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Osman Lins: Opressão do trânsito sobre o indivíduo

Montagem de 'Auto do salão do automóvel', texto escrito há 43 anos, discute questões caras à complexidade das grandes cidades

TEXTO André Valença

01 de Outubro de 2012

Texto contou apenas com uma montagem, em 1970, pelo TPN

Texto contou apenas com uma montagem, em 1970, pelo TPN

Foto Marcus Ramos/ Divulgação

Carro, bicileta, ônibus, moto, pedestre; mobilidade, planejamento; mão dupla, mão única, binário, contramão; ciclovia, ciclofaixa, ciclorrota; fluxo, sinalização... Há quem esteja com algumas dessas palavras entaladas na garganta, tanto que vêm sido evocadas nos debates atuais sobre o bem-estar nas grandes cidades. Também há quem as vomite, buzinando-as verborragicamente, como se fossem os únicos conceitos relevantes no mundo. São incontáveis, de fato, os jargões de trânsito – se chamamos aqui de “jargões”, é porque a discussão se estendeu tanto, que essas palavras já deixaram de ser simples “termos” –, e, mesmo que involuntariamente, a vida nos centros urbanos mais do que nunca tem estado indissociável deles, tanto que até parece difícil imaginar quando foi que a preocupação com o tema começou.

Certamente, há 40 anos, o debate estava longe de ser o que é hoje, daí o grupo do projeto de pesquisa teatral Transgressão em Três Atos manifestar curiosidade por uma peça pouco acessada de Osman Lins, de 1969, intitulada Auto do salão do automóvel. Se não profético, o texto revela a sensibilidade do autor no que diz respeito aos possíveis desdobramentos resultantes do descuido com o planejamento urbano, e no poder opressor que o trânsito das grandes cidades pode exercer sobre o indivíduo. Retomando essa obra bem particular do dramaturgo, os pesquisadores produzem a segunda montagem de que se tem registro da peça, com direção de Kleber Lourenço e assistência de Luís Reis. No elenco, os atores Stella Maris Saldanha, Roger Bravo, Zé Ramos, Alexandre Guimarães e Evandro Lira encarnam diversos personagens. A nova versão estreou em 15 de setembro e fica em cartaz até 21 de outubro, no Teatro Hermilo Borba Filho.

Auto do salão do automóvel faz parte de uma tríade publicada por Osman entre 1969 e 1970, quando, há alguns anos morando em São Paulo, criava de maneira mais experimental. Os outros dois textos sãoMistério das figuras de barro, encenado pela primeira vez em 1974, com direção do próprio Osman; e Romance dos dois soldados de Herodes, que discute a ditadura militar, apoiado alegoricamente no episódio bíblico do extermínio de crianças por ordem de Herodes.

A primeira montagem de Auto do salão do automóvel foi produzida em 1970, como iniciativa do Teatro Popular do Nordeste (TPN), movimento fundado em 1960 e idealizado pelo dramaturgo Hermilo Borba Filho. A princípio, Hermilo dirigiria o espetáculo, mas, como estava doente, passou o bastão para o ator e diretor José Pimentel, que produziu a peça Buuum, esta, composta por dois textos: o de Osman e Enquanto não arrebenta a derradeira explosão, de José Bezerra Filho.

O resultado do trabalho de Pimentel gerou um atrito entre o diretor e o autor, que trocaram acaloradas correspondências sobre o conceito da peça e a maneira mais apropriada de encená-la. O conflito foi desencadeado por uma carta enviada por Osman a Hermilo, desabafando: “Concluí, da conversa com o Pimentel e do ensaio, que vi, que ele está bastante errado na sua compreensão da peça. Seria quase impossível estender-me suficientemente a respeito, mas vou ver se consigo tocar ao menos nos pontos principais”, escreve. A partir daí, passa a relatar ponto a ponto cada uma das alterações, ou interpretações do texto, que não o agradaram na versão que viu. Um desses principais aspectos é o fato de Pimentel ter transposto o desenrolar da peça de São Paulo para o Recife (que se configurava urbanisticamente de maneira diferente, em relação aos dias de hoje). “Vejo a ação da peça decorrendo numa cidade de 8 milhões, com mil dificuldades a esmagar o indivíduo. Nunca uma cidade como o Recife, marítima e, apesar do movimento, doce sob muitos aspectos. (...) não tenho a mínima vontade de ser visto como um sujeito que, há oito anos fora do Recife e vivendo em S. Paulo, escreve uma peça sobre o trânsito no Recife, numa espécie de fixação inadmissível”, manifesta-se.


Um dos méritos do texto é discutir o contexto político da época por metáforas.
Foto: Marcus Ramos/Divulgação

Hermilo lê a carta em voz alta para o grupo que montava a peça – diretor e atores – e pede para que Pimentel escreva a Osman justificando suas intenções. “Cada macaco no seu galho”, começa a argumentação do diretor. “Você é um literato, escreve bonito e bem, mas não pensa no texto em função de um espetáculo teatral. E é sob este prisma, o de espetáculo, que eu vejo qualquer texto de teatro. E não se vá dizer que me faltam condições para isso, como ator e diretor atuante, a experiência e tarimba resultantes de um longo trabalho, não gabinetes fechados mas em contato com o palco e com o povo, falam por si sós (…) Osman amigo, literatura é uma coisa; teatro vivo é outra bem diferente e v. sabe disso”. Ao comentário de Pimentel, Osman defende mais uma vez seu texto: “Só vendo, eu poderia dizer se sua concepção de espetáculo comunica mais do que a minha. Posso no entanto afirmar que ela não faz o meu texto mais avançado, e sim submisso”.

Ao que tudo indica, por esses registros epistolares, na concepção de Osman, Pimentel também avançou o sinal na comédia. Nas fotos da montagem – expostas no hall do teatro, junto com cópias das correspondências trocadas – vemos os personagens em figurinos exagerados, interagindo com parafernálias automobilísticas, tudo com um ar farsesco. Mas é escusável a interpretação cômica, já que o humor satírico é o ponto forte da peça, a despeito de o lado dramático ter um papel muito importante. É que Auto do salão do automóvel se trata de um daqueles textos que só podem ser descritos com adjetivações dúbias – irônico, absurdo, esquizofrênico –, apontando diversos caminhos de entendimento.

Outra particularidade é o formato da peça, não dividida em três atos, como de costume, mas em cinco partes (quase esquetes), e não havendo uma narrativa precisa e lógica, mas apresentando, em cada parte, personagens diferentes em situações distintas, apesar das motivações parecidas. Esses são, na sua maioria, figuras não identificadas pelo nome, mas pela função: guardas de trânsito, pedestres, ciclistas etc. Em decorrência disso, ficamos diante de personagens cujo principal “estar no mundo” é o desempenho do seu papel social. E não obstante transmitirem eloquentemente esse discurso de classe, triunfam também ao levar para o espectador um diálogo subjetivo/interior bem elaborado. São pessoas com o destino traçado, controladas por uma força maior e condenadas à inescapável solidão dos centros urbanos, mas mesmo assim são indivíduos, com anseios e a ilusão latente da escolha.

Segundo o diretor Kléber Lourenço, essas características advêm da predileção estética de Osman, embasada no teatro épico, e também nas referências aos autores do teatro do absurdo, como Brecht e seu precursor Erwin Piscator. “Osman brinca com a forma lírica e dramática em cima da estrutura épica”, comenta. “Tem personagens que conversam, outros que só narram, outros que apresentam um universo poético muito particular. Então, já é mais próximo dos romances. Osman primava muito pela palavra, a arte deveria ser um local a serviço da palavra. Queria um espetáculo no qual o texto pudesse ser escutado, mas também lido de alguma maneira”, explica.

Para a nova montagem, Kléber acredita ter sido mais fiel ao original. “Osman ficou um pouco assustado com a interpretação de Pimentel. Ele era escritor, Pimentel, encenador. O desafio para mim foi tentar entender esses dois lados: o escritor querendo ver a literatura no palco – e esse é o trunfo de Osman, as palavras –, e, ao mesmo tempo, o encenador querendo fazer com que essa literatura virasse ação. Como manter esses dois desejos?”, põe em questão. “É evidente que fizemos algumas adaptações” – o espetáculo é apoiado por projeções de imagens e sonoplastia moderna – , “mas o nosso, por exemplo, acontece em São Paulo, como no texto. No entanto, eu acho que isso já está muito diluído, o Recife está passando por um processo de transformação urbana grande, caminhando para um não lugar, como todas as grandes cidades do mundo, cada vez mais semelhantes. O texto acaba sendo universal, e toca numa mesma realidade social”, comenta. 

ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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