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Tradução: A difícil tarefa de ser outro

Embora seja uma forma de coautoria, a atividade não iguala o tradutor ao autor, colocando-o na delicada função de ser uma ponte entre idiomas e culturas

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Julho de 2013

Imagem Walter Vasconcelos

"O jovem russo, hoje, lê Tolstoi com a mesma facilidade que eu consigo ler a tradução do escritor para o português?” Essa foi a última pergunta feita a Rubens Figueiredo, quando ele veio ao Recife, no ano passado, para participar de um debate no festival A letra e a voz. O escritor havia sido responsável, em 2012, por verter Guerra e paz do original para a língua portuguesa. Na ocasião da conversa, respondeu que não, a facilidade não é a mesma. Tolstoi não é lido com a mesma fluidez pelo jovem do seu país, assim como Shakespeare não é tão fácil para o leitor inglês do nosso tempo, como, provavelmente, Machado de Assis é mais desafiador para nós que para o leitor de uma versão estrangeira recente.

Essa impressão de “facilidade” não estaria associada à (falta de) qualidade do texto traduzido – levemos em conta, aqui, apenas os trabalhos bem-realizados. Segundo Rubens Figueiredo, a questão é que a tradução dá uma nova vida à obra e, sem comprometer o original, traz marcas sutis do contemporâneo. Algo que poderia ser sintetizado com uma consideração do tradutor e professor da Universidade de Campinas Márcio Seligmann-Silva: “a marca ou estigma da tradução em geral é o fato de ela ser uma passagem: de um texto para outro, de um espaço para outro, de um tempo para outro”.

Alguns teóricos desse campo defendem que escrever é praticar a tradução das informações dadas pelo mundo, pela experiência, e o movimento de um idioma a outro “seria uma tradução da tradução; ou ainda, platonicamente falando: representação da representação, cópia da cópia”, explica Márcio, no ensaio Haroldo de Campos: tradução como formação e “abandono” da identidade. Paulo Henriques Britto propõe cautela, quando o assunto é a relativização entre “autor” e “tradutor” ou “original” e “tradução”, no embate que visa torná-los equivalentes. “A meu ver, traduzir é uma modalidade de escrever que tem especificidades próprias, ainda que requeira muitas das habilidades que se exigem de um escritor. Traduzir uma obra literária é uma forma de coautoria, mas não coloca o tradutor em pé de igualdade com o autor”, explica o poeta e tradutor.


Para Rubens Figueiredo, traduzir é dar nova vida à obra sem comprometer o original.
Foto: Divulgação

Mamede Jarouche, premiado especialista em língua árabe, concorda com o Paulo Henriques: “É claro que os bons textos literários ou, pelo menos, de conteúdo humanístico, operam, por assim dizer, numa espécie de fronteira, tendendo sempre a ‘esgarçar’ os limites sintáticos e semânticos de sua língua. Nesse sentido, o tradutor de tais textos deve, sim, ser dotado de alguma criatividade para poder fazer equivaler o que está traduzindo ao texto trabalhado. Mas isso, fique claro, não equivale a criar, ao menos não no sentido da liberdade desfrutada por aquele que se propõe a traduzir um texto ‘seu’”.

Não à toa, quando o autor do livro ainda está vivo, ele é comumente consultado para esclarecer dúvidas e ambiguidades, com o intuito de manter a proximidade com o original. Foi o que fez Simona Aillenii, tradutora da obra Bernarda Soledade, de Raimundo Carrero, para o romeno. Enviou-lhe um e-mail com a questão capciosa: “O que é exatamente este sertão de que você fala?” Quando ele me contou a história, eu, cá com meus botões, pensei: ‘Deus mesmo, quando vier, que venha armado’. Mas esse já era outro sertão”.

LITERÁRIA E SEMÂNTICA
O senso comum tende a pensar a tradução como um processo de relações inequívocas entre palavras de diferentes idiomas (carro/ car/ voiture/ coche), ou seja, restritamente no nível semântico. No entanto, até nessa superfície, é fácil perceber que as línguas se desencontram, elas não se equivalem plenamente nem mesmo no tocante ao vocabulário.


Especialista em línguas árabes, Mamede Jarouche aponta o baixo volume de autores dessa matriz vertidos ao português. Foto: Divulgação

Também é dispensável ser poliglota para saber que seus sistemas não são rigorosamente homólogos. Afora isso, existem as diferenças de cultura no substrato das línguas: como traduzir o sertão de Carrero para os romenos? No campo da tradução especificamente literária, sobretudo da poesia, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos foram fundamentais para reverberar essas questões. “Eles ensinaram, acima de tudo, a dar tanta importância aos elementos formais quanto aos semânticos”, pontua Paulo Henriques Britto.

Em Da tradução como criação e como crítica, Haroldo parte da ideia do ensaísta Albercht Fabri de que há um equívoco irrefutável no ato de traduzir, por se supor possível separar sentido e palavra. Soma-se a isso a perspectiva do filósofo Max Bense, para quem “a informação estética não pode ser codificada senão pela forma em que foi transmitida pelo artista”. Ora, o concretista se mune de referentes teóricos que apontam a impossibilidade da tradução literária para arrematar com a seguinte conclusão: esse exercício seria um momento de recriação e não de reprodução.

Tradução tal qual uma arte, diria Paulo Rónai, no livro Escola de tradutores: “O objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível”. Talvez, algumas vezes, seja esse o sentimento do profissional em seu ofício, quando as saídas não parecem tão óbvias. Enquanto esteve debruçado sobre a tradução dos manuscritos da obra As mil e uma noites, Mamede Jarouche se viu algumas vezes encurralado: “Vastos trechos das narrativas continham, tanto na semântica como na sintaxe, dialetalismos antigos e não dicionarizados, o que me fez quebrar a cabeça e, às vezes, praticar adivinhação”, relembra.


Também escritor, Paulo Henriques Britto destaca a importância da criatividade ao se traduzir textos literários. Foto: Divulgação

Nesse processo, optar pela tradução direta é uma maneira de reduzir os danos da leitura, os possíveis ruídos. “A literatura é um discurso no qual os aspectos estéticos da língua são trabalhados. Muitas vezes, a boa solução encontrada pelo tradutor em espanhol, em francês ou em inglês não é boa em português, o que leva a perdas. Ademais, a tradução é também um diálogo entre duas línguas e, nesse caso, é melhor que não haja intermediários”, defende Mamede, que, no entanto, também ressalta não se tratar de pôr em xeque a qualidade das traduções existentes. Paulo Henriques Britto pensa de forma similar, mas lembra que “existem ótimas traduções feitas por poetas-tradutores que não dominavam o original, como o Kaváfis de José Paulo Paes”.

NO BRASIL
Baixa remuneração, prazos apertados e plágios dificilmente apurados são alguns dos problemas enfrentados por tradutores na rotina do mercado editorial. Ainda assim, suas condições de trabalho evoluíram e, por tabela, cresceu a produção de boa qualidade no país.

“O que me parece, de maneira geral, é que o nível de exigência tem aumentado, o que força a melhora do nível geral das traduções. Por exemplo, outro dia mesmo eu estava lendo, extasiado, um excelente romance do escritor espanhol Javier Cercas, Velocidade da luz, e de repente me dei conta de que a qualidade do que eu lia também era devida ao trabalho de um grande tradutor, Sérgio Molina”, avalia Mamede Jarouche.


Junto ao irmão Augusto, Haroldo de Campos “ensinou” o valor de se agregar aspectos formais e semânticos no ato de traduzir. Foto: Divulgação

Embora falar em “boa tradução” soe quase como uma abstração, Paulo Henriques Britto, também formador de novos tradutores, sabe que existem pontos objetivos que caracterizam um trabalho bem-executado: “Uma boa tradução é aquela que circula no meio cultural da língua-meta substituindo a obra traduzida, provocando nos novos leitores efeitos análogos aos produzidos pela obra original”.

Se ambos os entrevistados percebem um cenário de qualidade satisfatória, o mesmo não pode ser dito da variedade de obras traduzidas, e cada um pontuou escritores ou livros de suas áreas de conhecimento mais específicas que fazem falta às nossas prateleiras. “Falta traduzir muita coisa, sim. Para ficar no campo da poesia de língua inglesa contemporânea, faltam antologias brasileiras de autores como Philip Larkin e James Merrill, para não falar em poetas ainda vivos como John Ashbery e Paul Muldoon”, lista Paulo Henriques.

No tocante à produção oriental, a escassez é ainda mais evidente: “Vou me limitar à minha área, o árabe, muito embora existam lacunas absurdas perceptíveis por qualquer um: por exemplo, uma obra-prima como o Decameron, de Bocaccio, tem apenas uma tradução completa, e ruim, em português. Um absurdo. Mas, no que se refere à literatura árabe, dos modernos falta quase tudo: poetas, romancistas e contistas libaneses, marroquinos, egípcios, sírios, iraquianos, tunisianos... No que se refere à literatura antiga, a lacuna é tão obscenamente larga, que é melhor nem falar. Falta praticamente tudo”, lamenta Mamede. 

GIANNI PAULA DE MELO, repórter da Continente Online.

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