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Susana e o judeu errante

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Setembro de 2013

Imagem Karina Freitas

As pessoas que compram ovos em embalagens de isopor nem imaginam que até bem pouco tempo negociantes batiam às portas da zona rural procurando a mercadoria para vendê-la na cidade. Donas de casa vendiam o que tinham juntado na semana e, quando havia poucos ovos, queixavam-se das galinhas no choco, das raposas, do consumo doméstico. O comprador balançava cada ovo junto ao ouvido, para não levar gorados e, se a dúvida persistia, olhava-o contra a luz de um candeeiro.

Arrumada num balaio, a frágil mercadoria era transportada na cabeça, léguas a pé. Um tropeço, e o sonho de lucro se desfazia como na fábula Laura e o pote de leite. Conheci alguns desses modestos comerciantes, ramo em que predominavam as mulheres. Percorriam longos trajetos, subiam e desciam serras, entravam por veredas. Ao fim de um dia de canseiras, pernoitavam na casa de um freguês. Tanto os compradores de “balaio na cabeça” como os vendedores de “maca às costas” sabiam contar histórias. Entreter a família hospedeira com narrativas orais se tornava uma obrigação, um pagamento da hospitalidade.

Aos comerciantes andarilhos, pedia-se que fizessem compras nas cidades, levassem encomendas aos parentes, cartas, recados e notícias. Criava-se intimidade com as famílias, uma rede de favores e pequenas intrigas. Num mundo sem televisão e com poucos rádios, onde as casas ficavam distantes umas das outras, os mascateiros representavam um vínculo com o mundo, um sinal de que as pessoas isoladas estavam vivas e de que existiam outros seres vivos iguais a elas.

Na nossa casa do Crato, uma mulher chamada Júlia fornecia os ovos. Era conhecida dos meus pais há muitos anos e por isso sentia-se à vontade na família. Tinha sempre um favor a pedir. A mim, mandava que escrevesse cartas e lesse trechos de livros. Carregava cordéis no balaio e meus tios afirmavam que possuía centenas de “versos”, como chamavam os livrinhos editados em tipografias rústicas e que representavam a mais importante literatura dos interiores nordestinos. Júlia sabia ler, mas não escrevia o próprio nome. Se possuía livros, é porque se dedicava a leituras, eu supunha. Então, por que pedia minha ajuda?

A cada visita me mandava ler Susana e o julgamento de Daniel, penúltima narrativa do livro desse profeta:

“Havia um homem que morava na Babilônia, chamado Joaquim. Ele havia desposado uma mulher chamada Susana, filha de Helcias, muito bela e temente a Deus. Seus pais também eram justos e haviam educado a filha na lei de Moisés. Joaquim era muito rico e possuía um jardim contíguo à sua casa. A ele acorriam os judeus, porque era o mais ilustre deles todos”.

A história famosa, tema de ópera, pinturas e gravuras, conta que dois anciões do povo hebreu se apaixonaram por Susana e como ela resistira ao assédio, eles a difamaram, dizendo que haviam sido tentados. Após a acusação, a mulher é rejeitada pelo marido, julgada pelos dois velhos juízes e condenada à morte. Quando vão executá-la, Daniel escuta os rogos da infeliz e apresenta-se para julgar o caso. O jovem profeta consegue inocentar Suzana e os dois velhos são condenados.

Minha ouvinte se comovia e chorava nas mesmas passagens da narrativa bíblica, exultando com a proclamação da verdade. Mandava que eu relesse alguns trechos, fazia comentários ou gemia queixosa. Eu não alcançava a obsessão pelo relato, o amor a Susana. Demorei a compreender os motivos desse culto. A outra obsessão de Júlia era o romance O judeu errante, baseado numa lenda que possui inúmeras versões. Uma delas conta que Jesus Cristo, na subida ao Gólgota, teria caído sob o peso da cruz, em frente à loja onde trabalhava o sapateiro Aasvero. Zombando, o homem gritara para o condenado que caminhasse. Jesus teria respondido que o sapateiro é quem caminharia pelo mundo até o fim dos tempos.

Dois temas impressionavam Júlia: o falso testemunho desmascarado – com a proclamação da inocência –, e a condenação de um homem a caminhar eternamente. Eu até compreendia que ela se sentisse um judeu errante, vagando pelo mundo com um balaio de ovos na cabeça, descalça, malvestida, debaixo de sol e chuva. Mas Susana, de que modo entrava em sua vida? Foi quando meu pai contou-me que Júlia fora acusada de trair o marido. Ele não aceitara sua defesa, tomando as duas filhas da pobre mulher e indo morar bem longe. Por esse motivo, eu escrevia tantas cartas lamuriosas, ouvia queixumes e presenciava cenas de lágrimas.

O outro mistério que cercava a vida de Júlia, além de seu apego aos livros, era o destino do dinheiro que ela apurava, em longas jornadas de trabalho. Não gastava nada consigo mesma, vestia roupas que as freguesas lhe davam, e comia pelas casas dos outros. Seu casebre ameaçava cair. E o dinheiro ganho? Há anos juntava para as filhas, porém nunca se teve notícia de que mandasse um único centavo para as meninas, como sempre as chamou, apesar dos anos passados.

Quando a encontraram morta, em casa, primeiro viram os cordéis, três edições gastas de O judeu errante e um volume da História Sagrada, com um cordão sebento marcando a narrativa de Susana. Debaixo de uma cama de varas, que nunca tinha uso, uma maleta de couro. Dentro dela, arrumadas com a cupidez de um usurário, centenas de cédulas, a maioria fora de circulação. Poupadas pelas traças, cheiravam a mofo e à coisa velha.

O trabalho de Júlia e seus sonhos, trocados em dinheiro de papel, demandavam um tempo que parecia eterno. Nessa ilusão de eternidade, as filhas cresceram e se casaram, sem jamais reencontrarem a mãe; as cédulas da maleta se tornaram inúteis, estragadas pela inflação, palavra complicada que minha inteligência infantil não alcançava ainda. 

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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