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Sambadas: Da poeira se faz o brilho

Encontros, que se intensificam no final do ano e servem como ensaios para a folia, são os espaços mais espontâneos para apreciação das manifestações artísticas populares

TEXTO NICE LIMA
FOTOS ROBERTA GUIMARÃES

01 de Dezembro de 2013

Brincantes dançam nos ensaios abertos do Cavalo Marinho

Brincantes dançam nos ensaios abertos do Cavalo Marinho

Foto Roberta Guimarães

A chegada do segundo semestre de cada ano no interior de Pernambuco representa um período de recomeço, preparação para as grandes festas dos diferentes tipos de brincadeiras da Zona da Mata Norte. É o tempo das sambadas de maracatu, caboclinho, coco, ciranda, cavalo-marinho.

A origem da palavra samba remete a uma derivação do quimbundo “semba”, que significa umbigada, ou do “umbumdo samba”, que significa estar animado. Há ainda uma linha que entende a origem da palavra ligada à língua luba e a outras línguas bantas, em que samba significa “pular” ou “saltar com alegria”. Assim, com base nas teorizações em torno da palavra samba, já dá para concluir que, ao contrário do que muita gente ainda imagina, samba é mais do que um ritmo popular do carnaval carioca.

Samba representa a festa, sambada é encontro para se exaltar e afinar determinada brincadeira; os ensaios das variadas manifestações culturais em que a comunidade vai para ver mestres se desafiando, pessoas afinando as brincadeiras com ou sem objetivos de uma posterior apresentação oficial nos palcos maiores dos festivais, encontros produzidos pela iniciativa pública ou por produtores culturais.

Um terreiro batido, plano, varrido ou as pontas de ruas calçadas se transformam no espaço para as apresentações que, no geral, não possuem rigor quanto ao uso de figurino especial, número mínimo de brincantes, tempo de duração (uma sambada de caboclinho pode durar uma hora, enquanto uma sambada de cavalo-marinho, das mais animadas, começa à noite e rompe a madrugada, mesmo com a intensidade dos passos frenéticos da dança e da música). O cenário é composto por elementos simples: algumas gambiarras para iluminar o terreiro, barracas em que são vendidas as bebidas e os tira-gostos, e amplificadores e microfones modestos ou, quando muito, carros de som para amplificar as vozes, esses mais comumente encontrados nas sambadas de maracatu.

Preparação é uma palavra que define muito as sambadas. A pesquisadora Maria Alice Amorim destaca, no livro Carnaval: cortejos e improvisos, que, no caso do maracatu de baque solto – assim como os bordadores precisam preparar as fantasias da “caboclaria” e os caboclos devem sair pelas ruas e estradas com o surrão nas costas em preparo físico (e também religioso) –, o brinquedo precisa de reuniões em torno do mestre, do terno (grupo de músicos tocadores de cuíca, caixa, mineiro e gonguê), para afinar tudo para o próximo Carnaval, daí a importância de se realizar as sambadas.

Há mais de 30 anos em meio à brincadeira do maracatu rural, o Mestre João Paulo, do Leão Misterioso de Nazaré da Mata, considera a sambada um grande exercício para cada folgazão, do mestre cantador ao dançante, que fará as manobras do caboclo de lança, e também uma oportunidade de reunir todos os integrantes do maracatu: “A gente junta o grupo, tem um que mora em Lagoa Seca, outro mora no Recife... Aí, quando tem esse ensaio, a gente dá um jeitinho de juntar os componentes todos, e faz aquela festa, aquela confraternização, e cada qual já fica sabendo o que vai fazer no carnaval.”


Para o mestre Biu Alexandre, a brincadeira de terreiro revigora os brincantes

Para Manuel Carlos de França, o popular Barachinha, primo de João Paulo: “Onde se conhece o autêntico maracatuzeiro é no terreiro, é onde a gente fica observando quem sabe dançar, quem gosta de dançar, porque eu acho que no Carnaval é só uma exibição de fantasia”, destaca o mestre do Maracatu Leão Mimoso, grupo surgido em 1984, em Upatininga, distrito de Aliança. Outra característica forte das sambadas é a grande oportunidade que os cantadores têm de improvisar na poesia, embora muitos entoem também versos de balaio, aqueles previamente decorados. “Todo mestre de maracatu sai de casa já com um balaio pronto, quer queira, quer não queira, ele acaba cantando alguma coisa que ele já sonhou em casa, já pensou em casa... Agora, com certeza, tem um que improvisa mais que o outro. Mas, de acordo com a sambada, a gente é forçado a improvisar, tudo vai do momento, da inspiração da gente”, afirma Barachinha.

POESIA ORAL
Para o músico e pesquisador Climério Oliveira – autor de Batuque book maracatu e Batuque book caboclinhos –, as sambadas são ambientes geralmente frequentados por apreciadores dessa poesia oral, pessoas que conhecem muito essa poética e podem avaliar que mestre cantador está tendo desempenho excelente, regular, ou fraco. “A partir do bom desempenho do mestre, o maracatu dele cresce politicamente na comunidade de maracatus”, destaca Climério.

Quem também conhece de muito perto as sambadas de maracatu é o Mestre Biu Alexandre, morador da cidade de Condado, também da Mata Norte de Pernambuco. Desde 1970 ele tem o seu Leão de Ouro, mas, para ele, a realização mais plena acontece nas brincadeiras do cavalo-marinho Estrela de Ouro, grupo surgido em 1979. Ao longo dos seus 71 anos de vida, Biu Alexandre coordena de perto as atividades dos dois grupos, embora seja o cavalo-marinho, esse variante do bumba-meu-boi, composto de mais de 70 personagens e caracterizado pela mistura de dança, teatro e música, o que mais apaixona Seu Biu.

Ele considera essa brincadeira de terreiro um elemento que revigora os brincantes: “O cavalo-marinho desenvolve os nervos da gente, as juntas da gente, a gente fica mais maneiro, eu tenho paixão pelo cavalo-marinho, ele é uma vitamina para nós”.

Biu Alexandre destaca que os ensaios desse brinquedo já foram mais frequentes, começavam geralmente nos meses de junho, ou agosto. Hoje em dia, o que se vê mais amiúde são sambadas já no ciclo natalino, ou apresentações contratadas para eventos, estas, de tempo muito mais reduzido: “A diferença é esta: se a gente vai fazer uma apresentação nesses cantos (apresentações contratadas), não é para a gente brincar uma noite toda, a gente puxa pra acabar logo, o cavalo-marinho completo é muita coisa. Eu acho melhor brincar uma noite toda do que brincar meia hora”.

Nessas sambadas, também existe a presença de pessoas de fora, pesquisadores, turistas, interessados em registrar e conhecer as apresentações: “É uma brincadeira que atrai muita gente para assistir. Todos que brincam cavalo-marinho são amostrados, gostam muito de se amostrar e quando tem gente de fora é pior, aí é que se amostram bonito (risos)”, declara Biu Alexandre.


Mestre Barachinha defende que a sambada provoca a arte de improvisar

Mas é importante considerar, principalmente, a participação de pessoas da comunidade nas sambadas de maracatu, cavalo-marinho, caboclinho. Elas vão para se divertir, dançar, beber. Mas – se não são apresentações oficiais, divulgadas na mídia, e com todo o aparato de uma divulgação massiva e/ou de interesses turísticos – o que leva as pessoas a frequentar as sambadas? Para muitos, o interesse parte justamente por serem encontros mais espontâneos, em que ainda é possível apreciar as brincadeiras com mais autenticidade, pois estão livres das amarras das apresentações nos grandes palcos.

Na opinião de Climério Oliveira, outro grande segredo do prestígio das sambadas na própria comunidade – ganhando, em muitos casos, a concorrência com a televisão – é que se impõem como eventos de força: “Elas não são importantes apenas porque meia dúzia de pesquisadores o afirma, mas porque se impõem; a energia delas tem resistido à tour de force da mass media, que tenta sugar toda a atenção para si. Nas sambadas, as pessoas discutem seus problemas, desabafam, discutem política, trocam informações sobre trabalho e sobre tudo o mais, conhecem novas pessoas e por aí vai”, destaca o pesquisador.

LIMITAÇÕES
Por outro lado, não menos verdadeira é a limitação que as sambadas encontram dentro da própria comunidade, pois há também pessoas pouco condescendentes às brincadeiras que se estendem até altas horas, conforme depõe Mestre Grimário, do Caboclinho Tupynambá de Goiana: “Tem gente que não gosta porque faz zoada, quando demora muito, liga até pra polícia”. Mas, de maneira geral, o Caboclinho Tupynambá não encontra muitas adversidades na comunidade onde está situado. Os ensaios, iniciados em julho e que seguem até o Carnaval, costumam durar cerca de 60 minutos. No caso do Tupynambá, o que colabora para que os ensaios se iniciem e se encerrem cedo, além do acordo com a comunidade, é o fato de esse caboclinho contar com um número grande de crianças e adolescentes.

Nos ensaios do Caboclinho Tupynambá, a atenção se volta primordialmente para a dança. É o momento em que os componentes afinam os passos, e serve para deixá-los mais “maneiros”, leves, adquirirem resistência para o Carnaval. “Tem gente que passa três, quatro, cinco meses para aprender. O motivo do ensaio é esse, que a pessoa aprenda, para quando chegar numa apresentação – seja ela em Goiana, João Pessoa, no Recife, em qualquer canto – todo mundo chegue dançando por igual”, destaca Mestre Grimário.

Também nas sambadas do Tupynambá há a oportunidade de os músicos exercitarem os toques. Com as maracas, pífanos, caixa de guerra e atabaque são executados os ritmos sambada (guerra), perré, tesoura, macumba do índio e baião, além das loas dos mestres.

Em todas as brincadeiras citadas, o que se percebe é que, mesmo com a ausência, nas sambadas, das exuberantes indumentárias – preparadas durante meses para o Carnaval, com o mesmo zelo de versos e passos –, prevalece a poeira das brincadeiras, que dá um colorido especial a elas, por mais incoerente que isso possa parecer ao leigo ou a quem aprecia as brincadeiras pela primeira vez.

Afinal, muito antes de as purpurinas, as penas e as lantejoulas estarem presentes nas apresentações “oficiais” do Carnaval, é a poeira dos terreiros batidos que enche de energia os brincantes dessas manifestações. Talvez seja essa poeira a tal “vitamina” à qual se referiu o Mestre Biu Alexandre de Condado. 

NICE LIMA, radialista e professora.
ROBERTA GUIMARÃES, fotógrafa.

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