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Farol: Traçando o céu em branco e preto

Construído na década de 1940, situado a 130 m do nível do mar, o guia orienta os navios que chegam ao Porto do Recife e desperta a admiração de jovens e adultos

TEXTO INGRID MELO
FOTOS TIAGO CALAZANS

01 de Fevereiro de 2013

O imponente farol pode ser visto de quase todos os pontos da cidade

O imponente farol pode ser visto de quase todos os pontos da cidade

Foto Tiago Calazans

Nas pinturas de Bajado, surge alvinegro, pareando com a cobrinha coral, um dos símbolos máximos de Olinda: o farol localizado no Morro do Sarapião, Bairro de Amaro Branco, entre as folhagens e o mar verde. Ele foi lembrado nas xilogravuras de J. Borges, no frevo de André Rio, nas agremiações do Carnaval, nos frevos do Bloco da Saudade. Batiza um dos pratos do restaurante Estação Maxambomba; faz partes das letras e memória de Maciel Salú; de contos e lendas urbanas.

O Farol de Olinda pode ser admirado de quase todos os lugares da cidade, nos mais variados ângulos, em meio a casarios e igrejas, traçando de branco e preto o céu da Cidade Alta ou iluminando o horizonte, mesmo nos dias de nuvens carregadas, guiando navios e atraindo a atenção dos boêmios. Tamanha onipresença fez da torre de concreto armado uma personagem folclórica.

Cravado no topo do Morro do Sarapião, a 42 m do solo e a 130 do nível do mar, o Farol de Olinda foi inaugurado em 7 de setembro de 1941. Seu feixe de luz pode ser visto a uma distância de até 46 km. Junto com faroletes e boias, integra o conjunto de sinalização marítima do Porto do Recife.

A torre de oito andares ocupou o lugar de outro farol, erguido em ferro forjado no Fortim São Francisco de Olinda, no ano de 1872, e constantemente ameaçado pelo avanço do mar. Foi instalado no Farol de Amaro Branco um elevador de acesso à lanterna – o primeiro ascensor em um farol no Brasil e, atualmente, o único em pleno funcionamento.

MANUTENÇÃO
Apesar de estar na área tombada pela Unesco como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, o Farol não sofre intervenção da prefeitura. Quem o mantém funcionando e o administra é a Marinha do Brasil, por meio da Capitania dos Portos. É esse órgão que controla o acesso à torre, incluindo o de turistas. Isso tem gerado reclamações por parte da população, já que, por segurança, o farol não está aberto a visitações.

A equipe que trabalha nele é restrita. Três homens se revezam a cada 24 horas e são responsáveis por guardá-lo, fazê-lo operar e cuidar da sua manutenção. Esses profissionais são chamados de faroleiros e são militares que fizeram carreira na Marinha e se especializaram em faróis náuticos. Eles residem com suas famílias em casas no próprio terreno onde fica a torre.

É inviável e perigoso que faroleiros desviem a atenção de seus afazeres para receber os visitantes. O farol é crucial para a segurança e orientação de embarcações que cruzam o litoral do estado. De acordo com a Marinha, somente um convênio com a prefeitura, fornecendo guias e auxiliando na segurança do local, tornaria o Farol de Olinda apto para o turismo. Mas nem sempre foi assim.


É preciso subir mais de 300 degraus para chegar à lanterna que orienta os navios

O universitário Daniel Orange costumava visitar assiduamente o monumento náutico, quando estudante do Colégio de São Bento, nos anos 2000. Segundo ele, o destino era o preferido, junto com seus amigos, quando resolviam fugir de alguma aula. Um pouco antes de anoitecer, precisavam ir embora para não comprometer o trabalho do marinheiro, mas, até lá, era sol, vento e liberdade.

“Era perfeito porque dava para sair por trás do mosteiro, passar pelo Mercado da Ribeira e comprar vinho. Lá, conversávamos com o faroleiro e ele liberava a entrada. Nessa época, a coisa não era rigorosa como é hoje. Trago dessas tardes no farol algumas das melhores lembranças da minha adolescência”, conta.

Felizmente, não era tudo tão burocrático assim ou, talvez, o músico Maciel Salú nunca tivesse feito a música Farol de Olinda, uma das mais bonitas do seu terceiro CD solo, Mundo, lançado em 2011. O farol atiçava a curiosidade do cantor desde criança, ao colorir de branco e preto o céu da cidade. Porém, foi somente quando se tornou adulto que ele foi ver de perto como a minúscula luz da lanterna conseguia alcançar sua casa em Bairro Novo.

“Eu ficava encantado com aquela luz girando até alta madrugada. Imaginava várias coisas na minha cabeça de menino, de naves extraterrestres até sinais para super-heróis. Até que um dia me disseram que se tratava de um farol. Queria conhecer, mas meus pais nunca me levaram. Acabei esquecendo. Já adulto, fui fazer um trabalho lá em Amaro Branco e lembrei a minha admiração de menino. Larguei tudo e fui ao farol”, afirma.

Ele passou horas admirando cada peça e alheio à vista que embasbaca. Sabia que de outros pontos da Cidade Alta conseguiria uma paisagem parecida, mas dificilmente se depararia em outro lugar com a lente olho de cavalo que projeta a iluminação. “Achei o farol uma verdadeira obra de arte e aquilo me inspirou. Fui pesquisar sobre sua história e escrevi a música, que é cheia de misticismo, como a figura de Iemanjá. Farol tem que ter mistério”, explica.

FAROLEIROS
Conhecer o farol por dentro, contudo, é despir-se da sua poesia. Nada de um lampião gigante, aceso por um velhinho com trejeitos de marinheiro, tatuagem de âncora e pele queimada do sol, e que sobe centenas de degraus estreitos para colocar querosene em uma lanterna e bombear o ar, à espera de que a luz ilumine na direção de sua amada. Os degraus até que existem, mais de 300 nos fazem subir os oito andares. O resto é puro sonho.


Do alto da torre, é possível admirar uma bela paisagem

Em 1937, a eletricidade substituiu o gás acetileno, ainda no antigo farol. O velhinho é mais uma lenda, como a do menino que nomeou o bloco carnavalesco com seu boneco gigante de roupa quadriculada em branco e preto. Quando chegamos, o sargento que deveria nos receber estava lavando o carro, e, não, olhando profundamente para o horizonte. Em seguida, explicou a sua rotina, que nada tinha a ver com a descrita anteriormente.

Às 17h, o faroleiro de plantão sobe à torre para iniciar a operação da máquina de rotação e acender a lanterna por meio de um sistema elétrico. Durante a noite, faz vistorias a cada quatro horas. Ao amanhecer, desliga o farol e fecha as cortinas da lanterna. De dia, faz a manutenção das máquinas e a limpeza das lentes.

Esse hábito é conhecido pelo marinheiro aposentado Gelson Figueroa Lima, de 83 anos. Há 60, ele trabalhava no farol da Ilha de Abrolhos, na Bahia. As histórias da solidão foram contadas para seus filhos e netos. Muitas vezes, iluminadas pelo próprio Farol de Olinda, já que Gelson mora até hoje no Bairro de Amaro Branco e, quando se mudou para o Recife, chegou a residir em uma das casas do farol.

“Lembro que sentia que morando ali eu tinha uma visão privilegiada. É possível ver o mar verde, limpo, a vegetação. Tudo tem uma beleza incrível. Gostava de viver lá porque conversava com os faroleiros e me lembrava dos anos em Abrolhos. Um deles, Fernando Kennedy de Albuquerque Pimentel, foi meu amigo até o fim de seus dias. Aposentou-se como faroleiro e morreu há quatro anos”, recorda.

Se provoca reminiscências em um idoso, o Farol de Olinda também desperta saudades em um menino. Theo Acioli Michiles tem sete anos e todas as vezes em que vê o farol girando da varanda de sua casa tem vontade de ir para Salvador, cidade que visitou e pela qual nutre uma “saudade danada”. A mãe, a jornalista e artista plástica Dani Acioli, conta no blog que fez para o filho (Pés de Catavento) que trata de dissuadi-lo da ideia, mas também se põe a pensar. Faz sentido o farol ser a ponte entre as duas cidades, quando Theo o observa se balançando na rede da varanda. E, mesmo conhecendo todo o mecanismo da torre, fica difícil afastar-se do encanto.

Embora já não seja aberto ao público, o Farol de Olinda mantém um livro de visitantes. Não se pode saber ao certo se é a inspiração advinda da bela paisagem, se o ar poético do imaginário coletivo; acontece que, raramente, os que assinaram o livro deixaram só o seu nome e a cidade da qual vieram. Há centenas de poemas, epifanias e depoimentos. Como um motorista que agradeceu por seu trabalho permitir que se deparasse com aquela vista e uma pessoa que citou, em 2011, o trecho do Poema de sete faces, de Drummond: “mundo, mundo, vasto mundo/ mais vasto é o meu coração”. Esse farol, essas histórias botam a gente comovido como o diabo

INGRID MELO, jornalista.
TIAGO CALAZANS, fotógrafo.

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