Arquivo

Acordar cedo

TEXTO José Cláudio

01 de Novembro de 2012

Casa de José Cláudio retratada pelo pintor Antônio Mendes. Óleo sobre tela, 50 x 60 cm, 2002

Casa de José Cláudio retratada pelo pintor Antônio Mendes. Óleo sobre tela, 50 x 60 cm, 2002

Imagem Reprodução

Coqueiros, vocês dormem ao relento e sorriem às minhas, ainda escuro, manhãs quando me acordo cedo antes do sol, oscilam docemente pintando o azul que começa a clarear, esse azul intuído, antes de o sol nascer. Vocês se levantam antes, aguardando-o, enquanto os passarinhos ainda não se acordaram. Sei que ninguém aguenta mais esse tipo de literatura: mas que jeito, Fernando Monteiro? cada qual como Deus o fez. Espero o primeiro sanhaçu, seu canto rasga-manhã, cortejo de rouxinóis e sibitos. Agora, não, mas quando menino, as risadas das garrinchas, das casacas-de-couro. Bem-te-vi inda tem, meu mini-quintal pegado com o quintal das freiras do Monte, Olinda. E rolinhas, andando ligeirinhas pelo chão da rua, olhadas pelas lavandeiras que pulam de pezinhos juntos. Mas isso é mais tarde, sol quente.

Coqueiro, coqueiro de quintal, cada um é um, não havendo coqueiros e sim coqueiro, de um em um. Só não têm nome, mas têm: o de detrás da sucupira, os dois mais de cima, os três ou mais do lado da casa de Abel, o de junto da macaibeira, o da casa de baixo, que eram dois, um foi derrubado e este que ficou não esquece o outro, suas palhas se voltam na esperança de encontrá-lo, como procura o cajueiro, também derrubado, que lhe fazia companhia: sinto falta dos seus cajus amarelinhos, paridos já inteiros e amarelos pulando da noite de inverno para a manhã de verão. E tem os galos. E o zurro do jumento. Urros de boi, vaca, hoje extintos por aqui: quando vim morar, há 40 anos, passava um rebanho de vacas subindo a ladeira, uma pequena boiada, balançando as cabeças num lento saudar, vacas zebuínas de toda cor, às vezes um urro bem na minha frente, mõ... As orelhas balançando. Alguns chocalhos.

Pronto: o sanhaçu cantou, o longo traço incisivo do trinado em ponta seca e logo as rebarbas da algazarra de um bando de jandaias. Em plena Olinda! Só faltou o coro das maria-j’é-dia. Mas já é dia. Pode olhar no relógio que são cinco horas. Já dá para ver as cores do quadro no cavalete. Ao trabalho!

Um dia, para ser perfeito, começa no dia anterior, isto é, na noite do dia anterior, você indo dormir cedo. Oito horas da noite, cama. Lembro de uma frase de Pablo Casals, o violoncelista espanhol, lida numa dessas revistinhas Duplex, nº 136: “Há oitenta anos eu começo o meu dia da mesma maneira; e isso não significa uma rotina mecânica, mas sim algo essencial para a minha felicidade”. Como fiz oitenta anos recentemente, talvez isso me tenha tocado. Lembro também que o poeta Augusto Frederico Schmidt acordava às quatro da manhã, sua hora de eleição, lia, escrevia, e era um homem de mil atividades, além de poeta grande, culto: empresário pioneiro de supermercado, dono de editora (foi quem primeiro editou Graciliano Ramos). Deve ter sido a hora em que se sentia tranquilo. Os monges se acordam no meio da noite para rezar. Dizem que Leonardo da Vinci só dormia três horas. Na Itália ouvi: “O homem deve dormir seis horas; os preguiçosos, sete; oito, nunca”.

Me lembro de um velho, mineiro, que morava no Km 33 da Sorocabana, entre Jandira e Itapevi, São Paulo, onde eu arranchava em casa do meu tio Manoel. Certo dia cheguei às onze da noite, por aí. Lá não tinha luz. Aliás não tinha nem estação: a gente pulava do trem no capim ou no barro. A gente se guiava pelo faro. O 33 era um arruadinho; as casas, de taipa; o chão, barro; na rua como dentro das casas. Ao passar pela casa do mineiro, o cuviteiro aceso dentro de casa recortava no vão da portinha estreita a figura encolhida, em pé, os braços cruzados, escorado no canto da porta. Exclamou baixinho mas dando para escutar: “Zezinho, dormiu na rua hoje!” Respondi que não, que justamente estava chegando para dormir. Ele se surpreendeu: “E que horas são?” Tornei: “Ainda não deu meia-noite”. Ele: “Não? Pois eu já acordei e já tomei café!”.

Os coqueiros, quando se despem de sua camisola noturna, se tornam “outra pessoa”, digamos assim. E cada coqueiro, que digo eu, cada folha, tem sua fisionomia particular e que muda a cada momento, tanto desenho quanto luz e consequentemente cor. Há, ainda, antes da claridade, um ciciar de plantas e insetos que em vez de audíveis procuram urdir o silêncio. E que vai desaparecendo à medida que o dia clareia, antes mesmo de se definirem os sons, de perto ou longe. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

Publicidade

veja também

O design dos não designers

Um olhar sobre o tempo dos trambolhos

Os autores no centro do espetáculo