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“Sou uma espécie de pesquisadora da alma”

Fotógrafa, com trajetória associada aos indígenas, sobretudo ianomâmis, Claudia Andujar fala da sua relação com a fotografia, com os povos autóctones e das memórias da família no Holocausto

TEXTO Paulo Carvalho

01 de Agosto de 2013

Claudia Andujar

Claudia Andujar

Foto Ricardo Labastier/JC Imagem

Os índios ianomâmis, nas imagens de Claudia Andujar reunidas na exposição Marcados, estão identificados por placas numéricas que sinalizam a desonra, a degradação social, as doenças arrasando corpos virgens de qualquer defesa. Mas, denominadoras universais da sujeição, essas placas também trairiam o controle que propunham porque, quando em visita às aldeias ianomâmis em missões médicas realizadas entre 1981 e 1984, Claudia transcendeu a necessidade de simples retratos para uma ficha médica: registrou rostos irredutíveis ao dispositivo que os tentou capturar. Marcados para morrer, num silencioso e perene genocídio brasileiro, mas também para viver e resistir.

Andujar reverteu com retratos à eficácia simbólica de uma dupla anulação. Não apenas o desaparecimento cultural de um lado e o material do outro. Fez da foto de prontuário um dos mais impactantes trabalhos de fotografia contemporânea no Brasil, cuja ambivalência morte-vida opera ao lado da ambivalência arte-política.

A fotógrafa, hoje com 82 anos, esteve no Recife em maio, para inaugurar a exposição Marcados, na Fundação Joaquim Nabuco. Na sua fala, lembrou a conexão daquelas imagens – exibidas pela primeira vez na 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, e feitas por ela para o controle médico-burocrático dos indígenas – com a memória dos números e símbolos que tatuaram corpos eliminados no Holocausto. Durante a Segunda Guerra, toda a família paterna de Claudia, de origem húngara, foi exterminada.

No Recife, ela associou manifestamente seu trabalho junto aos índios à impossibilidade encenada pelo sobrevivente. Qual Primo Levi, a fotógrafa lembrou-nos de que a barbaridade cria em suas testemunhas a dolorosa sensação de que a vida seria em si prova de omissão e conivência. Não sobreviventes, mas cúmplices. “Vou confessar algo que nunca falei em público. Essa história me deixou com um trauma enorme. De uma certa maneira, com o sentido de não ter podido ir ao campo de concentração com eles e os salvado. Tenho uma culpa da qual nunca me liberei. Nunca. Sem dúvida, isso tem a ver com essa minha história com os ianomâmis, de querer salvá-los”.

Complexa sob qualquer ângulo que nos aproximemos, Andujar é uma das mais celebradas fotógrafas brasileiras. Seu trabalho é comissionado pela Galeria Vermelho, com a qual tem um acordo pouco comum: “qualquer obra que seja vendida, um terço fica com a galeria, um terço para mim e um terço para os ianomâmis”. O Instituto Inhotim, em Minas Gerais, prepara um pavilhão onde ficarão em exposição permanente mais de 500 imagens de seu acervo.

“Meu trabalho sempre foi uma busca de entender o outro que eu fotografava e, ao mesmo tempo, me buscar.” Sobre suas (quase) seis décadas de atividade como fotógrafa, Andujar conversou com a Continente.

CONTINENTE A senhora gostaria de falar um pouco sobre a sua chegada ao Brasil? O crítico Pietro Maria Bardi escreveu sobre suas pinturas: “(...) numa certa tela, Impressão da noite, composta de traços de espátula e pingos de cores, estendeu quase um mau humor, um desabafar de nervosismo, uma espécie de ardor melancólico, que celebra um cobiçado ponto de chegada; mas um resultado sem saída”. A senhora concorda com essa impressão inicial de Pietro Maria Bardi?
CLAUDIA ANDUJAR Desde o início, tive curiosidade de conhecer o país. Comecei a viajar sozinha, primeiramente pelo litoral paulista. Não sabia português e me comunicava com o que fosse possível. Eu não tinha a intenção de virar uma fotógrafa, mas desejava me comunicar com as pessoas, registrar minhas impressões. Assim, comecei a fotografar. Mais tarde é que pensei, bom, talvez realmente valesse fotografar de uma maneira mais profissional. Isso que o professor Bardi falou é verdade. Ele se interessou por minha pintura e minha história. Não era só uma questão de ele ter visto algumas poucas pinturas minhas. Talvez tenha percebido isso depois de algumas conversas que tivemos. Cheguei ao Brasil em 1955 e só viria a trabalhar no fotojornalismo local em 1966. Mas já tinha feito alguns trabalhos para a imprensa americana. Tive uma abertura lá, que, de fato, demorou a acontecer aqui. Como eu tinha vontade de conhecer o Brasil, acabei viajando bastante pelo país. Conheci o Darcy Ribeiro e ele sugeriu que eu visitasse uma aldeia indígena. Aceitei. Eram os índios carajás, da Ilha do Bananal, Rio Araguaia (Tocantins). Fui, sozinha. Fiquei dois meses para conhecê-los e fotografá-los. Comecei a tomar a fotografia como uma linguagem minha. Em uma visita a Nova York, mostrei meu trabalho com os carajás para algumas revistas. Abriu-se a possibilidade de publicação e de trabalhar como fotojornalista. Contribuiu para esse interesse o fato de o governo brasileiro estar, na época, construindo um local de turismo próximo à essa aldeia.

CONTINENTE A senhora realizaria reportagens importantes para a Realidade, como a dos jagunços, no Nordeste. Como foram esses trabalhos?
CLAUDIA ANDUJAR Para a Realidade, fiz trabalhos de 1966 a 1970. O com os jagunços foi uma sugestão deles. A proposta era entrevistar, ou melhor, conhecer fotograficamente esses jagunços. Contar suas histórias. Na revista, eu tinha a reputação de ser uma pessoa que ia aos lugares mais difíceis, às situações mais estranhas. O fato é que me dou bem em qualquer lugar. E não costumava viajar junto com o repórter. Geralmente, chegava depois de ele fazer as entrevistas. Eu preferia ir sozinha, sem alguém para me dizer: faz isso, faz aquilo. Enfim, sempre gostei de procurar os elementos importantes da reportagem, sozinha. Realizei um trabalho fotográfico com parteiras no Rio Grande do Sul. Essa reportagem ficou famosa. Fotografei o nascimento de uma criança. A Realidade colocou a foto da criança saindo da barriga na capa. A Igreja, e isso descobri depois, movimentou-se para retirar a revista de circulação. E conseguiu.


Foto: Claudia Andujar/Divulgação

CONTINENTE A senhora viajou aos Estados Unidos para cobrir os levantes dos movimentos de afirmação negra. Gostaria de falar um pouco sobre essa experiência?
CLAUDIA ANDUJAR Na época, estava casada com um norte-americano, fotógrafo, George Love. Ele era negro, da Carolina do Norte. Eu o conheci por ser fotógrafo e por ter publicado algumas reportagens, em especial uma sobre o Rio de Janeiro, que saiu pela revista Life. Procurava entrosar-me e acabei conhecendo o George. Em 1966, quando a Realidade começou a funcionar, trabalhamos os dois para a revista. Um editor quis fotografar a situação dos negros nos EUA. Pediram que o George fosse fazer e viajei com ele. Era a época dos levantes em Washington. George não se sentiu à vontade para fotografar e acabei indo no lugar dele. Foi complicado. Tentei entrar nos guetos, mas fui retirada de lá pela polícia negra. Pensaram que eu queria denunciar alguma coisa: registrar de maneira negativa o movimento deles. Tentei explicar que não, pois, trabalhando para a imprensa do Brasil, eu tinha todo interesse naquela mobilização, que aquilo também era algo importante para cá. Mas era realmente um momento muito complicado.

CONTINENTE A aproximação com o ser humano excluído sempre foi uma preocupação?
CLAUDIA ANDUJAR Meu interesse por fotografia sempre foi ligado a uma coisa interna, a uma razão minha, sem a finalidade de trabalhar para jornais ou revistas. Claro, no início era um meio totalmente novo. E procurei maneiras de me expressar que refletissem aquilo que sentia diante das coisas, das pessoas e das situações. Sempre tive essa disposição, esse desejo. Mas não possuía a técnica. O George Love era um fotógrafo formado nos EUA e tinha muito mais conhecimentos do que eu. Ele me abriu portas, nesse sentido. Portas para expressar melhor o que queria através de uma técnica mais avançada do que a que eu possuía. Ele era um fotógrafo excelente. Com ele aprendi sobre os filtros, sobre a revelação de filmes. Mas o fotógrafo que mais admirei nesse período de aprendizado foi o W. Eugene Smith. A fotografia dele, a sua maneira de se aproximar das pessoas estava mais perto daquilo que eu procurava. Com isso, não quero dizer que o George não me ajudou e, sim, que o nosso interesse, nosso approach era diferente. Eugene Smith tinha uma fotografia muito ligada ao humanismo, aquilo que sempre procurei. A última reportagem que fiz para a Realidade teve como tema a Amazônia. Foi a capa. Vários fotógrafos colaboraram, inclusive o George. Nós não trabalhávamos juntos, como eu já disse. Mas é interessante saber que, para esse número da revista, eu fotografei tudo do chão, enquanto o George fotografou tudo do ar, do avião. Sempre procurei o contato com as pessoas, ele, as paisagens.

CONTINENTE A partir daí, acontece sua aproximação definitiva com os índios? CLAUDIA ANDUJAR Em 1970, deixei a editora Abril e decidi dedicar-me a um trabalho exclusivamente meu, entre os índios ianomâmis, que conheci nessa última reportagem. O primeiro contato aconteceu numa localidade chamada Maturacá (AM). Encantei-me e procurei uma maneira de chegar a eles. Tive a sorte de conseguir duas bolsas, que ajudaram a me dedicar unicamente aos ianomâmis. Fiquei entre 1971 e 1977. No começo, eram idas e voltas, fiquei meses lá, depois voltei para São Paulo, para revelar os filmes, ver o que tinha produzido, como eu deveria continuar. Realizei muitas gravações. Queria entender quem eles são, qual a sua mitologia, todo o sobrenatural – o começo do mundo, o trabalho dos xamãs, tudo o que significavam seus ritos.

CONTINENTE Penso que a sua abordagem do xamanismo demonstra a complexidade do desafio que é se aproximar das representações do outro, com uma técnica e linguagem estrangeiras a elas, sem eclipsá-las.
CLAUDIA ANDUJAR Cada imagem tem uma história. O xamanismo foi algo que explorei muito, mas acabou sendo um trabalho não tão conhecido como os Marcados. Quando eles tomam alucinógenos, explicam que entram numa fase de sonho. Por isso que depois chamei essa parte do livro (A vulnerabilidade do ser) de Sonhos. Sonhos em que eles veem a ligação que o ser humano tem com a natureza.

CONTINENTE Seu trabalho com os ianomâmis é artístico e político. Gostaria de falar um pouco sobre a exposição Marcados, que veio ao Recife?
CLAUDIA ANDUJAR Marcados veio mais tarde. Durante a minha estada lá, foi construída a Rodovia Perimetral Norte. Foi uma invasão do território ianomâmi, com desmatamento e construção da estrada. Os índios sofreram muito. Entraram em contato com doenças desconhecidas. Aldeias inteiras sumiram. Fiquei muito tocada, tanto que, em 1977, quando fui expulsa da área pelo governo, fiquei desesperada. Juntei-me a uma organização em São Paulo, chamada Fundação Pró-Índio, formada por antropólogos, cientistas, índios e pessoas que lutavam por suas causas. Eles me perguntaram se eu concordava com a criação de uma ONG que pudesse lutar pela defesa da terra, da vida e da cultura dos ianomâmis. Dediquei-me a esse trabalho, que resultou no reconhecimento da terra indígena, em 1992. Eu ia menos às aldeias, mas utilizava o trabalho fotográfico para falar dos ianomâmis, para publicar quando foi possível e fazer uma campanha internacional. Nós nos voltamos para questões de saúde. Com dois médicos, começamos esse trabalho. Para fazê-lo, precisávamos conhecer os indivíduos. No começo, acompanhava os médicos e fotograva as pessoas que eram atendidas. As fotos foram utilizadas em fichas, elaboradas a partir de exame médico. Agora, a ideia de usar isso numa exposição aconteceu muito mais tarde, na 27ª Bienal.

CONTINENTE A senhora costuma dizer que não é nem jornalista nem antropóloga. O que deseja com a reivindicação do lugar de fotógrafa?
CLAUDIA ANDUJAR Sou uma pessoa que gosta de trabalhar sozinha. Sou autônoma em tudo que faço. Eu absorvi muito da cultura ianomâmi. A maneira de ver o mundo, as relações dos seres humanos, os mundos vegetal e animal, as constelações. Tenho uma admiração muito grande pela visão deles. Minha infância, na Hungria, o fato de toda a família do meu pai ter sido morta, todos eles terem sido marcados, tatuados com números. Sou, como posso dizer, uma pesquisadora da alma. Hoje, minha ligação com eles é afetiva. Onde posso, eu ajudo. Pretendo construir um banco de dados digitalizados, com todos os registros. Gostaria de deixar isso para eles. 

PAULO CARVALHO, jornalista e mestre em Comunicação pela UFPE.

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