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A metafísica da porta

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

01 de Janeiro de 2014

Imagem Colagem de Karina Freitas/Fotos Divulgação Fundarpe

Os brincantes se aproximam da casa que os receberá para a festa. Escutam-se longe o tropel de passos, o canto a duas vozes das marchas de estrada, as crianças respondendo num tom agudo, acima do vozeirão adulto. São homens, rapazes e meninos, embora usem vestidos pregueados, anáguas de renda, fitas e espelhos. As roupas imitam as cotas de malha dos cavaleiros andantes. Um capacete confeccionado com papelão, vidrilhos e areia prateada – do qual pendem fitas das mais diversas cores –, e uma espada de aço na mão direita completam o figurino medieval. O campo de batalha a que se dirigem é a porta de uma casa e o terreiro em frente. Irão representar um auto de reisados, que dura a noite toda, à mercê dos improvisos e da cachaça que os anfitriões oferecem.

O número de cantos de um reisado, antes dos brincantes chegarem à casa onde acontecerá a festa, depende do repertório do mestre, contramestre e violeiro. O valor do brinquedo se mede pelos entremezes que ele representa, pelos improvisos do mestre, pela graça dos Mateus, pelas coreografias e afinação das vozes nos cordões de figuras. E por muitas habilidades, como a destreza em jogar as espadas simulando uma batalha, a imitação de mulheres nos papéis femininos, a dança com ritmo e cadência.

Mas não é sobre esses valores que desejo escrever. Dividido em cinco partes – marcha de estrada, abrição da porta, divino, chamada das figuras e despedida – o reisado me interessa pela metafísica do segundo entremez. Quando os brincantes chegam à casa para celebrar a festa, encontram todas as portas e janelas fechadas, num ato de interdição à festa. Entristecidos e surpresos, eles cantam:

Abra a porta gente
que eu venho ferido
pela falsidade tão grande
dos meus inimigos.

Se tu vens ferido
chega pra dentro
sangue do meu peito jorrando
serve de alimento.

De nada vale o rogo para que a porta se abra; ela continua fechada. Sucedem-se loas, rezas, cantigas épicas, sortilégios, tudo em vão. Apelam aos Mateus, os palhaços da brincadeira, tratados com desprezo por “meus negos”. De rostos encarvoados, roupas grosseiras, rosários extravagantes cruzando o corpo e cafuringas nas cabeças, os dois correm de um lado para outro, entre os brincantes e a plateia. O mestre ordena que os Mateus rezem. Eles não se fazem esperar e declamam uma enfieira de versos sem pé nem cabeça, baboseiras de duplo sentido, cheias de palavrões e apelos eróticos. A cena pode durar uma hora. O mestre busca trazer os Mateus para a ordem do sagrado, porém os safados apelam ao burlesco e ao profano. As pessoas já assistiram à representação uma centena de vezes, conhecem o desfecho da farsa, e mesmo assim riem e participam. Sabem que as rezas do mestre jamais abrirão a porta. São os dois sujeitinhos sem valor, os Mateus, com suas orações atravessadas, contrapondo o profano ao sagrado, invertendo a ordem do mundo celestial e terreno, que alcançam o milagre de abrir a porta da casa para o ato seguinte da celebração: o divino.

O sortilégio miraculoso, que faz a porta se abrir, é quase sempre um trava-língua de duplo sentido:

Eu vi o velho Felix
com um fole velho nas costas.
Quando mais fede o fole velho,
mais fede o velho Felix.

O resto vocês imaginam, misturando às pressas fede, fole, Felix... Também podem imaginar a transgressão da rígida hierarquia social, política e religiosa, alcançada pela linguagem do teatro popular de rua, com seus valores comuns, terreais, erotizados. A subversão dos Mateus abre a porta. De nada valem as lamúrias do rei:

Olha a porta e até se atreve
A ver que já se trancou
Para além de toda verve
Do seu sangue lutador
Velha reza ainda lhe ferve
Sangue de velho fervor*.

Uma representação da quarta sequência do auto de reisados – a chamada das figuras – é especialmente curiosa: a morte e ressurreição do Boi. Torna-se fácil descobrir nesse entremez os vários motivos, egípcios, gregos, mesopotâmios e de outras culturas, tomados de empréstimo pela mitologia cristã.

Num primeiro ato, o Boi se apresenta dançando, supostamente na companhia de pastoras. Por algum motivo, ele adoece. Em alguns reisados, o Boi é sacrificado: o mestre representa enfiar um punhal no seu peito e um brincante recolhe o sangue que jorra da ferida (outro brincante, que se esconde debaixo da armação do boi, carrega um botijão de vinho) e o distribui entre os que assistem à peça. Vemos aí o mesmo tema da missa católica: esse é o meu sangue, tomai e bebei-o... Que por sua vez remete ao sacrifício de Ampelo, o amado do deus grego Dioniso, morto pela chifrada de um touro, e cujo sangue transformou-se no vinho que o deus orgiástico distribuía entre as suas bacantes.

Chega a hora de repartir a carne do boi: esse é o meu corpo, tomai e comei-o. Só que é feito verbalmente, distribuindo as partes do animal sacrificado com o público assistente. Um dos Mateus da brincadeira assume a divisão do corpo, e o caráter sagrado da morte sacrifical do Boi cede lugar ao tom jocoso, debochado e profano de uma farsa.

E do Boi a tripa? Pro doutor Futrica.
E do Boi a mão? Pro padre João.
Pra quem vai o rim? Vai pra seu Toim.
E a tripa gaiteira? Pra moça solteira.
A tripa mais fina? Para a Carolina.
E do boi a Língua? Vai pra Catarina.
E o cupim de fora? Vai pra Teodora.

Todos são agraciados, conforme o ponto fraco de cada um. Até você, leitor, receberia uma parte desse Boi sacrificado, se estivesse na farra. 

*Assis Lima

RONALDO CORREIA DE BRITO, escritor.

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