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Alcir Lacerda: Exercício de documento, memória e identidade

Livro compila 50 anos de trabalho do fotógrafo enfoca três dos temas recorrentes em seu acervo: o Recife, o litoral, o sertão – seus hábitos e gentes

TEXTO José Afonso Jr.

01 de Dezembro de 2012

Foto da Avenida Guararapes, centro do Recife, nos anos 1970

Foto da Avenida Guararapes, centro do Recife, nos anos 1970

Foto Reprodução

O que faz um livro de fotografia se destacar em meio a tantos outros é, de certo modo, um pequeno mistério. De modo geral, livros que são lembrados como referências orientam caminhos de produção, ao passo que recuperam percursos de temas ou do próprio fotógrafo e estabelecem com o leitor uma relação de significado singularizada.

Causa espanto, portanto, como certas lacunas se formam. Durante mais de meio século, Alcir Lins Carneiro Lacerda, conhecido no meio da fotografia como Alcir Lacerda, e carinhosamente chamado de “Seu Alcir” pelos amigos e colegas de trabalho, fez da arte de fotografar o seu ofício. Numa época em que a fotografia especializada em torno de temas específicos ainda não tinha bases tão demarcadas como hoje, Alcir Lacerda devotou o seu tempo, o olhar e profissão ao registro documental, urbano, da natureza, publicitário, social e científico, não necessariamente nessa ordem.

Em entrevista de 2009, ao grupo de estudos de fotografia da UFPE, ele sintetizou: “Em fotografia eu fiz tudo, menos aquele trabalho de vigiar a mulher dos outros. Tinha fotógrafo que fazia, mas eu nunca fiz não...”. Confirmava sua polivalência, ao passo que dava, ao mesmo tempo, um fio de ética condutor do seu trabalho. Esse leque de especialidades foi, em parte, recuperado pelo lançamento de Alcir Lacerda – fotografia, pela Cepe Editora, em outubro último. Fazendo justiça a um percurso, que foi, antes de qualquer coisa, de fotógrafo. Quis a natureza, no entanto, que Alcir deixasse este mundo em setembro deste ano, um pouco antes do seu aniversário de 85 anos e do lançamento do livro, do qual chegou a ver uma prova de impressão e disse: “Isso está bonito!”.


Alcir Lacerda posa com câmera de grande formato. Foto: Reprodução

É verdade que um livro de fotografia pode ser um passeio. Por tempos e lugares. É possível olhar para o livro de Alcir Lacerda acompanhando o discurso proposto pelos editores e curadores da obra, que, com precisão, souberam identificar os três núcleos mais fortes do seu trabalho. O litoral, com destaque para a praia de Tamandaré – lugar de referência emocional de Alcir; a cidade do Recife, ainda com subúrbios de casas, não tomada por edifícios de 40 andares, sem trânsito infernal e sem shopping centers de 400 lojas; e o interior, retratado como uma síntese entre a natureza e o homem, onde um forja o outro, expondo identidades, contradições e imutabilidades.

Se é óbvio que a fotografia atua no mundo como um signo de testemunho, o fardo documental não é a única função de que ela dá conta. Assim, é possível olhar o mesmo livro como em exercício triplo: de documento, memória e identidade. Ao se empreender uma segunda leitura do trabalho de Alcir Lacerda, temos um conjunto de imagens em que há preocupação em traduzir a paisagem e o homem que vive nela de modo centrífugo, partindo do particular existente no pescador, no artesão, no vaqueiro e nos vendedores de rua, para o geral, para um mundo mais amplo, que seja capaz de problematizar os tempos e lugares de modo menos estereotipado e mais universal. É assim que o rigor das composições descritivas e, ao mesmo tempo, plásticas, presentes no livro, sobrevivem e se adequam ao que documentam. Nada mais diferente e antagônico ao comportamento centrípeto das câmeras fotográficas atuais, cada vez mais apontadas para o eu, voltadas para a autoimagem.

A maior parte das fotografias do livro são registros realizados entre as décadas de 1950 e 1970. Fica claro, numa interpretação mais atenta, um entretempo capaz de detectar cenários em processo de transformação. Um Recife que abandonava, parcialmente, vestígios de um passado articulado com a tradição, coexistindo com os traços de uma modernidade nascente. Fotografias de praias que obedecem menos à lógica do instante e mais à da contemplação, de uma ética do tempo capaz de fazer-nos perceber o vento nas folhas de coqueiro. De encontrar, em pleno século 20, no interior e no Sertão, relações infra-humanas, que gritam. Alcir ensinava: o fotógrafo tem que aprender a ver, antes de fotografar.


Concentração de embarcações para procissão de São Pedro no Rio Capibaribe.
Foto: Reprodução

REVISÃO
Para além do papel de documentação fotográfica, mas não o negando, o livro realiza um preciso movimento de revisão. Esta, talvez, a função mais nobre da memória, ao passo que se recupera o documento, atualizando-o para a contemporaneidade. Esse exercício é capaz de trazer de modo muito nítido as dinâmicas de transformações nos lugares e modos de vida memorizados na fotografia de Alcir. Em outras palavras: onde foi parar o Recife presente no glorioso preto e branco de Alcir Lacerda? É verdade que entre o que foi perdido e o que deve ser mudado, há opções, escolhas e perspectivas de toda espécie. O que não muda, como dado visual para subsidiar essas discussões, é a presença de uma fotografia capaz de alcançar a dimensão do que retrata e tensionar o problema de modo que ele sobreviva ao tempo.

Qualquer processo de construção de identidade, seja nos sujeitos, na história ou nas fotografias, ata o que se foi e o tornar-se, estabelecendo um pertencimento tanto ao presente quanto ao futuro e passado. A fotografia, ao constituir-se a partir de algo preexistente, problematiza os processos como vindos de algum lugar, ou tempo. Desse modo, ao contrário de ser fixa e essencialista, como um monumento, ela está em constante transformação, permitindo ser revisada e atualizada permanentemente. Vivemos um momento, no entanto, em que as fotografias de Alcir Lacerda voltam à luz e se encontram com um mundo atravessado por identidades múltiplas, transitórias e feitas para serem consumidas e descartadas rapidamente.

Ao contrário de soar anacrônica, a fotografia “de como a vida era e estava” parece nos conduzir para um lugar e tempo, um país. O país da fotografia, só possível nas imagens. A passagem para tal lugar ocorre apenas com uma revisão da memória como algo vibrante. Seria um lugar onde a História e a Geografia seriam ensinadas em imagens, em que o homem, a atividade e o lugar se mostrariam de modo inter-relacionado, em que os processos de mudanças, as tragédias e singularidades teriam sua representação através de uma lente olho de peixe, numa foto aérea, ou numa objetiva normal. Onde o sol, sempre, bate forte sobre construções e ruínas.


Vista do Porto do Recife exibe sofisticada composição e rico preto
e branco. Foto: Reprodução

O livro traz, também, um questionamento: como lidamos com a parcela de esquecimento que existe nos processos e cenários que vivemos e construímos, sem, contudo, termos controle sobre os seus desdobramentos? É incorreto dizer que se trata de um trabalho saudosista. É exatamente o contrário. Ao nos expor ao processo de revisão, o conjunto de fotografias de Alcir Lacerda nos entrega com tranquilidade uma possibilidade de avaliação situada nesse país da fotografia sobreposto à dimensão dos problemas contemporâneos.

Talvez venha dessa tradução entre dois mundos uma parcela da aura de mestre que se forma em torno do nome de Alcir Lacerda e que só é possível com a decantação do tempo. As outras parcelas, muitas, para quem o conheceu, foram construídas dentro de uma contínua relação de desapego, de amparo aos novos fotógrafos, de generosidade e paciência na conversa, qualidades, claro, necessárias a um embaixador do país da fotografia. É improvável e incompleto entender o seu trabalho como algo separado da sua pessoa.

Numa época na qual o processo de formação em fotografia era majoritariamente autodidata, permeado por largas parcelas de erro, muitos dos fotógrafos recifenses só puderam frequentar duas “universidades” de fotografia. Uma se chamava Firmo Neto, ministrando, por décadas, os cursos introdutórios à fotografia, no seu ateliê na Casa da Cultura. A outra era Alcir Lacerda, com as portas abertas da Acê Filmes, no 12º andar do Edifício Inalmar, no centro do Recife, com janelas emoldurando o Bairro de São José.

Hoje, o cenário, os materiais e os horizontes para a formação profissional em fotografia são muito mais amplos na quantidade e qualidade do que eram numa cidade de contexto bem mais periférico. É interessante perceber, ainda, que muitos dos temas presentes nas abordagens de fotógrafos contemporâneos sobre a realidade local, não raro, voltam-se em grande parte para o litoral, as problemáticas urbanas e o sertão/interior como eixos de referência. Justamente os elementos mais inspiradores deixados pelo mestre para serem trilhados, reproblematizados. Temos outros mestres. Mas, de um modo ou de outro, somos todos tributários de “Seu Alcir”. Se ele era uma universidade, o seu livro é o primeiro item da bibliografia. 

JOSÉ AFONSO JR., professor e pesquisador do PPGCOM–UFPE.

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