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Poesia do Nordeste sobre o palco

O grupo Feira de Teatro Popular estreia 'A lenda do Santo Fujão', peça totalmente interpretada em versos de cordel

TEXTO Leidson Ferraz

01 de Outubro de 2013

'A lenda do Santo Fujão' comemora os 45 anos da trupe

'A lenda do Santo Fujão' comemora os 45 anos da trupe

Foto Samuel Santos/Divulgação

Nada de luxo e riqueza! A estátua de um santo no município de Taquaritinga do Norte teima em não ficar na pomposa igreja recém-construída. Misteriosamente e diversas vezes, volta ao seu altar de origem numa pequenina capela. Esse foi o mote para o enredo da peça musicada A lenda do Santo Fujão, a mais nova produção do Grupo Feira de Teatro Popular, da cidade de Caruaru, uma das equipes mais longevas do teatro pernambucano, com história aclamada nacionalmente por público e crítica.

Desde 1969, quando surgiu como dissidência do Teatro Experimental de Arte (TEA), a trupe, cujo nome inicial era Grupo de Cultura Teatral, vem realizando peças memoráveis como Feira de Caruaru, Rua do Lixo, 24, A noite dos tambores silenciosos, Olha pro céu, meu amor e Auto das sete luas de barro. Esta última, considerada obra-prima do teatro brasileiro, recebeu prêmios como Molière, Mambembe e APCA, entre outros. Dos quase 20 textos encenados, mais da metade foi escrita pelo dramaturgo caruaruense Vital Santos, diretor também de quase todas as montagens.

Na mais nova realização, é o recifense Samuel Santos, assumidamente “cria de Vital”, quem assume o papel de autor e diretor no grupo. “Aprendi muito vendo Auto das sete luas de barro, um espetáculo de encantamento impactante. Tanto que me aproximei do grupo e cheguei a atuar em quatro espetáculos seguidos com Vital, em produções independentes, Concerto para Virgulino sem orquestra, O príncipe dos mares de Olinda contra a fúria das águas, Rua do Lixo, 24 e Uma canção para Othello, neste último, contracenando com os atores do Feira, em Caruaru. O grupo é uma de minhas bases”, conclui.

O texto de A lenda do Santo Fujão nasceu de uma oficina teatral ministrada por Samuel em Taquaritinga do Norte. “Descobri essa lenda do padroeiro da cidade, escrevi a peça e, logo depois, percebi que somente o Grupo Feira de Teatro Popular poderia representá-la. As frases são todas rimadas como num grande cordel, difíceis, mas nem parecem na boca deste elenco, tamanha a verdade”, elogia. O projeto deveria ter estreado na comemoração dos 40 anos da trupe, mas, somente neste mês, com o incentivo do Funcultura, abre as celebrações dos 45 anos da equipe, conhecida por trazer a linguagem popular e musical ao palco.

“Vital é minha maior influência estética e de musicalidade. Ver como ele transformava o palco com o mínimo de elementos e sempre ligado às raízes nordestinas, inclusive no seu aspecto político-social, sempre me encantou muito. Quis dar esse presente ao grupo e prestar minha homenagem a ele”, revela Samuel Santos. A peça segue, propositadamente, o estilo que consagrou o Feira, com elenco numeroso de atores e músicos, trilha ao vivo, e atenção especial ao universo do Nordeste, “mas também ligado à commedia dell’arte, ao coro grego, ao circo, à farsa. É aquilo que Hermilo Borba Filho falou: está tudo atrelado a uma universalidade”, lembra o diretor.


Entre as encenações do grupo, está Olha pro céu, meu amor,
de 1983. Foto: Arquivo Projeto Memórias da Cena Pernambucana/Divulgação

BRINCANTES
No enredo, o casal Maria (a que vive de joelhos) e José (o descrente) encontra uma imagem de Santo Amaro e depositam-na em uma humilde capela. A fama de milagreiro desperta o interesse de alguns poderosos, que transferem a estátua para uma grande igreja dourada. Mas o santo personificado acaba fugindo e, no caminho, vai encontrando personagens das brincadeiras populares, como dois palhaços bêbados de um circo sem lona, alguns mamulengos, duas velhas despudoradas do cavalo-marinho e uma turma de saltimbancos. Nessa fantasia, discute-se o mau uso da fé, a ostentação da Igreja, o abuso de poder e a importância do brincar. “É um espetáculo híbrido, que mistura estéticas diversas”, lembra Samuel.

William Smith interpreta o protagonista. “É um desafio imenso fazer uma personagem múltipla sendo 10 numa só. Esse santo é Mateus, Cancão, João Grilo, Trupizupe, Bastião, Macunaíma... Uma confusão deliciosa dentro de mim”, atesta. Se a trama e a estética são tão parecidas com o caminho trilhado por Vital para o Grupo Feira, qual a diferença que dá Samuel a essa montagem? “O uso de técnicas contemporâneas na nossa preparação. Samuel trouxe a possibilidade do quanto é infinda a pesquisa no universo artístico, um estudo físico e mental. É transpiração e conhecimento”, define o ator.

Com trabalho corporal de Helder Vasconcelos, direção de arte de Java Araújo e iluminação de O Poste Soluções Luminosas, A lenda do Santo Fujão estreará na programação do 23º Feteag (Festival de Teatro do Agreste), no dia 25 de outubro, no Teatro João Lyra Filho, em Caruaru, cumprindo temporada até final de novembro. O elenco conta ainda com Iva Araújo, Nadja Moraes, Marcelo Francisco, Gilmar Teixeira, Adeilza Monteiro, Jailton Araújo, Zi Rodrigues e Jô Albuquerque, além dos músicos Jadilson Lourenço, Vinícius Leite, Felipe Magoo, Carlinhos Aril e João Vitor.

MAMBEMBÃO
O Grupo de Cultura Teatral, como inicialmente se chamava o Grupo Feira de Teatro Popular, foi o coletivo pernambucano que mais circulou pelo país nas décadas de 1970 e 1980, graças ao Projeto Mambembão. Desde a estreia com Feira de Caruaru, a naturalidade dos artistas em cena chamou a atenção, com gente “do povo” compondo os elencos. O dramaturgo e diretor Vital Santos soube tirar proveito dos tipos e sotaques, em montagens que primavam pela inventividade do palco quase sempre nu, transformado em ambientes variados pelo mínimo de adereços e luz, valorizando os intérpretes pelo seu conjunto.


A árvore dos mamulengos critica a ditadura militar.
Foto: Arquivo Projeto Memórias da Cena Pernambucana/Divulgação

A música ao vivo sempre se fez presente. Compositores como Onildo Almeida, Josias Albuquerque e Jadilson Lourenço, este último na direção musical de A lenda do Santo Fujão, foram parceiros imprescindíveis para a maior identificação das plateias. Em sua escrita,Vital Santos – além de abordar quase sempre a miséria humana, mas com humor e poesia – nunca esqueceu de pontuar questões político-sociais. Foi assim em A menor pausa, quando usou a menstruação como metáfora do sangue derramado no país em plena ditadura; ou n’Árvore dos mamulengos, em que desbanca a autoridade militar pela esperteza popular.

Ou ainda em A noite dos tambores silenciosos, tratando das Ligas Camponesas e do direito do trabalhador ter seu chão. Mas foi com Auto das sete luas de barro que Vital ganhou notoriedade no país inteiro, ao criar uma fantasia musical sobre a vida do Mestre Vitalino, denunciando a miséria do ceramista e, consequentemente, do próprio artista brasileiro. Hermilo Borba Filho o reconheceu como o “Molière do Sertão” e não lhe faltaram prêmios Brasil afora.

Mas Vital não ficou preso apenas ao seu grupo caruaruense. Sua mais recente experiência foi com Cantigas do sol – Dom Quixote de cordel, de 2009, teatralização da vida de Luiz Gonzaga a partir de suas canções, parceria da Dramart Produções com o produtor Edgar Albuquerque. Hoje, Vital recupera-se de um problema na coluna, mas ainda com planos para novas obras.

O SEBA
O espetáculo A lenda do Santo Fujão presta homenagem a um dos mais conhecidos integrantes do Grupo Feira de Teatro Popular, o ator, mamulengueiro e produtor Sebastião Alves, o Seba. Ausente da cena por problemas de saúde, sua trajetória de vida daria não só uma peça de teatro, algo que já aconteceu na história da equipe caruaruense, mas um grande filme.

Natural de Sertânia, desde pequeno trabalhou como catador de algodão, padeiro e entregador de pães. Não conhecia teatro, mas sabia que queria ser artista. “De tela grande”, lembra. Partiu para o Rio de Janeiro, mas só conseguiu emprego nas obras do metrô, como marteleteiro. Um dia antes de deixar o Rio para ir a Caruaru, dirigindo-se a uma praça conhecida como point de celebridades, foi atropelado por uma ambulância. “Queria ter certeza de que aqueles artistas eram reais”, recorda.


Elementos da farsa e do circo estão em espetáculos como Rua do Lixo, 24.
Foto: Hans Von Manteuffel/Divulgação

O envolvimento com o teatro aconteceu na capital do Agreste. Paralelamente ao trabalho como fiador de aviamentos, foi chamado para atuar na peça Solte o boi na rua, de Vital Santos, com o Grupo de Teatro Ivan Brandão, dirigido por Nildo Garbo, em 1979. Numa ida ao Festival Nacional de Teatro Amador, em Ponta Grossa, ouviu de um jurado: “Sua expressão é muito boa. Onde aprendeu?”. “Assistindo à televisão!”, foi a resposta. Em 1980, entrou como ator substituto n’Auto das sete luas de barro. “Estreei como um dos filhos de Vitalino no Feira, já circulando pelo país”, e não largou mais o grupo.

Em 1981, no elenco de A noite dos tambores silenciosos, contou sua história de vida aos companheiros de cena. A experiência tragicômica em terras cariocas deu mote para Vital criar o espetáculo Olha pro céu, meu amor. Seba interpretava Bom Cabelo, um poeta popular que larga Caruaru e vai conhecer Roberto Carlos no Rio, com o sonho de se tornar famoso, mas só consegue ser funcionário das obras do metrô. Ao final, morre atropelado. A peça, com versões em 1983 e 2005, virou um grande sucesso.

Graças a uma cena de A noite dos tambores silenciosos, com tenda de bonecos, apaixonou-se pelo mamulengo. O resultado foi a criação do Mamusebá, em 1985, um dos filhos do Grupo Feira. “Teatro feito ao sabor das circunstâncias. Tudo resumido no pobre, no rico e na autoridade”, revela. Nas apresentações para crianças ou adultos, muitas em aniversários ou eventos, o improviso é certeiro, reunindo personagens divertidos como Benedito, Tenente Zeca Galo ou Filomena.

O Mamusebá conquistou tanto o coração de Seba, que ele transformou a própria casa no Teatro Garagem Mamusebá (Rua Maria José de Souza, 200, Cidade Alta de Caruaru). Todo último domingo do mês faz sessão gratuita para crianças, sem ajuda alguma do poder público. “Somente quem pode leva alimento para doação à comunidade. O terrível é que, infelizmente, não existe política séria no país para manter seus artistas”, critica. Mesmo assim, criou também o núcleo Pernas Prá Circular, com encenações em pernas de pau.

Nos últimos tempos, Seba diminuiu bastante sua participação em espetáculos do Grupo Feira por conta da luta contra um câncer. “Emagreci muito, fiz 28 sessões de radioterapia, diversas cirurgias, mas venci. E não vou parar”, diz, lembrando que apresenta o programa diário A casa do Benedito, na Caruaru FM, onde toca “forró sem maquiagem”. Como sempre, valorizando os autênticos artistas populares, seus pares! 

LEIDSON FERRAZ, jornalista e pesquisador de Artes Cênicas.

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