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Uma senhora escritora!

Romancista conta como conheceu Lygia Fagundes Telles e as impressões que lhe deixaram a bela autora de 'As horas nuas'

TEXTO Raimundo Carrero

01 de Abril de 2013

Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles

Foto Adriana Vich/Divulgação

Ainda menino, no internato do Colégio Salesiano, aí entre 12/13 anos, fui apresentado a Lygia Fagundes Telles. Não a senhora de 90 anos, quieta e saudável, vivendo entre biscoitos amanteigados e vinho português, em solitário, mas em confortável, apartamento de São Paulo. Mas a jovem escritora, ainda romântica, que escrevia poemas sobre mães e famílias, embora rebelde e subversiva, perseguida pela polícia da maior cidade do Brasil. Assim, conheci-a por onde um poeta deve ser conhecido: pela obra, pelo poema, ainda que frágil e tímido. Naquele livrinho, ainda estava outra notável escritora paulista, Lupe Cotrim Garaude, cujo nome guardei pela sonoridade e pelo mistério – autora de Monólogos do afeto e Entre a flor e o tempo.

Ela estava ali belamente embrulhada num singelo livrinho publicado pela Nestlé, em poema no qual exaltava as qualidades da mãe, em meio a outros consagrados poetas nacionais, entre eles Olavo Bilac, aquele em que a mãe desfolha pétala por pétala o coração por amor ao filho. Lamento não ter decorado o poema, que foi avidamente declamado pelos colegas no teatro onde nos reuníamos sempre às noites de domingo, para uma “hora de arte”, conforme diziam os padres. Naquele tempo, eu ainda não sabia que me tornaria escritor, sem ter trocado uma palavra com Lygia, Fagundes Telles, que formaria, ainda, com Lupe Cotrim Garaude e Hilda Hilst, o trio das escritoras mais belas e mais sedutoras da literatura brasileira. Pena que Lupe tenha morrido tão cedo, mas Hilda viveu para escrever uma obra tão desafiadora. E Lygia triunfou pela qualidade poética e, naturalmente, pela beleza.

Por uma dessas armadilhas do destino, guardei o nome de Lygia, que conheci, tanto tempo depois, subindo as escadas da Biblioteca Nacional, onde receberíamos prêmios por nossos livros – ganhei o Machado de Assis, por Somos pedras que se consomem, e ela por A noite escura e mais eu – precisou do meu apoio, porque já andava com alguma dificuldade.

Lembro-me, porém, de que, entre o momento infantil e este da velhice que pretende subir degraus com algum esforço, existiu outro instante em que estivemos juntos. Foi em São Paulo, em 1977, pouco depois de publicar o meu primeiro romance, A história de Bernarda Soledade, a Tigre do Sertão. Naquele ano, realizou-se em São Paulo – mais exatamente no 20º andar do extinto Hotel San Raphael, no centro da cidade – um encontro internacional de escritores, tradutores e agentes literários, por iniciativa da Secretaria de Cultura do Governo de São Paulo, para integrar o Brasil no então chamado boom da literatura latino-americana, marginalizada na Europa e nos Estados Unidos, que falava apenas em argentinos, chilenos, paraguaios, uruguaios.

Embora me mantivesse à distância, num encontro que tinha Jorge Amado, Rubem Fonseca, Nélida Pinon, Mário Chemie, Marcos Rey e outros tantos, vi a humilde Lygia arrumar a mesa, escolhendo copos, pratos e talheres para tradutores, editores, agentes e até editores europeus e norte-americanos. Depois, recebia-os com um sorriso feiticeiro para almoços e jantares, num gesto de absoluto despojamento material que, aliás, transmitiu em sua numerosa obra literária. Solícita, jamais perdeu a respeitabilidade. Feminina, revelava o afeto natural nas mulheres.


Escritora clicada ao lado do poeta Carlos Drummond de Andrade. Foto: Reprodução

Na verdade, a obra de Lygia é muito diversificada, sobretudo em temas e questionamentos, que vão do romântico, sobretudo no início da carreira, ao político. A ponte pode ser ligada desde o romance de colegiais, em Ciranda de pedra e As meninas. Ambas as obras tratando das questões sociais, através de pontos de vista femininos.

Talvez por isso, Lygia tem declarado, sistematicamente, que sua preocupação central é ser “uma escritora do seu tempo”. O que quer dizer que estará sempre atenta aos nossos conflitos, aos nossos problemas, para torná-los visíveis, numa obra que, desde o início, só amadurece e engrandece a literatura brasileira. Sem pertencer a nenhuma escola literária específica, a escritora paulista revelou sempre as características ficcionais da Geração 45, com abertura para muitos temas e a investigação da psicologia dos personagens, sobretudo os femininos, que resultam no amplo painel da sociedade brasileira, como em As meninas, que mostrou uma Lygia mais vigorosa e contundente, a coroar uma obra consagrada através de Lorena, Lia e Ana. Sem esquecer o romance As horas nuas, que traz uma escritora amadurecida, com o perfeito domínio da narrativa, já consolidado em muitos livros de contos.

Agora, aos 90 anos de idade, Lygia mantém o vigor, o mesmo que a tornou militante política em plena ditadura, e escritora decisiva, admirada pela feminilidade e paixão. De quem se pode esperar bons lançamentos, sobretudo porque mantém um público fiel, que garante as sucessivas edições, sempre disputadas por grandes editoras nacionais. Lembrando, principalmente, a repercussão internacional de sua trabalho. Em Iowa, onde estive em 1990 para participar do International Writting Program, encontrei uma universitária, Mildred, que defendia mestrado na obra de Lygia Fagundes Telles.

Uma confissão: nas minhas férias do internato do Colégio Salesiano, de calças curtas, com caderno e caneta em punho, trancava-me na sala de visitas da nossa casa em Salgueiro para imitar os contos de Lygia, copiando as frases longas, às vezes pontuadas, num ritmo preciso, com pouca ou quase nenhuma adjetivação, com um toque de ternura sem perder a gravidade, investigando, em geral, o inconsciente dos personagens, quase sempre das personagens. Queria sentir melhor aquele estilo, que envolvia a vida e o encanto das histórias, até que percebi que devia ser mais austero. Foi quando substituí Lygia por Adonias Filho, o baiano que criava personagens e histórias vigorosos. Mas não posso esquecer o tempo em que Lygia conduziu os meus primeiros passos literários, ali na casa austera e forte de Salgueiro. 

RAIMUNDO CARRERO, jornalista e escritor.

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