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Graphic Novel: Um olhar sobre as revoluções

'A morte e a morte de Frei Caneca' apresenta o lado mais sórdido da repressão aos revolucionários de 1817 e 1824, em páginas de predominantes tons escuros

TEXTO Germano Rabello

01 de Agosto de 2013

Imagem Reprodução

Entre as figuras mais emblemáticas da história do Brasil no século 19, Frei Joaquim do Amor Divino Rabello Caneca foi um intelectual, propagador de teorias avançadas para seu tempo, participante ativo de várias lutas contra o absolutismo, em especial a Revolução Pernambucana (1817) e a Confederação do Equador (1824); também pioneiro da imprensa, através do periódico Typhis Pernambucano. Ligado à ordem carmelita, do Convento de Nossa Senhora do Carmo, transgrediu a tradicional complacência da igreja com os poderosos. Tudo isso no curto intervalo de 1779 a 1825, quando morreu com apenas 46 anos.

Quase 300 anos depois, essa narrativa ganha as páginas dos quadrinhos, na graphic novel A morte e a morte de Frei Caneca (Tomo I: filhos de Marte), um casamento da pesquisa histórica e da liberdade poética da ficção, como é deixado claro em sua nota introdutória. O projeto foi idealizado pelo roteirista e historiador Rodrigo Acioli Peixoto. O envolvimento com a época retratada vem de sua dissertação de mestrado na UFPE, sobre os primórdios da imprensa pernambucana. A arte é elaborada por vários desenhistas, lembrando o caráter coletivo das revoluções: Diogo Luna, Tiago Acioli, Mateus Samico, Luiz Ribeiro, Élio Borba, Pamella Araújo, Philippe Razeira, Raoni Assis, Toni Braga e o próprio Rodrigo.

Ao longo de suas páginas, a HQ não se furta em mostrar o lado mais sórdido da repressão aos revolucionários, o desespero da prisão, o medo da morte. Aliás, nas páginas predominam tons escuros, é um quadrinho dark: guardadas as devidas proporções, lembra Do inferno, a ficção histórica sobre Jack, o Estripador, feita por Alan Moore e Eddie Campbell, que mostra as ruas sombrias de Londres na era vitoriana. A narrativa começa com a morte de Caneca, fuzilado por suas tentativas de revolução, e, ao invés de enterrado, emparedado no interior da Igreja do Carmo. Até depois de sua morte, temia-se que o corpo sofresse retaliações.

Então, o roteiro retrocede e acompanha suas horas finais, para depois chegar aos eventos de 1817, e a posterior permanência humilhante na prisão, que alquebrou Caneca e seus companheiros, entre eles, as figuras históricas de Pedroso e Gervásio Pires. Surge o jornalista Cipriano Barata, como visitante ocasional, trazendo novas esperanças e notícias do mundo ao grupo que se encontrava preso. Graças a esse alento, “a Habitação das Trevas se transformou em Asilo de Luz”, e a cadeia foi transformada em espaço de aprendizado. Caneca manifesta novamente sua paixão pela geometria, que ensinou quando estava liberto.

NÍVEIS DIFERENTES
A ideia inicial seria resumir os eventos de sua vida num volume único. No processo, esse livro deu conta apenas do período até 1821, quando, após a libertação, o grupo volta a lutar contra a tirania. Com esse tomo realizado sob o financiamento da Lei de Incentivo – Funcultura, o próximo estará sujeito a uma espera em busca de novos apoios. O lançamento contou com o know-how da Livrinho de Papel Finíssimo, editora atípica que se dedica ao trabalho de incentivar e dar um tratamento gráfico adequado aos novos talentos.

A dificuldade de se produzir uma graphic novel foi sentida pelos autores, marinheiros de primeira viagem nesse tipo de empreitada. O leitor, que se emociona e se envolve com a história, pode notar a qualidade irregular de sua produção. A arte, por ser feita a várias mãos, tem níveis diferentes. Alterna momentos muito expressivos e alguns deslizes. A principal deficiência é a falta de clareza. O mesmo personagem pode ter dois rostos diferentes na mão de dois desenhistas; certas cenas tem arte-finalização confusa, em que o cenário é difícil de ser identificado. Tipo de coisa que leva o leitor a se perguntar o que está acontecendo, que situação é aquela, onde estão os personagens.

Se a prática leva à perfeição, é bom levarmos em conta que a produção de HQs no Recife ainda é incipiente, em termos de mercado, principalmente quando se fala de narrativas longas. Nas curtas, temos vários exemplos excelentes, entre eles a Ragu, antologia que congrega artistas pernambucanos, brasileiros e estrangeiros. Ainda é muito raro no Nordeste o aparecimento de uma graphic novel, ou seja, um álbum de quadrinhos contando uma única histórica ou histórias tematicamente ligadas.

A produção brasileira desses álbuns de quadrinhos vai bem, obrigado, com fluxo constante nas livrarias. Mas, em nosso cenário, que tem excelentes profissionais de ilustração e quadrinhos, o mercado é ainda imaturo, inclusive pela grande concentração das editoras no Sul/Sudeste. A morte e a morte de Frei Caneca surge como uma exceção a essa regra. 

GERMANO RABELLO, jornalista.

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