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Diane Arbus: Mundo estranho e fascinante

Fotógrafa norte-americana, cuja obra é pouco conhecida no Brasil, fez opção pelo lado B da sociedade

TEXTO Chico Ludermir

01 de Julho de 2013

Numa casa para pessoas com deficiência intelectual, a fotógrafa realizou um de seus últimos trabalhos

Numa casa para pessoas com deficiência intelectual, a fotógrafa realizou um de seus últimos trabalhos

Foto Reprodução

O que estaria fotografando Diane Arbus? Se estivesse viva, aos 90 anos, que personagens fariam com que uma das fotógrafas mais importantes do século 20 se aventurasse? Que cenário underground seria revelado por ela? Onde se reconheceria? Olhar a obra da americana de origem judaica, mais de quatro décadas depois de sua morte, continua impactante. A fotógrafa dos marginalizados, excluídos, loucos e freaks nos joga cara a cara com seus temas e instiga reflexões clássicas e atuais.

Diane nasceu em 1913, numa família rica e tradicional, em Nova York. Em relatos autobiográficos, queixava-se de nunca ter passado por nenhuma adversidade na infância, ao mesmo tempo em que descrevia como odiava tocar piano – e até os cheiros e sons das aulas de pintura lhe incomodavam.


Arbus registrou travestis numa época em que que as minorias sexuais tinham menos visibilidade. Foto: Reprodução

Perto dos 30 anos, Diane rompeu com uma estrutura que a oprimia. Separou-se do marido e, à proporção que se distanciava das fotos comerciais, crescia em seu trabalho autoral. Tutorada pela fotógrafa Lisette Model, desenvolveu seu estilo surrealista, saindo em busca de objets trouvés (nomenclatura cara ao Surrealismo, traduzida como “objetos encontrados”). Na década de 1960, Diane consegue bolsa de estudos do Museu Gunggenhein e apresenta resultados em mostra no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

Além de anomalias e estranhezas, Diane se encontra consigo mesma em suas fotos. Um tanto como se olhar no espelho: os freaks “são” Diane. Observando pelo olho da câmera, ela se volta para dentro de si. Encontra os próprios monstros. Encara-os. Revela-os. E os acolhe.


Em campo nudista, casais têm suas sexualidades naturalizadas. Foto: Reprodução

Em um documentário filmado em 1972, apenas um ano após a morte de Diane, uma de suas duas filhas, Doon, afirma que a mãe tratava a fotografia como um segredo. Não porque escondesse as fotos, ou as saídas noturnas com sua Rolleiflex de dupla objetiva e um flash, mas, sim, porque existia algo na experiência que era secreto. Doon acreditava que se devia ao caráter transgressor que a fotografia representava para a mãe.

O que se sobressai na obra de Arbus é que, ao invés de clicar os escanteados – e nesse grupo estão transexuais, anões, gigantes, tatuados, artistas de circo – em situações penosas; capturava-os tão garbosos quanto fazia com seus antigos modelos, remetendo à época em que produzia fotos de moda para revistas como a Vogue.


Em foto de Garry Winogrand, o olhar agudo de Diane Arbus diante de uma personagem. Foto: Reprodução

Se a obra de Arbus possui potência para quem olha, para a própria artista representou uma descoberta. Podemos compará-la (claro, ressalvando as diferenças) a Nan Goldin, que, décadas depois, retrataria o submundo com a propriedade de quem escolhe viver nele. Em ambos os casos, há relatos de que a paixão pelo outro, por retratar e conhecer o diferente, extrapolava o campo fotográfico. Arbus teria tido relações íntimas com muitos dos estranhos de quem se aproximou.

“O que mais gosto de fazer é ir aonde eu nunca fui. É como um encontro às cegas. Algo esplêndido acontece! Sem a câmera, seria difícil entrar nas casas das pessoas. A câmera é uma licença”, disse em um de seus cursos, pouco antes de morrer. E completou: “Não tenho interesse em fotografar temas conhecidos”.


Conhecida como fotógrafa de aberrações, a norte-americana escolheu como tema aqueles que estavam ocultos ou à margem. Foto: Reprodução

E Arbus manteve-se fiel, permanentemente, ao seu tema. Seu trabalho autoral é uno. Um grande ensaio. Repleto de esquisitices em preto e branco, em médio formato, que nos fitam ao posar. Nas fotografias de Arbus, paradoxalmente, a pose estática tem um efeito inverso: o da naturalidade, da espontaneidade.

FREAKS
Preocupada em fotografar todos os tipos de pessoas, Arbus chegou à sua máxima: quanto mais específico, mais geral. Dentro do específico, claramente, fez uma opção: “Freaks foi o que fotografei mais e ficava muita animada nesse trabalho. Eles me dão uma sensação mista de vergonha e satisfação. Existe algo lendário neles. Você sabe que eles sabem algo que você não sabe. Eles já nasceram com seu drama. Passaram pelos seus testes na vida desde cedo. São aristocratas”, ficou registrado em gravação feita em 1970. “As pessoas geralmente gostam, quando vou fotografá-las. Eu sou muito legal nesses momentos”, completou.


Foto: Reprodução

Aproveitando o lema proposto por ela, olhar atentamente para apenas duas fotos possibilita uma análise de sua obra. Na primeira, uma travesti posa nua, escondendo seu sexo numa pose que se assemelha à de Vênus de Boticcelii.

Explicita-se nessa imagem a predileção pelos temas tabus (ainda mais marginalizados na década de 1950). A personagem a encara de frente, como é habitual nas fotos da nova-iorquina. Percebemos mais: a intimidade entre ela e o tema, escancarado pela nudez, demonstra que Diane não temia uma aproximação. Alguns de seus “assuntos” tornaram-se amigos dela. Talvez, por essa razão, a travesti demonstre inocência. Apesar do estatismo da modelo, ela é despida de rigidez.


Foto: Reprodução

Dois pontos merecem destaque: o olhar da fotógrafa, atravessado por uma câmera Rolleiflex, que a obriga a abaixar seu rosto em reverência, com lentes normais (35mm ou 50mm fixas), que forçam uma aproximação, e, em consequência, o olhar com que os fotografados retribuem. São cúmplices, e isso fica claro nas poses e momentos. Não são flagrantes, não há o instante decisivo preconizado por Henri Cartier-Bresson. Todos os momentos têm a mesma importância, são retratos consentidos; serenos, imóveis.

A fotógrafa não buscava uma naturalidade fingida. O que se vê são seres que, ao posar, já se tornam imagens de si mesmos. Ela usava sua técnica para destacar ainda mais qualquer elemento que aparentasse estranheza. A foto frontal e o flash, usado também durante o dia (ela foi precursora nesse uso), corroboravam para evidenciar quaisquer estranhezas.


Foto: Reprodução

Podemos dizer que, em sua obra, Diane transformou em imagem a poesia de Walt Whitman. “Não tenho dúvida de que a majestade do mundo e a beleza do mundo estão latentes em qualquer migalha do mundo. Não tenho dúvidas de que existe muito mais em coisas banais, em insetos, em pessoas vulgares, em escravos, em anões, em ervas, no refugo e na escória do que eu supunha”, escreveu Whitman. E assim fez Diane.

Um dos melhores convites que a obra dessa norte-americana nos faz é – como nos lembra Susan Sontag, em Sobre fotografia – o de discutir a beleza na arte e, mais especificamente, na fotografia. As questões dessa arte visual são comumente povoadas por belos modelos e paisagens. Em especial, nas primeiras décadas história da fotografia, o que se esperava dos fotógrafos eram retratos idealizados (o que ainda é verdade na fotografia amadora, comprovado em visitas ao Instagram). Arbus abandona o tema lírico e propõe a revisão do que é ou não fotografável/belo. E nos questiona por quê. Ao invés da abolição da beleza, sua generalização.


Ao se observar o copião, com a sequência de retratos do menino com
granada de brinquedo, evidencia-se a escolha da fotógrafa pelo estranho.
Foto: Reprodução


Foto: Reprodução

Embora pudesse provocar esse sentimento, pelo tema em que se concentra, a obra de Arbus não traduz sofrimento. Mesmo nos asilos e sanatórios, Arbus olha no olho, instigando sorrisos e cenários leves. Nas suas fotos, a dor se presentifica nos rostos dos “normais”, e esse é um gesto deliberado da fotógrafa, observado na fotografia de um garoto brincando no Central Park, segunda imagem em que nos detemos aqui. O menino que segura uma granada de brinquedo mostra-se mais assustador que a travesti no quarto sujo.

“Você vê uma pessoa na rua e, essencialmente, o que percebe nela é o defeito”, dizia Arbus. Assim ela escolhe, enquadra e revela o bizarro, mesmo onde ele não existe. Ou onde não parecia existir. Há também, mesmo que sutilmente, uma crítica à sociedade americana da época. Um país que impunha guetos ao “anormal” enquanto naturalizava guerras (as décadas de 1950 e 1960 foram fortemente marcadas pela Guerra Fria e pela Guerra do Vietnã). Nesse contexto, Diane retratou também soldados, patriotas e imigrantes.

A granada de brinquedo na mão de uma criança normal, porém disforme, traz em si uma potência analítica que ela repete quando retrata um jovem completamente alinhado e bem-vestido para ir lutar contra os vietcongues. É possível perceber a intencionalidade crítica nos seus retratos de aberrações. Ainda em relação ao menino com a granada, basta observar o copião das imagens feitas por ela da cena, para constatar que a foto selecionada da sequência é a única em que o garoto entorta estranhamente rosto e mãos.

Quando se suicidou, tomando uma dose alta de remédios e cortando os pulsos, em 1971, Diane evidenciou que toda a sua obra vinha de sofrimento genuíno. E carregou a sua arte de um semblante trágico e verdadeiro. Ao mesmo tempo, a morte também impulsionou a obra da autora a alçar voos maiores. Logo no ano seguinte, obras suas foram expostas na Bienal de Veneza. Em 2006, foi realizada a cinebiografia A pele, protagonizada por Nicole Kidman. Aqueles que ela encarou sempre de frente estão eternizados. Ela os manteve vivos e prontos para encarar novos espectadores. Prontos para perguntar: que outros mundos existem e que ignoramos? 

CHICO LUDERMIR, jornalista e fotógrafo.

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