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Faroeste: Por um (bom) punhado de dólares

Um dos mais antigos gêneros fílmicos passa por renovação de forma e conteúdo, incorporando elementos visuais e sonoros de outros estilos

TEXTO Rodrigo Carreiro

01 de Janeiro de 2013

Em 'Django Livre', o diretor Quentin Tarantino faz sua primeira incursão no faroeste

Em 'Django Livre', o diretor Quentin Tarantino faz sua primeira incursão no faroeste

Foto Reprodução

No prefácio que escreveu para o primeiro estudo acadêmico de fôlego sobre o western, publicado em 1953 por Jean Louis Rieupeyrout, o crítico e teórico cinematográfico francês André Bazin colocou no papel, pela primeira vez, uma questão que rondava as mentes de cinéfilos em todas as partes do mundo: por que razão um gênero fílmico de códigos visuais e narrativos tão rígidos, e tão historicamente circunscrito, exercia fascínio universal? Bazin abordou o assunto, como de hábito, de modo preciso: “Em que as populações árabes, hindus, latinas, germânicas ou anglo-saxônicas, junto das quais o western sempre teve um sucesso constante, são concernidas pela evocação do nascimento dos Estados Unidos, a luta de Búfalo Bill contra os índios, o traçado da estrada de ferro ou a Guerra da Secessão?”. O que havia de secreto e encantador nas epopeias de caubóis e índios capaz de manter o interesse de povos tão díspares, em países cujas culturas pouco ou nada tinham a ver com a história dos EUA, onde invariavelmente todas as histórias desse gênero se passam?

Mais de um século depois de os primeiros filmes do gênero serem lançados (o primeiro western data de 1902), a expectativa criada em torno da estreia de Django livre, oitavo longa-metragem de Quentin Tarantino e primeira incursão deliberada do diretor pelo gênero, comprova que, embora tenha arrefecido nas últimas quatro décadas, a questão formulada por Bazin continua tão viva quando o próprio faroeste. Desde os anos 1960, de fato, se fala da suposta morte desse gênero, mas os lançamentos de filmes ambientados nos EUA do século 19 continuam acontecendo todos os anos, dentro e fora dos EUA. Tampouco dá para deixar de lembrar que as novas gerações de cinéfilos continuam descobrindo e reconhecendo a importância dos grandes mestres do western, como comprova a recepção calorosa à recente exibição do clássico Rastros de ódio (John Ford, 1956) no cinema São Luiz do Recife, em novembro de 2012, quando o encerramento da projeção foi saudado com aplausos entusiasmados.


O filme Rastros de ódio, de John Ford, é considerado um clássico do gênero.
Foto: Reprodução

De fato, o faroeste não apenas continua vivo, mas vários cineastas jovens têm ajudado a acrescentar novos elementos ao conjunto de convenções que compõem o repertório narrativo e estilístico do gênero. Alguns dos mais interessantes filmes norte-americanos lançados neste século 21 estão claramente vinculados à essa tradição narrativa. Bravura indômita (Joel e Ethan Coen, 2010), Pacto de justiça (Kevin Costner, 2003) e Appaloosa – uma cidade sem lei (Ed Harris, 2008) podem não ter vencido grandes prêmios ou feito significativas bilheterias, mas frequentaram várias listas de melhores do ano de críticos respeitados internacionalmente. Edições especiais em blu-ray e DVD de longas-metragens clássicos, como o já citado Rastros de ódio e Onde começa o inferno (Howard Hawks, 1959), lideram listas de mais vendidos entre os filmes lançados para o mercado doméstico, atraindo as novas gerações para o mais antigo dos gêneros fílmicos.

OLHOS PUXADOS
O mais curioso é que bons filmes de bangue-bangue também têm sido realizados fora dos Estados Unidos, como é o caso do australiano A proposta (John Hillcoat, 2009), do japonês Sukiyaki Western Django (Takashi Miike, 2007) e do sul-coreano Os invencíveis (Ji-woon Kim, 2008) . Nos dois últimos, os caubóis de olhos puxados alternam os tradicionais duelos de revólver com lutas de espada coreografadas com capricho. Além disso, grandes produções dirigidas a jovens, como Cowboys & aliens (Jon Favreau, 2001) e a animação Rango (Gore Verbinski, 2001), reafirmam que o gênero continua a renovar-se em forma e conteúdo, incorporando elementos visuais e sonoros oriundos de outros gêneros, como a ficção científica, a comédia e os filmes de samurais.


Clint Eastwood, ator ícone do bangue-bangue, revisitou o gênero, em 1992, com Os imperdoáveis. Foto: Reprodução

Por sinal, reconhecer e respeitar essa renovação iconográfica não deixa de ser atitude fundamental, pois é esse hibridismo que comprova a vitalidade de um gênero fílmico. Um dos principais pesquisadores e teóricos do cinema contemporâneo, Steve Neale, menciona exatamente isso. Para ele, um conjunto de filmes constitui um gênero quando existe todo um repertório de expectativas e convenções negociadas permanentemente entre três atores sociais: a indústria (estúdios e distribuidores), o texto (filmes) e o sujeito (plateia). Em outras palavras, pode-se afirmar que enquanto diretores de cinema continuarem acrescentando elementos à tradição narrativa de um gênero, ele permanecerá vivo – e, em pleno século 21, o western atende a todos esses requisitos.

É claro que, em quantidade, ele parece não ter mais o mesmo apelo de outrora. Um levantamento rigoroso realizado pelo pesquisador inglês Edward Buscombe, em 1988, mostrou que, desde o advento do cinema com som sincronizado, em 1927 (momento histórico em que os gêneros fílmicos foram cristalizados e que constitui formalmente o início do período de maior prosperidade da indústria cinematográfica norte-americana), o western se manteve como o gênero numericamente mais fértil. Cerca de 30% de toda a produção de longas-metragens nos EUA se caracterizavam como tal. Nesse período, cineastas como os citados Ford, Hawks, Anthony Mann e Budd Boetticher revisitaram as convenções do faroeste inúmeras vezes, refinando-as e reinventando-as sem cessar.


Cowboys & Aliens mistura faroeste e ficção científica. Foto: Reprodução

Esse percentual se manteve estável até meados dos anos 1960, quando a quantidade cada vez maior de seriados de televisão ambientados no Velho Oeste reduziu a procura por westerns nos cinemas. Em 1959, havia nada menos que 48 séries em exibição nos três canais abertos dos Estados Unidos. Os estúdios, então, cortaram pela metade a produção de obras do gênero, cuja circulação continuou caindo ao longo dos anos 1970, chegando a 10% de todos os filmes feitos nos EUA. Nesse período, a realização de faroestes foi então deslocada para o eixo Itália-Espanha, onde a demanda por histórias estreladas por caubóis e pistoleiros continuava alta. Surgia a variação do gênero conhecida como spaghetti western, liderada pelo diretor Sergio Leone, que deu ao mundo um total de 550 longas-metragens em 14 anos, um novo perfil de herói (amoral, irreverente, cínico, violento e lacônico) e, pelo menos, um grande astro internacional: Clint Eastwood, que depois se tornaria diretor respeitado e ajudaria a renovar a tradição, lançando filmes como O estranho sem nome (1973), Josey Wales – o fora da lei (1976) e Os imperdoáveis (1992).

SOFÁ E TV
A partir dos anos 1980, quando a produção de faroestes nos Estados Unidos caiu para menos de 10% (esse índice continuou caindo, sendo hoje meramente residual), o gênero mais tradicional do cinema narrativo ganhou fôlego com o surgimento e a rápida expansão do mercado de vídeo doméstico. Nesse momento, com os grandes clássicos à disposição das novas gerações, filmes como Rastros de ódio finalmente tiveram o reconhecimento crítico que mereciam (vale a pena lembrar que John Ford, o maior de todos os diretores de westerns, ganhou cinco Oscars na carreira, mas nenhum deles por um filme vinculado ao gênero que amava, e que o tornou famoso). Do ponto de vista da produção, a sua revitalização ocorreu através de diferentes processos de hibridização: o gênero foi fundido com aventura pós-moderna (Silverado, de Lawrence Kasdan, feito em 1985), romance (Maverick, de Richard Donner, 1994) e comédia (Bater ou correr, de Tom Day, 2000).


A premiada animação Rango utiliza elementos da narrativa do western.
Imagem: Reprodução

Na mesma época, a premiação mais badalada da indústria finalmente reconheceu o western como gênero capaz de gerar obras importantes. Após várias décadas premiando, raramente, apenas os longas-metragens ambientados nas pradarias do Velho Oeste, o Oscar entregou a estatueta de melhor filme a Dança com lobos (Kevin Costner, 1990) e ao já citado Os imperdoáveis, dois anos depois. Mesmo que o Oscar seja reconhecidamente um fenômeno da indústria, sem relação direta com qualidade estética, de certa forma, essas premiações fecharam um ciclo, instituindo ao mesmo tempo uma relação de ambiguidade entre o gênero e seu suposto desaparecimento. Ou seja, embora estivesse vivo, e inspirando dezenas de produções menos badaladas em diversos países, a nostalgia que moveu esses prêmios talvez tenha contribuído para acelerar os anúncios de morte do western que pipocam, de tempos em tempos, por aí afora.

Mas o filme de Tarantino está aí para provar que essas previsões erram o alvo. Ou, parafraseando a célebre frase de André Bazin (um aforismo que, de certa forma, responde a pergunta famosa lançada por ele), o western resulta do encontro de uma mitologia (a norte-americana) com um meio de expressão (o cinema). Daí, só podemos tirar a conclusão de que, enquanto houver cinema, haverá faroeste. 

RODRIGO CARREIRO, jornalista, professor e crítico de cinema.

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