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“O Romantismo é um período fecundo”

Pianista francesa Hélène Grimaud fala sobre a importância do conhecimento sobre o contexto em que se inserem os compositores que interpreta e de sua escolha de repertório erudito

TEXTO Josias Teófilo

01 de Julho de 2013

Hélène Grinaud

Hélène Grinaud

Foto Mal Hennek/Divulgação

A pianista francesa Hélène Grimaud pertence a um grupo muito restrito de intérpretes eruditos cuja fama extrapola as salas de concertos. Hélène foi retratada em documentários televisivos, tem presença constante na TV, especialmente na França, e suas gravações – a maioria colocada por fãs, sem a autorização da gravadora – recebem centenas de milhares de visitas no Youtube. É artista exclusiva da Deutsche Grammophon, desde 2002, o mais importante selo de música de concerto no mundo, cuja origem se confunde com o nascimento da indústria fonográfica.

Nela, gravou uma série invejável de CDs de compositores como Bach, Beethoven, Brahms, Chopin, Rachmaninov, cujos lançamentos são sempre acompanhados de teasers, em geral muito bem produzidos, divulgados na internet. Sua gravação do Concerto para piano nº 1 de Bach, com a Die Deutsche Kammerphilharmonie Bremen, no CD dedicado a esse compositor, é primorosa e comparável à versão revolucionária feita por Glenn Gould. No CD Resonances, ela fez uma ousada escolha ao juntar compositores tão díspares quanto Mozart, Berg, Liszt e Bartók. O enfoque, na verdade, é geógrafico: trata-se da música inspirada ou produzida na Europa Central. Hélène gravou também dois dos mais belos concertos de Mozart, nº 19 e nº 23, e, em 2012, um CD com a violoncelista Sol Gabetta, considerado pela crítica especializada como o disco do ano.

Além disso, Hélène Grimaud gravou o Concerto nº 5 de Beethoven, em que tentou “fugir da concepção habitual, em que o piano soa grandiloquente, como em oposição à massa orquestral” para “fazer o piano soar como se fizesse parte da orquestra”, como declarou em entrevista. Foi esse concerto – chamado posteriormente do Imperador, não se sabe se pelo caráter grandioso do primeiro movimento ou por ser, como afirmam muitos, o imperador dos concertos para piano – que a pianista trouxe em turnê pela América Latina em maio, tocando no Brasil em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.

Na capital paulista, a pianista se apresentou com a Osesp, que vive um dos seus melhores momentos no cenário nacional e internacional. Ano passado, a orquestra fez turnê pela Europa, motivada pelo convite do grande festival de música de concerto do mundo, o BBC Proms, no qual foi ovacionada com o pianista mineiro Nelson Freire. Este ano, a orquestra se prepara para outra turnê, ainda mais ampla pela Europa, além de gravar a integral das sinfonias de Prokofiev e Villa-Lobos pelo selo Naxos.

Hélène Grimaud recebeu a Continente no camarim da Sala São Paulo, logo após o ensaio com o maestro Stéphane Denève. Com seus vivos olhos azuis e a voz pausada e grave, ela falou sobre a interpretação musical, sobre o Romantismo e sobre a espiritualidade na música e na arte.

CONTINENTE No depoimento ao encarte da sua gravação de Beethoven você diz que “a emoção, por si só, não leva muito longe”, pois “o emocional deve ser desenvolvido através da lógica filosófica”. Qual o papel da emoção e da razão na interpretação musical?
HÉLÈNE GRIMAUD Para mim, é preciso que os dois estejam presentes na mesma proporção. Isso é sempre o que eu procuro, é o ideal. Se há excesso de um ou do outro, falta algo. Mas, se eu tivesse que escolher, escolheria definitivamente a emoção. É isso que caracteriza a música universal, é por isso que ela tem o poder de... como dizer, affect people, no sentido forte do termo. Não é algo feito unicamente para a razão, para a satisfação intelectual. É preciso te tocar! Para mim, há definitivamente uma hierarquia, se eu tivesse que escolher. Mas, o ideal é não ter que escolher, e que os dois dialoguem sempre.

CONTINENTE É um hábito ler sobre o repertório, informações biográficas, históricas? Isso pode ajudar na interpretação?
HÉLÈNE GRIMAUD Sim! Eu tenho duas opiniões sobre o tema: adoro fazer isso, acho que é importante saber o que se passou com os contemporâneos do compositor no momento em que a obra foi escrita, o que se passou evidentemente na vida dele e o contexto histórico, político etc. Porém, ao mesmo tempo, se a obra não o toca por si, a chave desse segredo – todas as informações biográficas, históricas, musicológicas – não vai verdadeiramente lhe esclarecer. No fim das contas, é algo muito pessoal entre a obra e o intérprete.


Foto: Aline Arruda/Divulgação

CONTINENTE Você se refere ao Concerto nº 5 de Beethoven como um animal selvagem. Interpretá-lo é como domar esse animal?
HÉLÈNE GRIMAUD É preciso se apropriar da obra, que tem sua própria natureza, é preciso suficiente respeito. É necessário que a obra mostre seu segredo, e isso demanda muito trabalho. Mas não podemos predeterminar o momento em que isso vai acontecer, não é algo que você diga “vou trabalhar com essa obra por dois meses e a partir da terceira semana vai estar pronta”, é muito mais misterioso, por vezes se passa no último minuto, em outras se passa muito cedo no aprendizado da obra.Temos que deixar que esse processo – biológico, por assim dizer – seja superado.

CONTINENTE Parece existir uma afinidade sua com a música do período romântico, aliás, desde bem cedo, seu primeiro concerto foi o nº 2 de Chopin e o primeiro recital a Sonata nº 2 de Rachmaninov. O Romantismo é uma especialidade no seu repertório?
HÉLÈNE GRIMAUD Eu gostaria muito (risos). Acho que é um dos períodos artísticos mais fecundos que existiu, e com o espectro mais largo no seu desenvolvimento. O que sempre me agradou no Romantismo foi o período bem inicial e o fim, o último Beethoven, as últimas sonatas etc. E, depois, os poetas, escritores, romancistas, quando eles falam do fenômeno da universalidade. Em geral, quando se pensa no Romantismo, pensa-se em algo que fala do “eu”, da subjetividade. Mas, na verdade, é muito mais do que isso, Racine fala de uma “intuição global”, acho que essa é a verdadeira essência do movimento romântico. É um tema que me intriga.

CONTINENTE Roman Jacobson dizia “toda grande arte é romântica”.
HÉLÈNE GRIMAUD Exatamente isso. Do mesmo modo, podemos dizer que a 6a Partita de Bach é também romântica.

CONTINENTE Ou que Noite transfigurada, de Schoenberg, é romântica.
HÉLÈNE GRIMAUD Sem dúvida!

CONTINENTE Além dessa afinidade de repertório, parece-me que seu espírito – essa proximidade com os lobos, com a natureza – tem algo de profundamente romântico.
HÉLÈNE GRIMAUD É verdade que a natureza é a inspiração última. Para todos os criadores, isso é normal – nós, intérpretes, não somos criadores, temos um papel bem mais insignificante – mas, mesmo para um intérprete, a natureza é a musa. Ela também fez parte da essência do romantismo alemão, sempre esteve presente. E não é somente um conceito, é a realidade para os compositores, para os poetas, para os escritores – é sempre na natureza que eles se reencontram.

CONTINENTE Mas a interpretação tem algo de verdadeiramente criador, nós podemos falar do (maestro alemão) Carlos Kleiber…
HÉLÈNE GRIMAUD Sim, ele transfigura as obras. É verdade que uma obra, uma vez que existe no papel, é revivida na interpretação, é como uma recriação. Existe esse aspecto criador também.


Foto: Aline Arruda/Divulgação

CONTINENTE O que você conhece da música brasileira de concerto? Você gosta?
HÉLÈNE GRIMAUD Sim, eu a amo muito. Eu nunca a toquei, talvez numa próxima vinda ao Brasil. É uma música muito evocativa, de cores, de coisas – é um universo! É uma música que cria algo de muito sensual também, que gera sensações de um nível mais corporal. Eu espero voltar ao Brasil.

CONTINENTE Qual concerto para piano lhe dá mais prazer em tocar?
HÉLÈNE GRIMAUD O primeiro de Brahms! Especialmente o último movimento, é muito agradável – essa dimensão que é também de Bach, na sua música, é fantástica.

CONTINENTE E o 2º Concerto de Brahms lhe agrada?
HÉLÈNE GRIMAUD Durante muito tempo eu não quis tocá-lo, e finalmente, quase 20 anos depois de tocar o primeiro, eu disse “está na hora de fazer o segundo”. Noto que Brahms tem algo de purificador: eu não sei se é o classicismo de proporções, a arquitetura da obra.

CONTINENTE Certa ocasião, li que Brahms não sabia fazer a união entre o amor carnal e o platônico, e que isso se reflete na sua música, especialmente na música de câmara.
HÉLÈNE GRIMAUD É verdade, eu nunca tinha ouvido essa ideia, mas faz sentido. Talvez por isso ele não tenha sido tão ativo em nenhuma das duas, porque na verdade o amor é um só.

CONTINENTE E qual o mais espiritual dos concertos?
HÉLÈNE GRIMAUD Eu diria o nº 4 de Beethoven!

CONTINENTE Existe um livro muito belo de Paul Valéry, Eupalinos ou o arquiteto, em que ele diz “não há detalhes na execução”, referindo-se à arquitetura. O mesmo poderia ser dito da interpretação musical?
HÉLÈNE GRIMAUD É sempre a arquitetura que, ao meu ver, determina tudo. Nós podemos, aqui e ali, consagrar muita atenção aos detalhes da interpretação musical, mas, para mim, o que importa é o sopro que perpassa a obra no seu todo, é o discurso, algo que porta o elemento determinante.

CONTINENTE Ser pianista e escritora são duas formas diferentes de se expressar ou elas são fruto de uma mesma interioridade?
HÉLÈNE GRIMAUD São duas formas diferentes. Para mim, a escrita é muito mais falível. Não me considero escritora. Escrevo, mas isso não é essencial para viver, a música sim. Acho que a música é muito mais honesta, porque a linguagem é sempre mais artificial, descrever algo é sempre traí-lo. É impossível descrever uma sensação através de palavras, mas, na música, existe algo que é muito mais direto, mais aberto, mais honesto. Existe também outra diferença: apesar de serem dois fortes meios de expressão, eles não são comparáveis. Naturalmente, é possível ser bastante afetado pela leitura de algo, porém a música tem algo de primário, que lhe transforma materialmente, é físico, biológico.

CONTINENTE É verdade que você é sinestésica?
HÉLÈNE GRIMAUD Sim, mas não é sistemático, todo o tempo. Entretanto, acontece com certa regularidade. Cada tonalidade musical me faz ver uma cor. O que é interessante é que pouco importa se é Rameau ou Ravel. Ré menor é azul, não importa se é um compositor moderno, barroco, impressionista. É algo que se manifesta naturalmente. 

JOSIAS TEÓFILO, jornalista e mestrando em Filosofia pela UnB.

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