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Cozinheiro se faz na cozinha

Para além da formação acadêmica, sete profissionais do setor comprovam a tese de que o ofício pede, antes de tudo, bastidor

TEXTO EDUARDO SENA
FOTOS HELDER TAVARES

01 de Agosto de 2013

Os profissionais do Wiella Bistrô foram formados no próprio restaurante

Os profissionais do Wiella Bistrô foram formados no próprio restaurante

Foto Helder Tavares

Guru heterodoxo da gastronomia mundial, o über chef norte-americano Anthony Bourdain, no livro Cozinha confidencial, questiona: “Quem é que prepara a comida que você come? Que estranhas feras são essas que se escondem por trás das portas da cozinha? Você conhece o chef. Mas quem está, de fato, fazendo a sua comida? Seriam jovens recém-formados de alma ambiciosa labutando na linha de produção até conseguir agarrar o grande emprego? Provavelmente, não. Se o chef for meio parecido comigo, os cozinheiros serão um bando de mercenários desajustados, marginais motivados por dinheiro, pelo estilo de vida peculiar que levamos e por um orgulho feroz”.

A diretriz de recursos humanos do cozinheiro estadunidense parece ter feito escola no Wiella Bistrô, cuja cozinha é comandada pelo chef Claudemir Barros. Por lá, a equipe de cozinheiros é formada por Paulo Calixto, Antônio Melo, Sidney da Cruz, Israel Francisco, Erivaldo Rodrigues, Edjano Ramos e Antônio Ferreira. Além de trabalharem no mesmo local, têm em comum o fato de a profissão ter se imposto na vida deles. Trabalhar na área não foi escolha, foi necessidade circunstancial levada adiante. Diferentemente de toda uma geração seduzida por um falso glamour temperado, antes de serem apresentados às panelas, os sete profissionais nunca pensaram em ter na carteira de trabalho o termo “chef de cozinha”, quiçá cozinheiro, como ofício.

Por isso mesmo, a formação deles foi feita dentro da cozinha do próprio restaurante. Tudo o que sabem foi absorvido lá dentro. Nunca frequentaram escolas, faculdades e afins. E, pelo carimbo ilibado de alta gastronomia que o Wiella apresenta, diplomas não parecem fazer a diferença. Essa escolha (com cara de tiro no escuro) feita por Claudemir é esteira para uma polêmica que há tempos ganha corpo entre os profissionais da área. Afinal, o que diferencia um cozinheiro de um chef?

“A grosso modo, poderíamos dizer que todo chef é um cozinheiro, ou pelo menos deveria sê-lo, mas nem todo cozinheiro é chef. Isso porque, como o próprio nome indica, em francês, ou em português com o simples acréscimo de um ‘e’ no final, o detentor de tal qualificação é aquele que tem voz de comando sobre a brigada da cozinha”, diferencia o jornalista especializado no setor, Bruno Albertim. Como bem se vê, um chefe é inútil sem seus cozinheiros, e esses sem um bom superior são uma manada descontrolada. “A última coisa que quero é um cozinheiro inovador, que possa atrapalhar as receitas previstas nas fichas técnicas”, opina Claudemir Barros.

Aliás, foi ele mesmo quem, depois de experiência desastrosa com estagiário oriundo de faculdade, determinou que não aceitaria mais nenhum com essa qualificação para trabalhar na casa. Percebeu que cozinheiro pode ser formado de outra maneira. “Deixei de dar estágio para preparar equipes e mão de obra para os novos chefes que estão por vir. E isso é mais difícil do que se imagina. Eles precisam ter uma lealdade cega, quase fanática, uma consistência rígida. O mercado precisa de gente que execute seus pratos sob condições de batalha”, sublinha.


Israel Francisco, que trabalhava como auxiliar de escritório, Erivaldo Rodrigues, ex-cortador de cana, e Paulo Calixto, que atuou como pedreiro e hoje é subchef, compõem a equipe

DEGRAUS
Quando o atual subchef da casa, Paulo Calixto, 33 anos, entrou no Wiella, há 10 anos (data de fundação do restaurante), era um ex-servente de construção civil. Trabalhou na reforma da casa que iria abrir por três meses. Com a obra concluída, recebeu um convite do gerente para fazer parte da equipe de cozinha. Aceitou de prontidão. Começou como stuart – função que engloba a lavagem de pratos, limpeza da cozinha e o recebimento e higienização dos insumos. Depois de dois meses, foi promovido a auxiliar de cozinha. “Tive medo de não dar certo. Foi o maior desafio da minha vida. Imagine: uma pessoa que colava tijolos com cimento ajudar na construção de pratos de um restaurante refinado. Mas pensei e aceitei, nunca imaginaria o que viria pela frente”, conta.

Três anos se passaram e, mais tarimbado, Paulinho (como é conhecido) passou a ocupar o posto de cozinheiro. Nessa época, já conhecia ingredientes que nunca antes teve notícias. “Uma vez, me mandaram comprar abobrinha. Fui ao supermercado aqui perto e voltei com miniabóboras”, lembra. Há três anos é o subchef. Mais do que isso, na prática, ele é o nome responsável pela cozinha quando o chefe está ausente. Atualmente, não pensa em fazer outra coisa que não seja o que desempenha no momento.

Quem também saiu das obras para as panelas foi o “tagarela” Sidney da Cruz. Era ajudante de pedreiro e, por meio de contato de um amigo, garçom da casa, conseguiu uma vaga de stuart. Passados cinco meses, foi convidado para ser auxiliar de cozinha, e o medo de encarar a profissão mais de perto bateu. “Se teve algo que mudou em mim foi a delicadeza. Tive que aprender a ser mais delicado. Na pia, observava os pratos saírem e percebia a quantidade de detalhes de montagem, finalização e decoração. Jamais imaginava que tinha vocação para isso. E foi o que pesou na hora de dizer sim. Quase que deixei tudo para trás”, constata.

Com o incentivo da esposa, decidiu ir adiante. O sinal verde para fazer o que mais temia: riscar pratos. “Riscar é passar os molhos da finalização do prato na louça. Treinei como um atleta, para não fazer feio quando a obrigação chamasse. Eu sabia que estava em um dos melhores restaurantes da cidade e era alvo de uma confiança que nunca tive antes ”, afiança o rapaz de 22 anos, que só estudou até a 6ª série, já foi ajudante de pedreiro, músico em banda de pagode, e hoje pode falar com orgulho que sabe “riscar um prato”. Sidney pretende seguir carreira na área. “Quero ser chapeiro, ficar na chapa, assando as carnes. Parte que acho difícil, são vários os tipos de ponto das proteínas”, fala com a propriedade de quem sabe que cozinha está mais para trincheira militar que para glamour madrugada afora.

E foi em condições militarizadas que Edjano Ramos – ou apenas Ramos – foi fisgado pela cozinha. Ao ser incorporado ao Exército, ficou responsável pela cozinha do quartel. Até então, sua única experiência profissional tinha sido como segurança. Tomou gosto pelos temperos e, antes de chegar ao Wiella, já fez carreira em outros recintos gastronômicos. Hoje, o cozinheiro responsável pela cocção das proteínas do restaurante também tem um pequeno bar especializado em comida regional, em Prazeres, bairro onde mora.

Com 43 anos, Antônio Melo, o Pelé, também comanda as panelas da casa. Com apenas a 3ª série do Ensino Fundamental no currículo escolar, tudo o que conseguiu antes disso foi ser segurança, auxiliar de serviços gerais e operador de canhão em fábrica de pipoca. Na cozinha, obteve iniciação em uma lanchonete, montando sanduíches. Depois, já em um restaurante, foi auxiliar de cozinha. “Não desmerecendo, mas era de cozinha regional, uma coisa mais bruta. Quando vim pra cá, não cheguei como auxiliar, mas como stuart. Fiz questão de compreender essa nova cozinha desde baixo”, conta.

Ao ser promovido para a seção de cozinha fria (saladas, molhos e sobremesas), Pelé entrou em pânico. “Como eu ia deixar a salada em pé, como uma rosa? Demorava muito para montar. Hoje dou show!”, conta com orgulho. Igualmente com 43 anos, Israel Francisco também tem o seu amor-próprio na cozinha. “Não há melhor coisa no mundo do que ver o prato voltar limpo. Quando comecei a soltar meus primeiros pratos, não sossegava enquanto ele não voltasse. Queria saber se o cliente gostou. Um prato limpo é mais do que um troféu”, deleita-se.

PANELA
Israel está há três anos e meio no restaurante, antes disso, trabalhou como auxiliar em um escritório de contabilidade. Estava há quatro anos desempregado, quando surgiu uma vaga para auxiliar de cozinha no restaurante. Começou fazendo sucos e auxiliando na seção de cozinha fria. Hoje, é cozinheiro, e orgulha-se disso como o maior feito de sua vida. “Bens materiais não tenho, mas o aprendizado que obtive aqui é o que de maior eu carrego. Mais do que isso, a cozinha me fez renascer e por ela dou tudo. Sei que por trás do meu trabalho existe o nome da casa e do chef em jogo. E isso é uma responsabilidade muito grande. Minha meta é nunca falhar”, projeta.

A cozinha também redesenhou a vida Erivaldo Rodrigues, o Dunga, de 36 anos. Ex-cortador de cana e pedreiro, o homem responsável pelas sobremesas do restaurante chegou à casa para ser stuart. Hoje, quase três anos depois, já se deu conta da habilidade que desenvolveu e diz em tom pragmático: “Se alguma coisa der errada para mim aqui, tenho certeza de que posso fazer um self-service no terraço da minha casa”. O novo cozinheiro, e potencial empresário, mora em Socorro, bairro da parte velha do município de Jaboatão dos Guararapes.

De personalidade aparentemente ríspida, Dunga é tão delicado quanto a panna cotta de amora que temia fazer, quando assumiu a parte mais doce do Wiella. “Assim que cheguei, achava o preço do cardápio caro. Hoje, sei o trabalho que dá para fazer e que o valor é mais do que justo. Eu pagaria”, afirma o cozinheiro que cortava cana e que, há três anos, não conhecia azeite, arroz arbóreo, aspargo, brócolis e cogumelos. Dia desses, foi cozinhar em casa para os filhos e ouviu um “Painho, não sabia que você era assim”. 

EDUARDO SENA, jornalista.
HELDER TAVARES, fotógrafo.

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