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“Toca bem quem tem cabeça boa”

Violonista Fábio Zanon defende que jovens intérpretes devem aliar formação pessoal e acadêmica, e que projetos sociais são mais eficientes na difusão da cultura musical

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Novembro de 2012

Fábio Zanon

Fábio Zanon

Foto Edgard Gonzalez/Divulgação

Conversar com um intérprete de música clássica geralmente implica falar de um projeto novo – CD, DVD, turnê, participação em festival etc. – ou de uma data redonda, recapitulando seus principais feitos artísticos, neste caso. Em 2012, Fabio Zanon completou 30 anos de carreira e lançou um álbum com peças contemporâneas, junto com o flautista Marcelo Barboza, porém decidimos entrevistá-lo não por essa razão. Também não por sua discografia ou sua atuação como professor na Royal Academy of Music, de Londres, cujo corpo docente inclui duas lendas do violão clássico mundial: John Williams (homônimo do compositor de Hollywood) e Julian Bream.

Tratamos de assuntos fora de pauta na grande mídia, mas de todo modo pertinentes, a começar pelo vasto (e desconhecido) repertório violonístico brasileiro. E, ao adentrarmos outros tópicos, como o apoliticismo da maioria dos músicos, as dificuldades de apoio para o aperfeiçoamento interpretativo e a necessidade de atuação em outras frentes (como produção e agenciamento), Zanon mostrou-se cada vez mais contundente, colocando abaixo lugares-comuns e questionando o status quo de diferentes setores musicais e culturais.

CONTINENTE Após o final do programa Violão com Fábio Zanon (veiculado na Rádio Cultura FM de 2006 a 2009), você ainda se dedica à pesquisa do repertório nacional para o instrumento?
FABIO ZANON Agora estou mais preocupado em tocar o que pesquisei. Tenho incluído em meu repertório várias obras que não conhecia antes do programa. Fico contente em ver que a série serviu como inspiração para outras pessoas pesquisarem o violão brasileiro em seus trabalhos de mestrado e doutorado.

CONTINENTE Dado o repertório com o qual você teve contato nessas pesquisas, quem, dentre os compositores e intérpretes brasileiros, ofereceu contribuições universais para a técnica e a escrita composicional violonística?
FABIO ZANON É uma pergunta de muitas faces. Se pensarmos no mexicano Manuel Ponce, tirando sua posição de dentro da cultura musical de seu país, sua contribuição universal é ínfima. Mas, dentro do repertório do violão, ele é obrigatório. Acho que, indiscutivelmente, Villa-Lobos é um autor universal, com ou sem obra de violão. No repertório para o instrumento, eu agregaria Francisco Mignone e Marlos Nobre. Dos mais jovens, acho que Alexandre de Faria, Arthur Kampela e Marcus Siqueira deram saltos excepcionais na maneira de se escrever música de concerto para violão. Entretanto, fora do país, existe um interesse muito grande pela música que prolonga a tradição nacionalista. Por isso, Sérgio Assad é, com razão, o brasileiro mais tocado fora do Brasil, depois de Villa-Lobos. Sérgio é um fenômeno, além de compor bem, é integrante do duo que estabelece o parâmetro internacional. E vejo uma tendência forte em se incluir o violão solo de MPB em programas de concerto. A toda hora vejo concertistas fora do Brasil tocando Paulo Bellinati, Marco Pereira, e acho que isso tende a aumentar.


Foto: Divulgação

CONTINENTE Após várias gerações de bons intérpretes nacionais, quais os violonistas que estão firmando (ou poderão firmar) o nome do país nas salas de concertos mundiais?
FABIO ZANON É difícil fazer um prognóstico. Depende muito de quanto o jovem alimenta seu talento, a maneira como conduz seus estudos, sua carreira. Acho que é a hora dos duos. O Brazil Guitar Duo e o Duo Siqueira-Lima são, para mim, os melhores duos do mundo depois do Duo Assad. Tem um rapaz da Bahia morando na Suíça, João Carlos Victor, que provavelmente é o mais talentoso da geração sub-30; boto muita fé nele. Por outro lado, o cenário de concerto tem mudado muito. Hoje, se a gente procurar, vai ver que o Yamandu Costa toca como solista de orquestra mais até que a maioria dos concertistas clássicos. Daí, nesse setor, o Brasil é uma grande força.

CONTINENTE E qual o caminho para quem quer obter um aprimoramento musical de excelência?
FABIO ZANON Acho que a primeira coisa é cuidar da cabecinha. Toca bem quem tem cabeça boa. Tem de se instruir, de fazer um investimento pessoal em cultura e buscar uma condição psicológica e emocional para atuar em alto nível. As duas coisas andam juntas, na verdade. Não conheço nenhum grande intérprete de miolo mole. Acho que muita gente se esforça para estudar no exterior, mas não se esforça o suficiente para se tornar alguém melhor. Uma vez esgotadas as possibilidades aqui, acho que a pessoa deveria tentar descobrir onde estão o curso e o professor mais adequados. Muitas universidades nos EUA oferecem bolsas e ajuda de custo para alunos de alto nível. Algumas instituições na Alemanha, Holanda e Suíça, também. Uma boa quantidade de escolas na Europa Central é praticamente grátis. Nesse caso, acho que o aspirante a aluno poderia trabalhar com afinco no Brasil por uns dois ou três anos, para financiar sua estada, ou ao menos o primeiro ano dela, na Europa. Hoje, no Brasil, há várias pessoas iluminadas que financiam os estudos de quem possui potencial excepcional, mas claro que isso depende de sorte, indicações e contatos, e capacidade de se comunicar e evidenciar seus talentos. Nem todos têm isso. Talvez fosse interessante criar uma fundação, um pool de empresários que poderiam fazer essas doações a candidatos selecionados por uma banca de notáveis. Seria interessante ainda ter uma modalidade de bolsa que contemplasse aquele que vai se beneficiar ao estudar num conservatório ou numa escola de belas-artes, sem título de doutorado.

CONTINENTE O repertório violonístico – diferente do de outros instrumentos solistas do universo erudito – tem uma relação intrínseca com fontes populares e folclóricas em que seus compositores beberam. Mas, dentre os que optam/optaram por uma linha estética sem ligações telúricas, quais valeriam a pena ser destacados em programas de grupos de câmara e orquestras sinfônicas?
FABIO ZANON Acho que hoje as fontes telúricas são outras. Veja, por exemplo, o uso que o Thomas Adès faz da house music em sua Asyla. O repertório de violão dos últimos 40 anos é incrível. Isolar uma ou outra coisa seria até injusto. Eu destaco a extensa obra de Takemitsu, que tem três concertos incríveis; os concertos de Benjamin Dwyer, Alexandre de Faria, John Corigliano, Hans Werner Henze, Luis de Pablo e Luca Francesconi. Quando falamos de música de câmara, se levarmos em conta a guitarra elétrica, a quantidade de obras espetaculares é imensa e, normalmente, para formações bastante inusitadas. Acho que a primeira formação inusitada é o Sexteto místico, de Villa-Lobos, e a partir dali tem de tudo. George Crumb, Tristan Murail, Boulez, Elliott Carter, Harrison Birtwistle, Magnus Lindberg, Olga Neuwirth, é uma quantidade incrível de grandes obras de câmara que usam violão ou guitarra elétrica.


Ivete Sangalo. Foto: Divulgação

CONTINENTE Para um violonista, no Brasil, seria mais fácil empreender recitais solo e subsistir do violão, dado o binômio repertório/aceitação do instrumento, ou as dificuldades são as mesmas que outros solistas enfrentam?
FABIO ZANON Hoje, o violão se organiza ao redor de clubes e sociedades de aficionados. Existem centenas de sociedades de violão e cerca de 200 festivais desse instrumento ao redor do mundo. Há 30 anos, existiam uns 20. É a única área da música clássica que teve um crescimento dessa envergadura. A explicação para isso é simples: as pessoas que administram teatros, séries de concertos, não atentaram para quem quer ouvir violão. Não programam e, nas raras vezes que o fazem, geralmente programam mal. A solução foi se insular. Isso tem acontecido no Brasil também. Não acho que seja possível subsistir exclusivamente de dar concertos. Seria uma iniciativa pioneira. O que acontece é que as orquestras e séries estabelecidas ainda tratam o violão como uma coisa um pouco especial e diferente, e o planejam com pouca frequência.

CONTINENTE Por que a música erudita (talvez ao lado da dança clássica) ainda é considerada terreno da arte pura, no qual compositores ativistas são raridade e os instrumentistas são despolitizados e dedicados ao próprio labor, tal qual Lang Lang? Essa rejeição a se levantar uma bandeira parece apagar da memória os conflitos políticos em que se envolveram Sibelius, Smetana, Wagner, Verdi e outros. A música erudita pode voltar a ser um veículo para uma causa social aliada a preocupações estéticas pertinentes?
FABIO ZANON Acho que, num ambiente dominado pela cultura de massa e todas as suas implicações, sejam elas música de quinta categoria, McDonald’s ou desumanização do trabalho, só o fato de nos dedicarmos a Mozart já é um posicionamento político de resistência. As questões de autonomia nacional que motivaram Sibelius ou Verdi, ou mesmo Villa-Lobos, não existem da mesma forma hoje. Talvez um Leo Brouwer, em Cuba. Aqui, no Brasil, temos o Jorge Antunes, mas digamos que sua obra tem uma repercussão mais limitada que a de um cantor de MPB. Os meus colegas estão dedicando suas vidas à integração social das crianças pela música em projetos como o Guri, o Instituto Bacarelli (ambos em São Paulo) ou o Neojibá (na Bahia). O que fazem, e digo realmente fazem, as estrelas da MPB, como Chico Buarque e Caetano Veloso, além de darem apoio ao candidato X ou Y? Por que essa cobrança em cima de nós? Já não basta dar a oportunidade às pessoas de terem sua vida amparada por Bach ou Beethoven?

CONTINENTE Músicos que gostariam apenas de se dedicar à sua atividade são a regra, mas não seria importante que eles também desenvolvessem habilidades que auxiliassem a própria carreira, como produção, agenciamento, captação de recursos e marketing pessoal?
FABIO ZANON Em teoria, sim, acho que é preciso ter ao menos alguma noção de como fazer isso. Porém, também acho que ninguém cobra de um publicitário que tenha dom musical. A toda hora reclamam dos músicos de orquestra, que deveriam saber tocar música popular, mas alguém sugere que a Ivete Sangalo deveria ser capaz de tocar Tchaikovsky lendo partitura? Acho que cada um tem sua especialidade. As escolas deveriam orientar os estudantes sobre isso, mas quando se chega num certo ponto é melhor entregar na mão de alguém que entende do assunto. Acho que quem tem as duas especialidades é a pessoa qualificada para trabalhar com produção e agenciamento; talvez não para subir sozinho no palco e dar um recital de 90 minutos de música densa.

CONTINENTE A volta do ensino musical nas escolas implicará uma exigência mais disseminada por críticas abalizadas na imprensa ou isso é um problema interno dos cadernos culturais?
FABIO ZANON Não consigo ver uma relação tão direta entre uma coisa e outra. Essa obrigatoriedade vai formar melhores ouvintes? Eu, pessoalmente, acho que o poder de disseminação dos projetos sociais é maior. A música obrigatória nas escolas foi implantada de uma maneira caótica, sem planejamento e sem uma noção clara de sua missão. Não há profissionais treinados para isso na quantidade necessária, e não há consenso sobre o que será ensinado e qual seu objetivo. Tem toda a cara de uma coisa que, daqui a 10 ou 15 anos, será derrubada por outra lei. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, mestre em Comunicação.

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