina de fazer dinheiro junto às crianças. Mas a indústria americana não quis nem saber e começou a difundir suas gomas para todo o planeta”, conta Gonçalo Junior.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a goma ganha ares de rebeldia (sem causa, muitas vezes). A ameaça da bomba atômica paira sobre os jovens da época, que também precisam lidar com o fantasma do desemprego. No cinema, a geração é retratada por atores como Marlon Brando em O selvagem (The wild one, 1953) e James Dean, em Juventude transviada (Rebel without a cause, 1955).

A influência ianque vai aos poucos tomando conta, como descreve Gilberto Freyre, em Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. Apesar de ter sido lançado em 1939, o livro traz um anexo de 1968 em que o autor enumera os doces populares mais vendidos no Mercado de São José, no Recife da época, e por ambulantes: o violão, o peixinho e a chupetinha de açúcar, hoje artigos raros.


Uma das formas lúdicas da goma de mascar é o chicle de bola. Imagem: Reprodução

“A alféloa (...), o alfenim, a farinha de castanha de caju, o suspiro, a castanha (...) confeitada – doces para os meninos de tradicional fabrico caseiro – já não têm, para os pequenos nordestinos, a sedução de outrora: confeitos, bombons, balas, pirulitos de fabrico industrial e a própria chewing-gum vêm substituindo esses velhos doces, os primeiros de origem árabe, os de castanha de caju, caracteristicamente luso-tropicais”, afirma.

A crítica não ficou restrita à Sociologia. Na música, o compositor baiano Gordurinha satiriza a americanização dos costumes na canção Chiclete com banana, sucesso na voz de Jackson do Pandeiro, em 1958, e regravada por Gilberto Gil, em 1972, no disco Expresso 2222. A expressão também virou nome de uma revista de quadrinhos em 1985, que contava com nomes como Angeli, Laerte e Glauco.

Sem tanta crítica, a goma segue aparecendo na música brasileira, em canções como Infinita highway (1987), dos Engenheiros do Hawaii (“Na boca em vez de um beijo, um chiclete de menta/ E a sombra de um sorriso que eu deixei/ Numa das curvas da highway”), e Elizabete no Chuí (2004), de Arnaldo Antunes (“Gastando olho na novela das sete/ Haja saliva pra tanto chiclete”). Agora, já faz parte do cotidiano.

“Com a globalização da economia, a partir da década de 1980 e a vinda de novas gerações, diluiu-se o ranço da goma como um dos ícones do imperialismo norte-americano. O chiclete se tornou pop, foi adotado por adolescentes de todo o planeta”, explica Gonçalo Junior. Só volta a ser vilão muito de vez em quando: até 2002, era proibido em Cingapura para evitar sujeira na rua. Poucas coisas grudam tanto quanto chiclete. 

RENATA DO AMARAL, jornalista, webdesigner e doutoranda em Comunicação.

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