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Pop: Como uma onda no mar

Opiniões da crítica e do público, nem sempre afinadas, podem mudar de perspectiva ao longo do tempo. O que era bom vira lixo, o que era ruim vira joia. Tudo isso, por quê?

TEXTO

01 de Outubro de 2013

Imagem Hallina Beltrão

Em março deste ano, Caetano Veloso deu uma declaração que motivou, em parte, a concepção deste texto. Ele foi convidado pelo portal Uol a dar um relato sobre o que testemunhou no início da beatlemania dos anos 1960, em virtude dos 50 anos do lançamento do Please please me, disco de estreia do quarteto de Liverpool. Caetano fez uma comparação da musicalidade dos Beatles em seus primeiros anos com a de um ídolo adolescente dos anos 2010. “Cara, em 1963, quando eles apareceram, e eu ouvi as primeiras vezes, era como hoje a pessoa ouvir Justin Bieber. Não era mais do que isso.”

Difícil dizer se foi mais uma bravata do músico baiano ou apenas uma inocente comparação. O fato é que a frase de Caetano põe em debate uma série de pesos e medidas ao longo da história da cultura popular. Em uma primeira leitura, faz todo o sentido comparar o começo das trajetórias de Beatles e Bieber. Ambos investiram em canções de letras de amor pueril e arranjos de estrutura convencional e de fácil apelo ao público. Ambos causaram ondas de histeria em seus jovens fãs ao redor do mundo. Ambos apostaram na beleza física e no carisma como poderosas armas de marketing pessoal. No entanto, a outra leitura salta rapidamente à memória: afinal, não seria um despropósito comparar a banda mais aclamada da música pop com um jovem artista que tem apenas seis anos de carreira, e portanto, um longo caminho pela frente?

O cerne da questão está justamente em como as diferentes esferas de uma sociedade de consumo – o público, a crítica cultural, a imprensa – avalia e reavalia as próprias noções de cultura e arte, fazendo com que artistas outrora marginalizados ganhem os holofotes e vice-versa. É esquisito pensar nisso hoje em dia, mas o duradouro rock’n’roll já era considerado um gênero em baixa no começo dos anos 1960 e coube aos próprios Beatles resgatarem-no de uma vez por todas. A prova disso foi a famosa frase do executivo Dick Rowe, da gravadora Decca, dita ao empresário do quarteto, Brian Epstein, antes de seus clientes revolucionarem o mundo: “Bandas com guitarras estão fora de moda”.


The Beatles. Foto: Divulgação

Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr tiveram uma década de discos aclamados pela crítica e público, cuja reputação permaneceu forte até hoje. Podemos voltar à entrevista de Caetano, porém, para chegar a outro bom exemplo do vaivém do chamado “bom gosto”. Em meados dos anos 1920 e 1930, na Lei Seca dos Estados Unidos, o jazz era difundido como um estilo marginal, em clubes que burlavam a lei vendendo bebidas alcoólicas. Uma situação bem diferente das décadas seguintes, sendo pouco a pouco alçado ao elitismo. Com a palavra, Caetano: “Achei bonitinhas as canções (dos Beatles), um negócio meio simplório assim, porque, veja bem, eu gostava do Thelonious Monk!”, justificou o tropicalista, citando um dos ícones do jazz contemporâneo como uma referência de bom gosto.

Mas os exemplos não ficam apenas na música, é claro. No cinema, nomes como Alfred Hitchcock, Steven Spielberg, John Hughes e o nosso José Mojica Marins já foram considerados artistas medíocres, ou, se muito, realizadores apenas competentes que focavam no apelo popular. Com o tempo, passaram a ter seus méritos reconhecidos como cineastas autorais. Quando se fala em Van Gogh, logo é lembrado o fato de o pintor holandês somente ter ganhado reconhecimento após sua morte. Existem até casos de mídias inteiras que foram marginalizadas por muito tempo, como os quadrinhos e os video games. A primeira ganhou novo olhar, a partir de obras para adultos de mestres do gênero, como Alan Moore e Neil Gaiman, nos anos 1980. Enquanto a segunda constitui-se, hoje, na indústria de entretenimento mais lucrativa do mundo, superando antigas campeãs, como a fonográfica e a cinematográfica, além de ter conquistado espaço nos circuitos de exposições de arte.

RESGATES
As motivações para essas marés de reconhecimento são de difícil identificação, e variam de acordo com cada caso. Até mesmo fatos aparentemente prosaicos podem ter alguma influência, como aconteceu aos Mutantes. Por anos relegados à nota de rodapé no movimento tropicalista, foram “redescobertos” com o relançamento do catálogo da banda em CD, nos anos 1990. E o curioso é que tiveram um impacto maior fora do país. Kurt Cobain, do Nirvana, deu entrevista no Brasil com os discos dos Mutantes em mãos. Também com ajuda externa, Tom Zé foi resgatado do limbo nos anos 1980, quando o ex-Talking Heads David Byrne o convidou para integrar o seu selo de world music, o Luaka Bop.


Justin Bieber. Foto: Divulgação

Para o crítico de música Camilo Rocha, a idade do leitor/ espectador/ ouvinte é um dos fatores mais importantes para a redefinição de valores culturais. “Ela tende a intensificar a acomodação e o conservadorismo, a noção de que ‘no meu tempo era melhor’ e, consequentemente, a incapacidade de apreciar o ‘novo’ como fazia anos atrás. Por outro lado, a idade também pode significar acúmulo de conhecimento, de referências, e isso pode mudar a maneira como se vê e ouve muita coisa”, pondera.

Camilo também acredita que o futuro apresenta diferentes contextos e traz chances para artistas outrora marginalizados. “A estética e o som do Velvet Underground, totalmente desconhecidos em sua época, faziam sentido para o pós-punk. A disco music, repudiada nos anos 1980, tinha tudo a ver com a música eletrônica, que a revalorizou.”

Mas será que há algum período médio para que um artista ou obra sejam redescobertos? A crítica de cinema Ana Maria Bahiana, que mora nos Estados Unidos, acredita que, no Brasil, há uma maior volatilidade nesse sentido. “Pelo que vejo de longe, o tempo médio (do brasileiro para redescobrir artistas) é uma semana, se tanto. Aqui, nos EUA, os gostos e preferências são claramente geracionais.” Ela não arrisca uma resposta definitiva sobre o que interfere no gosto das pessoas. “Para saber isso hoje, no Brasil, eu precisaria de uma bolsa de pesquisa. Nos Estados Unidos, o consenso criado pelas mídias digitais e sociais é, atualmente, o fator dominante.”


Em declaração ambígua e provocativa, Caetano Veloso disse que, no início
dos anos 1960, ouvir os Beatles era o mesmo que ouvir Justin Bieber.
Foto: Divulgação

O músico e professor do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP) Walter Garcia defende que o processo cada vez maior de massificação na indústria cultural, desde a década de 1980, nos grandes centros brasileiros, vem se tornando um fator definidor do gosto popular. Falando especificamente da música, Garcia aponta aspectos como a difusão massiva e descartável de canções no rádio e TV; o sucesso de vendas dessas canções por um curto período de tempo; a propaganda, positiva ou negativa, dessas mesmas canções na grande imprensa; a produção marginal de canções que, permanecendo à margem do mercado hegemônico ou nele se inserindo, está pautada em fórmulas comerciais já testadas e aprovadas; além do bom e velho boca a boca.

No entanto, segundo o professor, o trabalho do grupo de rap paulistano Racionais MC’s é uma dessas exceções que abriu caminhos diversos nesse panorama e confundiu os parâmetros pré-estabelecidos de gosto nos diferentes públicos. “Escutar a obra dos Racionais permite que qualquer ouvinte estimule sua sensibilidade e experimente como é sobreviver nas periferias dos grandes centros urbanos brasileiros, na virada do século 20 para o século 21. Se o ouvinte habita (imaginariamente ou não) no lado de fora das periferias, precisará ultrapassar determinações de classe, as quais muitas vezes se confundem com o chamado gosto pessoal, a fim de que a sua sensibilidade se aguce na audição dessa obra”, teoriza Garcia.

Um caso como o dos Racionais põe em xeque o conceito difundido pelo sociólogo Pierre Bourdieu, um dos maiores estudiosos do gosto. O francês defendia que o gosto e as práticas de cultura de cada um de nós são resultados de um feixe de condições específicas de socialização. No livro A distinção – crítica social do julgamento, Bourdieu afirmava que o gosto cultural e os estilos de vida de classes sociais distintas a burguesia, a classe média e os operários estão profundamente marcadas pelas trajetórias sociais vividas por cada um deles. Assim, de um modo geral, os chamados “bom” e “mau gosto” eram resultado de diferenças de origem e de oportunidades sociais. O fenômeno dos Racionais e a popularização do funk carioca causam uma saudável bagunça nessa ideia, pois são modelos musicais nascidos na periferia que se tornaram amplamente aceitos nas classes econômicas mais altas.

Com circunstâncias tão complexas, seria então virtualmente impossível chegar a uma conclusão além do “gosto não se discute”? Ana Maria Bahiana acha que, a esse respeito, uma ideia sempre prevalece: “O ser humano prefere o belo ao feio, o harmonioso ao desarmonioso, e adora uma história bem-contada. Isso vem das cavernas, e não creio que mude nos próximos séculos”. Se Caetano estiver certo em sua comparação, talvez Justin Bieber ainda esteja esperando para ter seu momento Beatles no futuro. Basta que as próximas gerações se deem conta disso... ou não. 

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